Liberdade e Paixão
Era um menino. Negro, como muitos também o eram. Tinha sonhos, como todos os meninos na sua idade. Sim, a idade; contava ele onze anos na época em que se deu este episódio. Poderia passar despercebido, não fosse por um detalhe que chamou minha atenção e me fez, por pouco, desviar o rumo. Trabalhava eu na fábrica de brinquedos a três quarteirões dali e, ao contrário do que podiam denotar as evidências, não estava folgado no horário. Em quinze minutos as sirenas se fariam ouvir e eu precisava dar o exemplo que o meu cargo requeria. Há não mais de uma semana, gozava os louros e os privilégios de uma promoção a gerente comercial, galgada à custa de muito trabalho, muitas renúncias e, acima de tudo, uma invejável pontualidade britânica.
O referido pequerrucho não me era estranho. Era Agneu, filho da escrava do meu patrão. Carmelinda, alforriada em virtude da gravidez que ganhou em meio às idas e vindas às inúmeras fazendas de café do interior de Minas Gerais, veio parar no Rio de Janeiro, sem rumo, sem tostão e com um filho de seis meses entranhado no bucho. Os motivos do envolvimento com os escravos, que resultaram na inesperada gestação, não eram, em absoluto, desconhecidos, chegando a ser óbvios. A escassez de mulheres era resultado do radicalismo de alguns patrões que só permitiam braço forte na lavoura. “Homem é para servir à terra e mulher é para servir ao homem”, diziam estes imperiosos fazendeiros. E as bonitas e viçosas como Carmelinda, tinham que servir a eles, em todos os sentidos. As que, de bom grado, se sujeitassem aos arroubos concupiscentes dos seus amos poderosos, poderiam considerar-se as privilegiadas; pelo menos até que suas volúpias se aplacassem. Do contrário, cairiam no pesado como qualquer escravo forte; e o trato não seria diferente.
Se evidentes eram os motivos que a levaram a engravidar, eram, na mesma proporção, obscuras as razões para a sua inesperada alforria. A principal delas, diziam uns, seria uma possível ameaça de morte, que progrediu para tentativa de assassinato, na noite véspera de sua partida. Ciúmes; teriam sido estes os responsáveis por tudo? A mais bela de todas, Carmelinda, não poderia ficar impune às conseqüências de sua própria beleza: Os assédios de companheiros, flexados por seus encantos. Só que alguns, comprometidos, não sabendo fazer bem feito, suscitaram suspeitas, que deram no atentado. Salva por um triz da sanha vingativa de seus algozes, que à noite incendiaram a cabana, Carmelinda dirigiu-se ao casarão: - Patrão! Patrão! Quiseram matar-me à noite, incendiaram a choupana.
- Isso são horas de vir acordar-me? – Este era Fagundes, o amo. Chegou à janela e, de lá, proferiu estas palavras, juntas ao seu acesso de fúria. Como estava no andar superior, onde dormia, avistou as chamas que ardiam a duzentos metros dali. O incêndio já estava no fim mas ainda havia chamas e muita fumaça volatizava-se por sobre a plantação de café e desaparecia. – Com quem dormiu esta noite? – perguntou com deboche. A destruição importava menos para ele do que a intromissão da escrava; nada lhe era tão incômodo quanto ser acordado antes das nove, seu horário habitual. Quanto à cabana, que construíssem outra, se não quisessem dormir ao relento.
- Estou grávida; onde vou dormir agora?
- Não me pergunte. Dispensou o conforto quando teve acesso a ele. Não queira vir para mim agora; e neste estado.
- Não é isso o que peço. Posso dormir com Nandinha ? - Era a camareira, gorda e feia; única que tinha acesso a todos os cômodos da casa. Como era das mais eficientes, ganhou privilégio de um quarto do lado de fora, feito em alvenaria e exclusivamente seu. Escrava antiga e de confiança, conquistou, com trabalho e honestidade, o que muitas outras, a exceção de Carmelinda, compravam com beleza física e outros dotes carnais: a admiração e, não raro, a condescendência do senhor da casa, como de outros amos da propriedade.
Dormiu com Nandinha. Já eram muito amigas. Ao saber que teria a companhia de Carmelinda, o que fez a outra ? Tentou, e conseguiu, para livrá-la e ao bebê, do perigo representado pelas constantes ameaças, uma troca. A alforria da camareira que já era certa e confirmada para o mês seguinte, veio naquela mesma semana em nome de Carmelinda que, tornando-se livre, deixou a fazenda. Nandinha foi transferida para São João Del Rei. Devia, de certa forma, um favor ao senhor de lá. Mas em três meses estaria livre, promessa que não foi cumprida. Nandinha custou caro, dinheiro vivo nas mãos de Fagundes. Carmelinda, grávida, pouco valeria em São João. Por fim, ao cabo do quarto mês, Nandinha fugiu.
Foi também para o Rio de Janeiro, porque sabia que por lá encontraria sua amiga. Carmelinda havia deixado um endereço em segredo e confiança quando partiu para a nova vida. Juntas, em casa de velha parente da escrava grávida que, mais por dó do seu estado do que por consideração, aceitou -a por uns tempos, viveram as duas, até que veio novamente a separação; desta vez inevitável. Nandinha, reconhecida por um desses aventureiros em busca da liberdade financeira à custa da castração de outras liberdades, foi capturada e reconduzida a São João, para sua velha e antiga rotina, com seu novo patrão. As regalias a que estava acostumada não fariam mais parte de sua vida e a alforria garantida de um dia transformar-se-ia no sonho a perder de vista no horizonte de suas agruras.
Agneu veio ao mundo ainda no casarão da velha tia de Carmelinda. Eu acompanhei seu nascimento, auxiliando o parto difícil. Fui hóspede ali por quatro meses; tempo que durou a reforma da propriedade em que habito atualmente. Foi nascer a criança e mal terminar o resguardo, e pronto. A velha hospedeira não queria a sobrinha por ali nem mais um dia sequer; isso ia significar problemas para ela. – Essa história de alforria cambiada não me convence; para mim você tá é fugida – dizia. Carmelinda tentava explicar; não tinha jeito. – Um filho ainda passa; mesmo sem pai a gente cria, faz virar homem. Mas escrava fugida é um perigo; sorte não acontece duas vezes.
Ela se referia a Nandinha, que foi pega na rua, sem mencionar paradeiro e sem chances de defesa. Com a sobrinha era diferente. De resguardo, em casa de hospedaria, mesmo o dia todo no quarto era pouco para tranqüilizar a velha. Tinha o choro da criança; tinha o entra e sai e, acima de tudo, eu, que sabia da história. – Uma semana, nem mais um dia – ficou assim decidido.
A menina era forte, escrava bonita na flor da idade. E com carta de alforria não teria dificuldades em conseguir trabalho. Assim pensando, recorri ao meu patrão. Ele, rico, dono de fábrica e de fazenda, aceitou o meu pedido e empregou Carmelinda. Quanto à criança, bem; ampliando o meu leque de boas ações, dei, ou melhor, emprestei à nova mãe, um pedaço do chão que acabava de ver renovado. Mandei erguer, nos domínios da chácara, mas, bem afastada da casa principal e à direita de quem atravessa o portão, uma modesta construção. Resguardando minhas economias, um tanto limitadas à época, compus a modesta vivenda, de não mais que dois cômodos exíguos, porém, confortáveis, do mínimo necessário para ela e para o recém-nascido. Tínhamos então um trato: ficaria durante o tempo ideal ao desafogo de suas condições, mas que este tempo não ultrapassasse o prazo de um ano, suficiente a uma certa estabilidade que lhe permitisse ser independente. Foi aí que começaram os meus problemas.
Jamais poderia supor que um simples ato de caridade fosse resultar em uma transformação total em minha vida, positiva em quase todos os sentidos. Quando digo transformação, estou querendo dar a esta palavra mágica a plenitude de sua conotação. Foi algo que mexeu comigo e despertou, no âmago do meu ser, potencialidades adormecidas que jamais imaginei possuir. Chamei de problemas as conseqüências da minha boa ação para com Carmelinda porque, observada do meu ponto de vista, superficial e egocêntrico daquela época, não poderia ter outra designação. O que então via como entraves ao meu progresso, hoje reconheço e agradeço, pois foram a alavanca que me impulsionou a ele. Eis como tudo se deu.
Nandinha não suportou os maus tratos do amo nas fazendas de São João Del Rei e fugiu mais uma vez. Para onde? Nem é preciso dizer. Não tinha parentes, ninguém conhecia a não ser Carmelinda e esta, é claro, devia-lhe também um favor cuja paga ia além do incomensurável pois, dar a liberdade a quem vivia em condições como a dela seria o mesmo que salvar a vida de quem se afoga ou, talvez mais, ressuscitar a alma de quem já morreu para uma nova vida. Agneu contava dois anos nessa época. Eu andava para lá de aborrecido com a mãe e ao mesmo tempo cheio de amores para com Agneu. Na minha posição, gerente comercial de sucesso e solteiro aos trinta e cinco anos, não eram de todo infundadas as críticas da sociedade ao me saberem cuidador de um filho de ex-escrava, enquanto esta, após deixar a fábrica, perambulava por não se sabe onde, sem ter hora para voltar. Foi quando outra escrava, arredia, veio ao meu socorro.
Durante o dia o menino gozava os deleites da idade na companhia do meu escravo Bernardino. Este era para mim mais um companheiro do que propriamente um escravo. Comigo há quinze anos, foi o substituto de papai na minha criação. Conversávamos, não raro, até o cessar completo dos sons que precedem a noite verdadeira e calam-na, fazendo-a adormecer. Eu o ouvia atento quando, entremeadas de rifões em forma de conselhos, surgiam de sua boca espontânea e de sua fisionomia olhimanca, súbitas palavras que o nobilitavam e faziam-no rejuvenescer aos sessenta e quatro anos bem vividos.
- Nhô Nestor – era assim que me chamava. – Eu sempre digo pro sinhô: quem dá aos pobres empresta pra Deus, mas não esqueça também que quem a gente dá a mão, quer o pé; por isso... – Daí, emitia suas opiniões, as quais eu ouvia, e com respeito.
- O que posso fazer agora, velho Dino? – era assim que eu o tratava. – Ofereci ajuda antes que me pedisse; talvez nunca o fizesse. Agora é tarde, o que está feito, está feito.
- Mas vocês não têm um trato? Nhô é bom demais; tudo tem limite.
- Agora vai ser diferente; com a chegada da outra...
- Hum! Mais um problema pra cima de Nhô.
Velho Dino tinha toda razão. Se os problemas já eram muitos com Carmelinda e seu filho, com mais a outra eles ficaram indescritíveis.
Contribuíram para aumentar o cabedal de provérbios do meu escravo. “Olha que um é pouco, dois é bom...”. Porém, o que mais me incomodava eram os acres comentários da sociedade a meu respeito. Passei a ser alvo de críticas dentro da fábrica, o que me levou a pedir demissão. Eram seis anos de experiência no setor de produção. “Seria uma perda lastimável para a empresa a sua saída”; palavras do ser Mateus, meu patrão. Fizemos então um acordo que achei justo, porém arriscado, mas aceitei. Isto representaria tempo e dinheiro extra para por em andamento um projeto que já vinha retardando há vários anos. Seis meses foi o prazo dado pelo Sr. Mateus para resolver esse desajustamento em minha vida; ele não poderia garantir a minha recolocação, caso eu não cumprisse o prefinido.
Corriam os últimos meses do ano de 1887. Em seus trâmites finais, a lei de abolição da escravatura, seria a oportunidade pela qual eu vinha esperando para tocar o meu projeto. Sendo assim, deixei passar alguns meses, durante os quais embrenhei-me em livros e cálculos, até que, em março de 88, chamei as duas mulheres. Coloquei-as em frente a mim na biblioteca; comecei falando:
- Resolvi dar um rumo definitivo à minha vida daqui para frente e isto inclui vocês duas – disse resoluto, encarando-as com um certo ar de afetação e seriedade. Elas se olharam, espantadas. Não era comum aquele meu tom assomado e antinatural; logo em minha pessoa, de caráter reconhecidamente equilibrado. Mas eu não estava nervoso, senão decidido. Nandinha era a mais assustada. Mudando a atitude no olhar que, de esguelha, passou a totalmente frontal, disse:
- Com que então está nos mandando embora; o que faremos de nossas vidas, patrão?
- Pode considerar-se livre, Nandinha. Não percebe que não há mais perseguições? A escravidão acabou.
- ?
- Isso mesmo; a qualquer momento a lei será assinada; é uma questão burocrática o que falta, nada mais.
- Bem, sendo assim... mas, e quanto a minha sobrevivência; como vou conseguir trabalho e moradia?
- Resolvamos tudo a seu tempo. Poderá ir ficando por aqui até a confirmação da nova lei; o resto se fará ajustar. – Falava com a convicção de quem já via o futuro em sua frente. O problema de Nandinha seria solucionado graças as minhas relações de amizade com fazendeiros em Salvador; era para lá que pensava enviá-la. Portanto, deixei de me preocupar com o caso.
Agora restava o outro lado do problema a ser solucionado. Estava ali, a minha frente, em forma de uma ex-escrava. Carmelinda debulhava-se em lágrimas, com o rosto entre as mãos, como a querer esconder o pejo do momento inevitável. Ela não sabia (será mesmo que não?) que aquilo não lhe dizia respeito. Cabe aqui, num hiato bastante oportuno a esta altura do meu relato, a abertura do meu coração a quem interessar possa. Vai mais do que isso. Vai uma confissão despudorada de um homem, ainda jovem homem, de tez branca mas de alma incolor e cega. Cega pela paixão. Sim, eu amava Carmelinda. Com toda força ou, se melhor couber, com toda a cegueira de minh’alma. Sempre fui vítima dos efeitos encantadores da figura oblonga do ventre de uma mulher grávida. Esses efeitos são, em geral, direcionados a quem se vê no direito exclusivo de apreciá-los ou elogiá-los, ou seja, o marido da futura mamãe ou o pai do futuro nenê. Embora não sendo nem uma coisa nem outra, roubei este direito ao seu verdadeiro dono; desconhecido para mim e – quem pode garantir ? – também para ela. Poderia até ser a poliandria própria da origem de Carmelinda. Nossa cultura passa ao longe deste costume longínquo de muitos povos da África. Mas, inconscientemente, eu queria dividir com meu rival felizardo, senão o costume, pelo menos a apreciação e desejei, por trás de todo o meu recato, estar no lugar dele.
Quando a conheci na pensão não dei pelo meu sentimento. Vi-a chegar com a amiga. Soube que eram escravas alforriadas pela boca de Nandinha que, pedindo-me depois desculpas, revelou-me a verdade. Eu prometi sigilo; cumpri a promessa. Quando se deu a captura fiquei bastante sentido; até esqueci que se tratava de uma escrava fugida. Acostumado que estava com seu estilo espontâneo e seu temperamento calmo, tomei simpatia e, talvez inconscientemente, empuxado pela paixão insidiosa que já devia estar-me dominando, questionava de Carmelinda, interessando-me por ela. Acompanhei sua tensão pré-natal em conversas informais no dia a dia calmo da estalagem em baixa temporada. Falávamos do meu presente e do seu passado; comentávamos meus planos, lamentávamos seus reveses. Era assim; uma rotina. Do café da manhã saía eu apressado; esquecido que ficava por causa da prosa agradável. Aí, eu corria para a fábrica; ela permanecia na pensão. Eu, com muito que fazer, Carmelinda com muito que pensar. Foi assim por semanas; tudo muito natural, até certo ponto. Sem que eu percebesse, ia transportando em pensamento para a continuidade do meu dia, aqueles momentos tão deliciosos para mim quanto os petiscos da sua velha tia que me prendiam àquela casa e que agora, sendo saboreados a dois, faziam unir nossos corações.
Já não queria ver a hora de deixar sua companhia na mesa do café; como não via o momento de soar a sirena ao término do meu expediente. E correr para o que passaram a ser então os dois maiores prazeres da minha vida: as guloseimas da tia que me conquistavam pela boca e a doce companhia da sobrinha que me arrebatava o coração. Dez dias mais tarde ela daria à luz Agneu; um lindo menino a preencher o vazio do meu ser como se meu fosse. Presenciar o seu nascimento, amparar a mãe no momento máximo de uma mulher e participar da intimidade que desvela ao mundo o segredo da existência, foi demais para mim; foi o transbordar do meu amor que, se já era forte, tornou-se incontrolável. Muito lutei comigo mesmo para segurar a paixão; não sei se consegui. Não sei se deixei evidente no esforço que fiz para abrigá-la, levando-a para minha própria casa e só construindo sua morada independente ao acatar os conselhos certeiros do velho Dino que temia por mim a mofa inevitável da sociedade. Mas o amor é cego, não mede diferenças, não teme conseqüências. Se vê alguma coisa é no interior de si mesmo, onde a vista de terceiros não alcança; daí a crítica, a desconfiança e, não raro, a inveja.
Mas voltemos ao choro de Carmelinda; fiquei em situação difícil ao ver seu pranto. Tinha para ela um plano. Na verdade era um plano meu que a incluía e ao pequeno Agneu; fruto de um amor qualquer que se tornou nosso, tanto um quanto o outro. Queria declarar-me; sentia-me sufocado. Era a primeira vez que a via naquele estado. Levantou uma vez a cabeça para olhar-me entre as lágrimas, num refrigério passageiro. Diante da minha impassividade forçada, pôs-se outra vez a soluçar. Ficou, no entanto, em minha memória e dificilmente vou esquecer, o brilho daquele olhar úmido a perscrutar minha atitude. O soluço em seguida foi a resposta a sua descrença ou a encenação de quem compreendeu tudo.
A tarde chegava ao final trazendo o crepúsculo. Um choro de criança veio em meu socorro e quebrou a inquietude daquele estado de coisas. Velho Dino surgiu à soleira da porta, trazendo no colo o pequeno Agneu que acabara de acordar. O pranto inaudito da mãe dando lugar ao choro de uma criança. Agneu, logo a viu, desceu célere dos braços do escravo e foi direto aos de Carmelinda que o beijou e abraçou dizendo: - meu amor, não quer comidinha? Mamãe já fez! – O menino fez que sim com a cabecinha e ela então pediu a Nandinha que lhe fizesse esse favor. Alegou mal estar e que não se demoraria. Momento abençoado aquele; Carmelinda havia captado a minha intenção de ficar a sós com ela; por certo também me amava. Este pensamento dava-me forças para declarar-me; abrir meu coração e livrar meu espírito daquela ansiedade.
Nandinha foi à casa levar o menino a comer; Bernardino afastou-se para ir à cozinha. Fui até a porta e fechei a biblioteca. Seria capaz de jurar ao que demais sagrado existe que me sentia alheio às circunvoluções do meu próprio pensamento quando, num ato inconsciente, corri a aldrava e encerrei do mundo a minha história de amor. Voltei-me para Carmelinda. Sentada no sofá, tinha a cabeça baixa olhando o soalho; os cabelos espessos e brilhantes pendiam acima da testa, ocultando a expressão fisionômica. Eu supunha uma timidez em seu semblante, acentuada por sua postura semi-ereta e as mãos sobre o colo. O que se passou em seguida supera todas as formas de descrição que as palavras possam dar a conhecer. Qualquer narrativa, por mais explicativa, não forneceria o real da cena; mas vale a pena conhecer ao menos os seus detalhes.
Aproximei-me e sentei ao seu lado. Antes mesmo que pudesse acomodar minhas costas ao espaldar, vi-me arrebatado pelos braços e pelo corpo de Carmelinda, ao laçar-se sobre mim, quase sufocando-me com seus beijos entremeados de sussurros e palavras amorosas em meus ouvidos. Foi, de fato, tão inesperado o gesto de Carmelinda, e ao mesmo tempo tão avassalador, que meus reflexos não conseguiram acompanhá-lo. Minha mente não sabia o que pensar; abriu caminho a meus lábios que souberam responder à provocação e encher também de beijos os seus. Meus braços acompanharam o movimento e o amplexo deixou consumado o desejo do meu coração e deu-me a certeza da reciprocidade. Não houve jeito; impossível foi evitar. Fizemos amor ali mesmo sobre o canapé. A forma como tudo aconteceu, deixou a mim, não sei se a ela, completamente bobo e aparvalhado. Passado o clima de emoção, descansávamos, refestelados, sobre o sofá meio estreito, nossa testemunha. Eu, deitado e Carmelinda descansando sobre meu peito a cabeça; assim ficamos por um bom quarto de hora. Porém, o mais inusitado é que não houve palavras; nenhum quebrou o silêncio que nos circundava. Nada além de umas batidas meio que descontroladas, acompanhadas de outras um pouco mais harmônicas, faziam a diferença naquele recinto impregnado de amor; eram os nossos corações. O meu e o dela respectivamente. Sentia a respiração serena de Carmelinda; o ar cálido de suas narinas eriçando os pelos do meu tórax e do meu abdômen. Uma das razões do meu aparvalhamento era a tranqüilidade dela. Mesmo na ação impetuosa que por completo me dominou e até durante o auge da sua entrega, deixou transparecer estranha naturalidade que, no entanto, estava longe de ser frigidez; será mesmo que me amava ? Eu já não tinha tanta certeza agora.
Passado o devaneio ela se levantou. Recolheu as peças de roupa que estavam espalhadas e, ainda sem dizer palavras, vestiu-as, num silêncio mórbido que me incomodava sobremaneira. Estive por quebrar o solilóquio mas não ousei menoscabar a intenção de Carmelinda. Tudo o que fez ao terminar foi beijar-me com um suave estalido sobre os lábios e, lançando-me um sorriso, retirar-se. Tratei de vestir-me também e fi-lo rapidamente, temendo a entrada de Bernardino. Imagina surpreender-me no estado em que me encontrava. Mal terminei, bateu à porta.
- Desculpe, Nnhô. Posso servir o jantar?
- Sim, Dino; quando quiser.
- Aqui mesmo ou vai descer?
- Prefiro descer; não me demoro.
Olhei pela janela envidraçada da biblioteca e ainda avistei o meu amor afastando-se em leves saracoteios, feliz por algum motivo. Podia ser a descontração que sucede ao ato ou talvez comemorasse a conquista do desejo; de ser minha ? De mudar minhas idéias ? Quem poderia saber ?
Consegui solucionar o problema de Nandinha num prazo de tempo até mais curto do que eu supunha. Graças ao meu relacionamento dentro dos meios políticos, fiquei sabendo da homologação oficial e decisiva da nova lei com vários dias de antecedência. Pude assim assegurar um futuro tranqüilo para ela; em fins de maio, partia definitivamente livre para as fazendas de cacau em Salvador. A despedida deu-se em clima de muita emoção para as duas amigas que eram inseparáveis e muito se gostavam. Quanto a mim, misturei em meu coração, doses expressivas de tristeza, pela ida definitiva de Nandinha que, muito prestativa, foi-me de grande auxílio nos momentos difíceis; e euforia, por ver mais longas e proveitosas as horas que poderia estar ao lado de Carmelinda. E assim usufruir mais intimamente o meu amor. Percebi que há entre as mulheres que dividem as alegrias e tristezas desta vida através de uma grande amizade, algo bem maior e mais profundo do que unicamente a amizade que, em si, já é um grande sentimento. Falo de uma combinação; espécie de conluio inofensivo, troca de segredos e confidências que desempenham, no proscênio das relações femininas, o invejável papel de catalisadores das emoções.
Comparação um tanto ordinária mas que deve, mesmo truncadamente, transmitir a lógica do meu pensamento. Nandinha acabou revelando o que eu já desconfiava mas não tinha ainda certeza: era, além de amiga, a grande confidente de Carmelinda; deixou isso claro no momento da despedida. Findos os cumprimentos, dirigiu-se ao cabriolé e, antes mesmo de embarcar, piscou para a outra e sorriu sardonicamente. Isto poderia nada significar se, em seguida, após sentar-se na carruagem, não tivesse ela dado novo sorriso ainda mais maroto e olhado em seguida para mim, ao que correspondeu Carmelinda olhando-me também e devolvendo à amiga a piscadela. Fiquei meio sem jeito e, apelando para o instinto que nos vem em auxílio em momentos como este, abracei Carmelinda e carimbei-lhe um beijo nos lábios. Desnudamos para a escrava livre o que já era evidente. Acenamos para ela que afastava-se feliz e mais felizes nos deixou. Eu, que até ali, sentia-me também escravo dos meus próprios sentimentos, comecei a sentir também a força da liberdade. Nandinha, sem querer, contribuiu para isso; poderia considerar-se também uma libertadora. Perdi meus medos, uma nova era começava; dentro e fora de mim.
O mês de maio foi decisivo para a solução de muitas dúvidas que vinham atormentando minha cabeça. Pouco mais de um mês tinha eu para retornar à fábrica. Naquela mesma semana da partida de Nandinha, Carmelinda entrou em férias. Em uma de minhas prosas com velho Dino, abri meu coração. Ele, que já desconfiava, deixou claro, através de um jeito lacônico, que não era o seu, que não aprovava este romance. Mas o que podia eu fazer a esta altura ? Dino não era mais meu escravo, estava livre; mas isto para ele não fazia a menor diferença. “Se Nhô Nestor preferir, pode mandar embora esse velho que já num deve servir mesmo pra muita coisa; num sendo assim, vou morar nessa casa pra toda vida”. Isto prova o quanto me amava e desejava a minha felicidade. Tinha-me como um filho. Viu-me nascer, pegou-me no colo e agora é evidente que não iria deixar-me; e num momento crucial de minha vida. Não aprovava, mas tampouco criticava minha conduta; deixava tudo tácito em seus sábios conselhos e citações.
Carmelinda e Agneu continuaram na sua casinha à direita da entrada da fazenda. De quando em quando ela vinha até à casa principal para passar comigo a noite em meu quarto. Em uma dessas visitas, dois dias antes de iniciar suas férias, deu-me a notícia: - Vou viajar; quer ficar com Agneu ? Controlando a surpresa, respondi, mas com outra pergunta:
- Vai a passeio ?
- Mais ou menos; fica com o menino ?
- Sim, por quantos dias ?
Percebi aí que Carmelinda devia me estar escondendo alguma coisa. O jeito que tinha de desviar o olhar quando mentia era seu maior delator. Insisti mas não obtive a verdade. Iria gastar três das semanas de férias para rever parentes no sul. Indagada a razão de não levar o menino, mentiu mais uma vez ao alegar que seria vexatório para ela apresentar-se como mãe solteira, com um filho de pai desconhecido. Agneu era mestiço. Isto, segundo ela, aumentaria o desdouro, o que não fazia sentido para mim. No auge do meu ciúme, já incapaz de controlar minha tristeza antecipada, ofereci-me para acompanhá-la; eu seria o pai de Agneu. Ela não aceitou, alegando outras razões – para mim ou para meu espírito conturbado – dissimuladas e descabidas. Não tive portanto outra alternativa; deixei-a partir.
Passaram-se dias sem notícias de Carmelinda; sequer uma carta perguntando da criança. Ao cabo de duas semanas, nas quais não saí da fazenda, resolvi, a conselho de Bernardino, dar largas ao meu espírito e sair um pouco. Lia livros de aventuras amorosas com o fito de esquecer o próprio clima romanesco pelo qual vinha passando minha vida. Ou escrevia no papel coisas que minha boca não tinha coragem de exprimir; isso, de alguma forma me dava alívio e afogava um pouco o meu ciúme. Como há tempos não via meus companheiros de trabalho, entrei a visitar alguns deles. Juliano era o mais íntimo.
Cinco anos mais velho e já há mais tempo na fábrica, seguindo uma carreira de sucesso como gerente de montagem e qualidade. Saí numa sexta feira; não fazia bom tempo, tudo andava enfarruscado, eu
inclusive. Depus a esperança do ânimo no encontro com meus amigos. Além de Luciano, que só tinha livres para receber as visitas – ao menos aquelas mais chegadas – as tardes de domingo, havia Ernesto que recebeu-me já na sexta e Dr. Sergio Barreto, com quem passei ótimos momentos no sábado. No domingo fui ver Juliano.
- Como tem passado ? Esta casa ainda recebe amigos. Viajando ? Vejo que está muito bem.
- Vou vivendo; ando em casa todo o tempo; Dona Ana, como vai ?
- Bem; foi visitar a mãe. Conte-me suas últimas.
Juliano pouco de si falava; eu não queria falar muito de mim. Como desta forma ficaríamos sem assunto, para não enfear mais ainda o tempo que tornava monótono o fim de semana, falei de mim muito mais que o dobro do que ele de si mesmo. Sem querer soltar as palavras, mas incapaz de controlá-las, fui em busca do meu coração e encontrei Carmelinda; senti seu apelo desesperado. Queria a todo custo fazer parte de minha prosa com Juliano. Mas ela viria do mesmo jeito, não obstante a minha relutância em mencionar sequer sua existência. Se para mim era difícil trazer Carmelinda ao diálogo, para meu amigo o impossível tornou-se verossímil e daí para frente, cada vez mais angustiante ao meu coração.
- Foi visitar o Sr. Mateus?
- Não sabia que estava enfermo.
- Então não leu as notícias?
- Como falei, ando recluso em minha casa, lendo e pesquisando, tão absorto que desliguei-me do mundo. Mas o que tem a ver os jornais com a moléstia do nosso patrão? – falava dessa maneira com Juliano e, na minha inocência, não atentei para o fato que vinha se dando com a entrega dos meus jornais; há uns cinco dias não os recebia em casa como era de costume. Bernardino alegava-me que o mensageiro andava ausente e que portanto iria averiguar. Ao fazer tais associações, fui presa de repentino rubor; Juliano respondeu:
- Uma amarga decepção quase fez parar o coração do compreensivo Sr. Mateus. Só que desta vez, sua compreensão não suportou o golpe da desilusão que foi mais forte.
- Desilusão amorosa?
- Exatamente.
- Como pode! Quase trinta anos de vida em comum com dona Florinda. Nunca imaginei que um dia chegassem ao desentendimento.
- Antes fosse, caro Nestor; antes fosse! A desilusão a qual me refiro veio por conta do filho mais novo, Jerônimo; você o conhece. Enrabixou-se por uma das funcionárias da fábrica; o pai desconfiava há meses mas não tinha certeza.
- E quem é a felizarda? – A resposta de Nestor foi um tanto evasiva:
- Não sei ao certo; se alguém sabe, não me contou. Devia fazer muito bem feito. Soube, no entanto, que teria sido uma ex-escrava; havia muitas por lá, você sabe. Boa parte dos empregados sempre foi de alforriados, com documento comprobatório, fugidos nunca; Sr. Mateus pode ser generoso mas não é nenhum tolo. Ultimamente vinha observando os passos do filho. A mulher de quem desconfiava, muito jovem e bonita, não possuía uma comprovação cem por cento eficaz da sua alforria. Tudo está no noticiário; não sei como não leu. No último fim de semana, pai e filho tiveram uma acirrada discussão dentro de casa. Sr. Mateus forçou-o a confessar o romance e dar um fim a ele caso tudo fosse verdade; do contrário expulsá-lo-ia do seio da família e também da fábrica. Deu-se o esperado de um caso de paixão como este, férvido e intempestivo. Os dois a tudo renunciaram, menos um ao outro. Fugiram; para onde, ninguém sabe. Como conseqüência, um pai internado; o coração não resistiu ao pejo da situação e baqueou. Passou pela fábrica? Estamos operando em jornada reduzida há quase uma semana em sinal de respeito; por isso perguntei se havia ido visitá-lo. Estamos fazendo escala de visitas ao hospital. A minha será na terça-feira; se quiser, pode juntar-se ao meu grupo. O homem não está nada bem.
Eu não sabia o que pensar; eram muitas informações ao mesmo tempo. Fiquei por tanto tempo em silêncio que as palavras de Juliano, despertando-me da divagação, soaram como um chamado de alguém à beira de nossa cama, tentando trazer-nos de um pesado sonho ou talvez de algum pesadelo. Devia ser este o meu estado, pois a voz de meu amigo surgia como de longe e aumentava gradativamente. – Você está bem? – disse ao ver o meu despercebimento – Então; vai ou não ao hospital? – Inventei uma desculpa; a primeira que veio a minha mente aturdida.
- Desculpe-me mas não poderei acompanhá-lo amanhã; tenho visitas. Podemos arranjar para um outro dia? – Com a anuência de Juliano, despedi-me; alegando um mal estar. Voltei para casa. Nesta noite fiquei por conta dos pensamentos sombrios que não me queriam abandonar. Lutei contra eles até não ter mais forças; e sucumbi ao enredamento como um forçado das galés, vencido pelo peso mortífero dos seus grilhões. Juliano, modesto como de hábito, limitou-se unicamente a transmitir-me a notícia vogante naquela semana porquanto dizia-nos respeito de alguma forma. Quanto a Carmelinda, não perguntou nem falou sobre ela em nenhum momento da minha visita. Ele, como muitos, tinha conhecimento do valor que Carmelinda representava em minha vida. Não quero dizer que tinha conhecimento do nosso romance, mas olha que andavam até bem sensatas as suas conjecturas.
Os mesmos pensamentos que me roubavam o descanso e o sono, ajudaram a clarear minhas intuições e dirimir minhas dúvidas quanto à fidelidade de minha amada. De certa forma senti-me aliviado. Mas a dor era maior, bem maior que o meu alívio porque me vi derrotado. Os dias continuaram passando, inexoráveis; uma semana e outra e mais outra. E nada de Carmelinda. Já dois meses distanciavam-me de sua presença, do seu perfume, do seu amor. Expirou-se o prazo dado a mim para voltar à fábrica mas já nem isso me importava. Soube da morte do meu patrão por intermédio de Bernardino. Agora a culpa juntou-se aos meus inimigos mortais para martirizar-me; não via uma saída. Recorri à bebida, mas nem ela possuía forças para eliminar minha fraqueza. Por fim, entrevi uma solução, senão uma fuga, talvez momentânea, porém resgatável. Se alguém tinha culpa por minha queda, por meu estado atual, este alguém tinha um nome: Carmelinda. Linda como mostra o nome, porém maquiavélica. Não foi digna do meu amor, não seria de nenhum outro. Então, não merece viver; para que? Vai macular o mundo. Vai trazer homens a seus pés que serão depois metade homens, como eu quase o fui. A morte já ronda o seu caminho e é só o começo, a não ser que eu a impeça.
No meio de todas as aflições em que me via envolto e de toda herança negativa deixada pela passagem de Carmelinda, havia uma que, a princípio encarada com muita indiferença, seguida mesmo de um estorvo ao meu futuro ou a minha reputação, tornou-se o anódino para os meus momentos de frustração e meus acessos de ódio. Falo de Agneu. Muito da mãe havia neste menino, a começar pela candura. Toda criança traz naturalmente esta dádiva. Às vezes acho que o Criador, na sua sapiência, deixou aos pequeninos essa sublime missão de, com sua graça espontânea, sacudir a nós, adultos adormecidos, do torpor exacerbado que não faz outra coisa a não ser nos oprimir o espírito. Devemos aprender com as crianças; elas não sabem o que é tristeza. Vivem o presente e não guardam rancores. Disse que havia muito da mãe em Agneu; poderia ser o contrário. Carmelinda trazia em si uma meiguice natural e deve ter sido isto o que me conquistou. Ao tom melífluo da fala juntei aquela qualidade e não precisou de mais nada. Assim pensei eu no começo; mas como estava enganado!
Passava com Agneu boa parte do dia. Na outra, minha rotina em nada se alterava. Porém, no escritório, uma atividade a mais preenchia-me as horas do dia. Tinha o auxílio do velho Dino que envelopava as cartas, lacrando uma a uma e depois as despachava, numa média de cinqüenta correspondências ao dia. Era a tomada de iniciativa que me faltava e em boa hora, pois desanuviava-me o espírito da desdita recente que sobre mim se abatera, embora não me libertasse da idéia de fazer o que achava que seria o melhor a ser feito. Quanto às cartas, era o primeiro passo para a tentativa de algo novo em minha vida.
Íamos pelo mês de outubro já em seus últimos dias; quase seis meses separavam o Brasil do regime escravocrata do país livre sonhado por todos, eu inclusive. O universo das mentalidades envolvidas no longo e sofrido processo que culminou na libertação dos escravos começava a mudar. Havia uma ambigüidade nesta mudança que tornava ainda mais ferrenha a oposição que já existia, mas que só agora passava a se manifestar declaradamente. Esta que sempre se mostrava contra qualquer movimento abolicionista, seria um grande empecilho ao meu projeto com os negros. Mas eu estava deveras entusiasmado e não dava terreno a que isso obstasse os meus planos. Em muitos pontos do território nacional houve confrontos, muitos deles cruentos, que contrariavam um dos desejos da princesa Isabel ao assinar a lei, que era promover a transição para a liberdade do negro em clima de total paz e compreensão; os que se viram prejudicados, fomentaram união de grupos afins, daí os conflitos. Houve morte de negros, principalmente. Filhos órfãos perdiam sua dignidade, escravizados à fome, à miséria e ao abandono do mundo que os renegava. Suas chances de adaptação a um Brasil que, por sua vez, buscava adaptar-se às novas mudanças, eram escassas e vazios de esperanças eram os seus corações.
O sonho do meu projeto nasceu de um exame aprofundado que fiz das alterações que começaram a ocorrer no país a partir da posse de D. Pedro II. Suas idéias e suas atitudes modernistas induziram-me, e a muitos outros envolvidos em assuntos políticos, a entrever um Brasil diferente ao aproximar-se o final do conturbado século XIX e o movimento que levou a consumação da Lei Áurea seria o marco dessa transformação. Por carência, tanto de tempo quanto monetária, engavetei o projeto. Mas o destino já reservara-me as condições, não tinha mais porque adiar. Como uma preparação inevitável, os fatos sucederam-se encadeados. Carmelinda, Agneu, o afastamento da empresa, o dinheiro extra e, em forma de fatalidade, na morte do Sr. Mateus, viria um outro benefício inesperado. Quando digo que o meu relacionamento com Carmelinda mudou a minha maneira de ver as coisas - e foi esta mudança que levou-me a efetivar o meu projeto - é porque fiz de um grande problema inicial o ponto de partida da minha resolução. Teria que trabalhar invariavelmente com crianças. Na verdade só certifiquei-me do amor que havia em meu coração por elas a partir do meu contato com Agneu. Nunca fui pai mas com ele tive que ser tudo ao mesmo tempo e consegui sair-me muito bem. “ORGANIZAÇÃO DE AMPARO AOS REJEITADOS PELA SOCIEDADE ABOLICIONISTA”. Ficou sendo este o nome da casa que seria na verdade uma associação. Escolhi esse nome pois desejei dar à palavra “abolicionista” ambígua conotação para ver se sensibilizava os donos do poder a não abolir em demasia. Consegui a cooptação de mais dois interessados. Algum patrocínio aumentou o nosso entusiasmo e isto fez expandir o projeto inicial que fez aumentar a procura, o que exigiu nova expansão. Seis meses mais tarde, em abril de 1889, já éramos uma instituição com mais de duzentas crianças órfãs mas com uma visão de futuro totalmente renovada. O mas notável é que não era de negros em sua totalidade; havia vinte por cento de brancos e um outro tanto de mestiços recolhidos do grande desequilíbrio por que andou a sociedade.
Meu cargo de presidente da “OARSA” não apresentava, sob nenhum aspecto, semelhança com o que era conhecido e inerente a esta função em se tratando, não propriamente de responsabilidades, que existiam, mas da vigilância, que não tinha que ser contínua. Como não tinha fins lucrativos, requeria não mais que uma boa manutenção e alguns cuidados. Para isto, contava eu com cinco honestos e eficientes funcionários e a colaboração dos meus dois parceiros; não poderia haver para eles, melhor atividade. Retirados de suas funções, ambos sexagenários, precisavam mesmo de algo assim. O contato com a esperança vicejante desta nova geração, rebento de um sistema ainda recente e, sob alguns aspectos, experimental, despertou ânimo em meus amigos; curou de vez qualquer reminiscência de neofobia em suas almas. Com esta explicação busco justificar minha tentativa de reconciliação com a empresa que dispensou meus serviços e que há bem pouco tempo classificava-me entre os primeiros funcionários do seu quadro.
O tempo ajeita todas as coisas. Sempre procurei confiar na atuação deste remédio singular. Juntava essa confiança àquela que deposito em minha própria pessoa; esperei. Quase três anos de afastamento. A família de meu ex-patrão não levou por muito tempo o galardão do monopólio na fabricação de brinquedos. Mais duas fábricas instalaram-se dentro de um raio onde a concorrência apresentava os seus problemas. A inexperiente diretoria, herdeira do Sr. Mateus, acabou por sucumbir à superioridade dos adversários e entregou os pontos. Para não falir, abriram suas ações ao mercado. Um dos grupos da concorrência assumiu as dívidas e comprou a maior parte. Com isto, as portas voltaram a abrir-se para mim. Minha organização já era grande consumidora. A isso juntei minha experiência de anos e voltei à antiga função. Oito meses mais tarde tomava posse em uma confortável sala da gerência comercial.
Contudo, faltava-me algo para fazer-se completa a minha felicidade. A esta altura da vida, quase um quadragenário e passados quatro anos
da experiência que tive com Carmelinda, não posso afirmar com convicção que conheci o amor. Se é este o sentimento cantado em verso e prosa e enaltecido em todos os cantos do mundo por todas as raças e em todas as épocas, então devo concluir que há algo errado comigo, posto que não conheci senão o lado amargo ou não conheci lado algum para ao menos poder dizer que estão certos os poetas, apologistas do amor. Como em tudo há compensações ou pelo menos a busca da experiência, para mim ficou isto e algo mais. Deve ser este o lado positivo de uma experiência frustrante. Amo Agneu com toda sinceridade e pureza de minh’alma. Não sei do que seria capaz se ao menos tentassem tirá-lo de mim. Já perto dos cinco anos, possui, e disto faço questão, tudo que uma criança na sua idade vive sonhando: Os melhores brinquedos - isto não constitui problema para quem passa horas no meio deles – a companhia de muitos da sua idade; enfim, o conforto que um pai quer para o seu filho. Sim, Agneu é meu filho, ninguém ousaria dizer o contrário.
Uma espécie de sentimento de gratidão passou, muito timidamente, a tomar conta do meu espírito, á medida que via aumentar minha felicidade com Agneu. Meu desejo de vingança contra a sua mãe ia, aos poucos, afastando-se, até abandonar-me por completo. Meu dia a dia agora consistia em procurar esquecer o que antes não suportava sequer pensar a respeito. Carmelinda foi, a tempo reconheci, a responsável por muitas transformações positivas em minha vida. Seria absurdamente inconcebível de minha parte não reconhecer esse fato. Antes de conhecê-la, amarguei a rotina de uma existência simples, pobre, no sentido espiritual da palavra. Se tinha dinheiro, pouco o gastava. Do trabalho, usufruía o bem estar que não transige com a ociosidade. O dinheiro ia para um canto, eu para o outro. Aquele para junto da herança de meus pais; eu, para casa, produto também dessa herança, encafuar-me entre paredes, no silêncio das minhas lucubrações.
Não fui à procura de Carmelinda, mas tenho que confessar o desânimo por trás das palavras que hão de exprimir o desenlace desse romance; ela procurou-me primeiro. Por obra da intuição que as circunstâncias despertaram em meu ser, sabia que isto iria acontecer um dia. Ademais, amor de mãe é sempre amor de mãe e acabou falando mais alto que as reles promessas que redundaram no fiasco pesaroso que foi a sua união com o ex-nababo. Havia sofrido profunda transformação mas continuava bela. Perdera um pouco daquele ar humilde, próprio dos que nasceram para servir. Outrossim, adquiriu o seu oposto, na convivência de quem tinha na servidão de terceiros o conforto do ego e da altivez. Como havia mudado o meu sentimento em relação a Carmelinda! O amor, que se tornou ódio, não passava agora de irreprimível comiseração. Digo irreprimível porque senti em seus olhos a percepção da minha mudança. Pouco falamos; não foi preciso. Tudo estava tão explícito!
A reação de Agneu não foi menos indiferente, viu a mãe, brincou com ela, como brincaria com qualquer outra mãe. Ela poderia recorrer ao direito legal que lhe pertencia mas preferiu que assim não fosse. Preferiu, sabiamente até, deixar nas mãos do destino o que o destino havia deixado nas suas; quem sabe ele não aceitaria? Sugeri que ficasse na cidade até decidir o que faria em relação ao menino.
- Não é preciso; ele já tem um pai – respondeu-me lacrimosa.
- Obrigado; ele será feliz.
- Já o é, com certeza. Tem mais que uma família feliz; tudo o que eu nunca lhe poderia dar.
- Precisa de uma mãe.
- Terá uma, com certeza. Uma mãe verdadeira.
Carmelinda estava certa. Dei ao menino uma mãe, diferente da sua; branca, olhos esverdeados e bem mais jovem. Entrou a trabalhar na organização no mês seguinte àquele em que revi Carmelinda. Quatro meses mais tarde, estávamos casados. Não sei o que levou-me a uma ação tão rápida; será que para esquecê-la ? Ainda eu a amava ? Só o tempo diria.
Tudo continuava normal em minha vida; exceto em meu coração. Carmelinda não fora para o sul como me disse que o faria a fim de recomeçar vida nova. Ficou pelo Rio de Janeiro, mas de longe, a perscrutar minha vida. Fê-lo tão bem que eu sequer desconfiava. Não casara, não tivera um outro alguém. Soube aguardar, em pacto consigo mesma e com o tempo, como faz quem ama e acredita.
Oito meses de união bastaram ao inferno do desamor. O ciúme de minha esposa desmoronou de vez a esperança de tentar novamente. Rompi ao saber, por ela, que havia um outro alguém que eu amava. De tudo fiz para segurar o invisível amor. Mas Carmelinda apareceu sem que eu soubesse. Daí o ciúme, daí a separação. Ela estava certa. O menino precisava de uma mãe; mãe verdadeira.