Não Estou Aqui

I

Todos os dias, Renato passava pelos mesmos lugares. Os muros e janelas de casas alheias que faziam com que se perguntasse como eram as vidas daquelas pessoas que não conhecia.

Quando chovia, imaginava se alguém o veria em sua janela, com o olhar perdido entre as gotas, perguntando-se no que estaria pensando. Gostaria de poder dizer que estava apenas perdido entre as gotas, pensando em nada. Mas ninguém perguntou.

Eram coisas de quando era criança. Os desejos infantis guardou em uma gaveta, num dos cantos de sua mente, ou pelo menos assim parecia. Permitiu-se prender àquela pequena frustração, como uma cicatriz no rosto, para sempre expondo sua imaturidade sentimental.

Quando acordou numa quinta-feira, estava se sentindo diferente. Ainda a mesma pessoa, mas leve, mudado. Estudou-se cuidadosamente no espelho, com as pálpebras pesadas de sono, atento a qualquer detalhe que poderia estar perdendo. Nada.

Havia crescido alguns centímetros, “esticou” diziam, a barba rala já denunciando sua idade e a voz parecia engrossar a cada dia. Nem percebeu a mudança, pois teve uma gripe insistente na época e enquanto todos comentavam que sua voz estava mudando, só pensava que estavam levando a sério demais o fato de estar fanho.

Perdia-se o tempo todo olhando para as estrelas. Não exatamente para elas, mas além delas. Quando o céu noturno ficava limpo e podia ver a lua junto com todos os diamantes cintilantes, sentia-se infinitamente pequeno, mas de alguma forma, importante. Era emocionante saber que mesmo tão pequeno, poderia ser insubstituível para alguém.

Mesmo no otimismo romântico com o qual se inspirava para viver, havia um tom diferente nos mesmos lugares às vezes. Como numa cidade fantasma, onde a essência do sombrio era a ausência de vida. Quem sabe alguém no mundo achasse fascinante um lugar com tanta história para contar, escondidas no silêncio. Ele via com outros olhos, como um amargo final de conto de fadas, onde a bela adormecida permanecia dormindo para sempre. Se havia beleza no silêncio era uma banhada em lágrimas, como na poesia de uma perda, cujas palavras sinceras revelariam a amplitude do sentimento puro que antes existira, ou continuaria a existir.

Quase todos os dias precisava caminhar de casa até a escola e depois fazer o caminho inverso. Passava por uma garota que sempre sentava num muro baixo, perto de uma esquina. Ficava próxima a uma árvore, que parecia uma laranjeira.

Nunca ouvia a voz dela. Era como um fantasma, esguia, quieta, quase de sua altura. Por meses, quase infalivelmente, ela esteve lá naquele mesmo lugar. Desatenta, desligada, o que fosse. Foi mais que sua beleza que cativou a atenção de Renato.

Numa quinta-feira, resolveu falar com ela.

Seus cabelos pretos caiam sobre os ombros, movendo-se levemente com o vento. Muitas frases pequenas e cordiais passaram por sua cabeça enquanto caminhava até ela. Assim que saiu da escola começou a perceber que talvez não fosse tão fácil quanto uma frase cordial.

A primeira impressão é a mais importante, é o que dizem. Talvez devesse prestar atenção na postura, parecer um pouco mais confiante do que realmente era. Mentir. Deveria prestar atenção em sua voz, falar com clareza e com calma. Manter contato visual razoável, nos olhos, não nos seios. Mas ainda não sabia ao certo o que falar. Poderia perguntar as horas, era clichê, mas melhor que comentar sobre o tempo, ainda mais numa situação que não pedia comentários. Teria que torcer para que não cruzasse nenhuma outra pessoa, pois ela poderia perceber que deixou para perguntar apenas para ela.

Poderia comentar levianamente o fato de que ela está sempre ali, no mesmo lugar. “Você vem sempre aqui”, começaria. Mas prestando atenção no tom da voz, para não soar com uma pergunta e logo, como uma horrível cantada.

Quando a avistou, tentou se decidir mais rápido. Passo após passo percebia que o tempo ia acabando, mas não decidia. Ela estava como sempre, sentada em silêncio no muro. Havia uma estranha pretensão, como se de alguma forma seu dia dependesse daquilo. Assim como se demorasse cinco segundos a mais para chegar à escola, o que falaria ou não para ela mudaria muito sua vida. Talvez um quebra gelo como o “Você vem sempre aqui” funcionasse noutro dia e não naquele. Talvez, optar pela opção segura também não funcionasse, mas poderia se arrepender pelo resto da vida por deixar passar. Não um arrependimento dolorido, mas depois de anos lembraria da garota com quem nunca falou e sequer ouviu falar. Talvez, ter passado todos aqueles dias por ali sem dizer uma palavra fosse bom indiretamente, pelo menos, não seria um rosto desconhecido. Ou seria. Não sabe quão longe ela ficava no seu mundo alternativo.

Estava muito perto. Diminuiu o passo e aumentou o ritmo, como se isso fosse sua forma de mostrar que havia decidido falar na hora.

Então, outra dúvida surgiu, algo importantíssimo que havia ignorado antes. Deveria chamá-la de “moça”? Soaria ofensivo? “Garota”? Não, ridículo. “Hei”?

- Hei, sabe que horas são?

Ela imediatamente voltou sua atenção a ele.

Renato então percebeu que sua pergunta era furada. Estava voltando da escola, todos na cidade sabiam o horário, bastava ver os estudantes voltando para casa. Esperou que ela não percebesse.

- Infelizmente, eu tenho. – ela disse sorrindo levemente. - Preocupar-se com o tempo é cansativo.

- Muito.

Três demorados segundos.

- Como se chama? – ele perguntou.

- Que nome se parece comigo?

Uma brincalhona, pensou. Analisou-a dos pés a cabeça, tendo pela primeira vez uma visão detalhada e tranqüila dela por inteiro.

Ela parecia verdadeira. Lembrou de um nome que gostava, um belo nome que significava, de acordo com o dicionário de nomes, verdadeira.

- Alice?

Alice sorriu para ele.

Repentinamente, começou a chuviscar. Exatamente como num filme, ouviram uma trovoada e a chuvinha fria e fina chegou logo atrás. Renato tirou sua jaqueta e jogou por cima dela.

- Vamos para baixo da árvore. – disse, divertindo-se um pouco.

Ela sorriu abertamente. Sabia que continuaria com frio de qualquer forma, mas o carinho daquele rapaz fez com que se sentisse amada. Sempre esteve ali no seu muro, como uma bela adormecida esperando seu príncipe.

Quando Renato chegou em casa naquela quinta-feira, estava se sentindo diferente. Sentiu como se alguns anos tivessem se passado.

Aquele sentimento antigo, sua frustração infantil de não ter alguém para perguntar o que achava da chuva, era lentamente substituída por saudade. Da mesma forma que ficava encantado com as gotas de chuva que caíam na grama, estava então encantado por algo tão simples, e ao mesmo tempo, tão complexo quanto – Alice. Procurava por todos os cantos o olhar dela, querendo perguntar-lhe coisas bobas, surpreendê-la com um "no que está pensando?" no momento em que seu olhar se perdesse.

Havia uma estranha densidade em tudo que ela dizia, como se sempre falasse de uma vida passada ou de um fato secreto. Sua voz pronunciava cada sílaba tão delicadamente que poderia ser quebrada como porcelana antes de terminar uma frase.

Lembrou de quando estavam debaixo da árvore. Apenas uma vez no dia estiveram lá, mas pareciam muitas. Parecia ter história de anos para contar.

Em sua casa, Alice estava deitada na cama, lembrando dele. Como um príncipe tão óbvio nunca despertara sua atenção antes? O garoto que tantas vezes a olhava com curiosidade quando passava pelo muro, que tantas vezes se perguntou por que uma garota sentaria no mesmo lugar quase todos os dias.

Escutando a chuva batendo sutilmente na janela, só conseguia pensar que sentia falta dele ao seu lado em sua cama, sendo que ele nunca esteve ali antes.

Muitas das noites que seguiram foram tão cheias de sorrisos bobos que ambos se perguntavam secretamente onde no caminho haviam perdido a razão. Renato se lembrava de uma conversa que teve mais cedo com ela.

- Você nunca se lembra de quando começa a dormir. Uma hora está na cama e na outra, está acordando, sem saber como foi parar ali. Parece ser a metáfora perfeita. - olhou para ele. - O que estou fazendo aqui, se possa sonhar?

- Soa triste demais assim. A graça de abrir os olhos e não se preocupar em manter os pés no chão está numa rotina apaixonada que faz parecer como se ainda estivesse de olhos fechados.

- Sonhando. - ela entendeu. - Apaixonada. - pronunciou a palavra tentando compreendê-la. – Existe diferença entre um e outro?

- Não quer dizer que outra pessoa deve estar envolvida. Mas é mais fácil assim.

- Como saberia?

- Eu não sei.

- Não sabe como, ou não sabe como sabe, mas sabe?

Renato sorriu. Conversar com ela era como sentir um quebra-cabeça se montando em sua cabeça a cada pergunta ou resposta inusitada.

Em outra noite, lembrou de um momento estranho, durante outra conversa.

- Eu sempre vou estar com você. – ela disse, mas a frase soou tão distante. Foi pronunciada por seus lábios, por sua voz, mas tão distante.

Porém, lembrou de outro lugar com o som daquela frase. Um lugar melhor, foi o que pensou a princípio, mesmo que não fizesse sentido. E soou tão séria, em tom de despedida. Apenas um mistério da vida, concluiu, desistindo de pensar no episódio.

Certo dia, Renato fez um leve desabafo.

- Preciso aprender a voltar para a vida real de vez em quando.

- Por quê?

- Não sei. Pode ser bom.

- Pode. Mas não o faça só porque alguém diz que você é desatento.

- Tem muita coisa na vida real que não encontro nos meus sonhos. – quis muito que ela entendesse a forma como olhou para ela enquanto falou.

Então, um dia, Renato saiu de casa como se planejasse não voltar.

Encontrou Alice onde haviam combinado, num lindo campo verde perto do fim da rua. Era daqueles que era verde até o limite do horizonte.

Demoraram-se no silêncio, caminhando pelo campo, como se presos a uma conversa telepática, movida por olhares e suas sutilezas. Renato esperou calmamente. Caminharam por tanto tempo que encontraram-se no meio do campo, sem poder avistar a cidade no horizonte.

Alice diminuiu o passo até parar e sentou na grama. Renato fez o mesmo.

- Sonhos são difíceis de descrever. – ela começou. - Mesmo o mais perfeito não se pode descrever apenas com a palavra "perfeito". Você pode tentar viver esse sonho e encontrar algo semelhante. A sensação de que o momento presente está indo além, de que algo que acabou de acontecer realmente aconteceu.

Confusa demais, ela pensou para si mesma. Mas continuou.

- É doce quando você sente seus sentimentos transbordarem... um arrepio, um olhar, e você sabe de alguma forma que foi percebido. – fechou os olhos. - Não importa como eu diga, você já sabe. Não importa como eu sinto ou como sei que sinto. Estou apaixonada por você, e quero tentar viver este sonho.

Alice voltou a abrir os olhos, e encontrou os de Renato, calmos, observando-a. No silêncio, ele tentava assimilar o que havia acabado de ouvir.

Segurou a mão dela e trocaram um longo olhar. Ela sorriu e deitou na grama, puxando-o junto. A grama estava meio úmida, mas não importava. Alice se aproximou e deitou com a cabeça em seu peito. Renato fechou os olhos, deduzindo que ela havia feito o mesmo e a envolveu com seus braços.

- Seria bom se você acordasse.

- O quê?

- Ao menos, ele parece estar em um belo sonho. – a frase veio de longe.

- Não estou entendendo. – então Renato percebeu que precisou fazer um esforço absurdo para abrir os olhos.

II

O lugar era claro, branco e silencioso.

Para ela, hospitais sempre foram lugares distantes. Nunca precisara ficar muito tempo dentro de um, mas nos últimos meses tornaram-se praticamente sua segunda casa. Olhou para os medidores que antes não sabia ler, mas acabou aprendendo com o tempo ali. O batimento dele continuava estável.

Um médico substituto vinha na direção do quarto em que ela estava. Carregava em suas mãos algumas folhas sobre o paciente numa prancheta, mas estava com a mente em outro lugar. Quando parou diante da porta para checar o número e ter certeza de que era o correto, olhou pelo vidro retangular que ficava na altura dos olhos na porta. Viu uma garota sentada na cadeira ao lado da maca com o paciente. Sua mente trouxe o termo “garota”, mas ela poderia ser muito bem uma “mulher”. Algo muito sutil em seu rosto lhe dava o ar de “garota”. Preferiu continuar com o primeiro instintivo termo.

Ela estava prestando atenção em seus dedos. Brincava com eles, lutando contra a vontade de falar sozinha. Não sozinha - com ele.

A porta atrás dela fez um barulho metálico, indicando que alguém havia girado a maçaneta. Olhou para trás calmamente e reconheceu um doutor que vira caminhando pelo hospital outro dia. Devia ser uma década mais jovem que o outro, que já tinha cabelos grisalhos.

- Olá, querida. - ele disse. – Vim substituir o médico dele por hoje.

- Olá. Por que ele não veio?

- O filho dele está nascendo no fim do corredor. – sorriu, feliz por seu amigo.

Alice sorriu discretamente e virou o rosto rápido. Sabia que seus olhos não sorririam junto.

- Já vi você aqui várias vezes. – fechou a porta e se aproximou. O doutor tentava se informar, por não ter lido os papéis. - Há quanto tempo ele está aqui?

- Oito meses. – disse calmamente.

- Como ele está hoje? - estava perto dela, checando os medidores.

- Dormindo bem.

Apertou em dois botões que soaram um “bip”.

Enquanto ele terminava de olhar os medidores, ela se levantou e permaneceu em pé ao lado da maca. Renato estava de olhos fechados, com uma expressão leve no rosto. Levou sua mão até a dele, com a pequena, porém ardente esperança de que ele apertasse seus dedos.

Sentiu um bolo na garganta e travou as lágrimas que queimaram atrás dos olhos. Achou que depois de um tempo, não passaria mais por aquela luta contra suas emoções, que talvez se acostumaria com a ideia de que ele não acordaria.

- Houve casos piores, querida. - o doutor disse. - Não gosto de dar falsas esperanças. Realmente acredito que ele vai acordar.

- Eu também. Ontem um médico veio me falar sobre desligar os aparelhos. – não conseguiu não deixar transparecer o quanto aquilo a perturbava.

- Ainda é muito cedo para se preocupar com isso.

Ele não sabia se ele ia acordar e tinha consciência disso. Ninguém sabia. O doutor observou-a, parada ao lado da maca. Era apenas tarde, e de noite, voltaria para casa, para sua esposa. Amavam-se, mas se ele sofresse um acidente e estivesse em coma, ela teria essa mesma atenção que aquela garota demonstrava com seu namorado, a mesma ansiedade, a mesma esperança?

Fez com que pensasse no ínfimo valor dos rótulos. Ela e o garoto tinham 20 anos, estavam apenas namorando. Ele, casado, não tinha certeza do que sua esposa faria por ele, nem do que faria por sua esposa.

Os anos de experiência no hospital haviam endurecido seu coração, de certa forma. Tentar imaginar aquela situação com olhos não profissionais, profundamente, parecia doloroso demais. Não precisou de muito esforço para entender. Era tão estupidamente injusto que o irritava.

- Vou deixá-los sozinhos mais um pouco. – parecia o melhor que podia fazer no momento. - Qualquer coisa me chame. Qual o seu nome?

- Alice. E obrigado, doutor. - ela sorriu rapidamente para ele, não tendo certeza se ele aceitava ser chamado de “doutor”.

- Ele vai ficar bem.

- Obrigado. – murmurou carinhosamente, gesto que o doutor entendeu profundamente. Voltou a atenção a Renato.

Alice ouviu o trinco da porta girar, os passos se distanciando e a porta encostar.

Observava a expressão leve no rosto dele. Parecia estar sorrindo um pouquinho, como quando dormia em seu colo.

As lágrimas saíram silenciosamente, enquanto ela se lembrava da primeira coisa que ele lhe disse. Havia perguntado que horas eram, quando estava sentada pela sexta vez no muro em frente à sua casa, hábito que manteve por um tempo. Notou mais uma vez que ele parecia estar com um leve sorriso.

- Ao menos, ele parece estar em um belo sonho.

Não teve certeza, mas por um momento, jurou ter sentido ele apertar sua mão.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 25/02/2011
Código do texto: T2815064
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.