Tempos de mudança
Sei que te recordas mas deixa-me contar-te outra vez. Verás como a realidade tem novos ângulos para que possas julgar e decidir melhor. Faz de conta que estamos a chegar e que nunca lá estiveste. Para mim, era assim: muito para lá da cerca há um caminho de pedras e pó. Era andando uns quilómetros mais que se avistava a casa, de alvenaria, senhorial e espaçosa. A rodeá-la um declive florido e, nas traseiras, espreitando pelas frestas do muro de pedras soltas, avistavam-se os cactos antes que a terra, de cor mais escura, sinalizasse a horta, os campos de feno, as plantações de frutos abarcando tudo quanto a vista alcançava. Nasceste ali. O teu pai era já um homem maduro e a tua mãe uma das mulheres contratadas para o serviço doméstico. As coisas, ao tempo, aconteciam com a naturalidade que, naquela lonjura, presidia aos actos da vida. Nascer como um animal, procriar como um animal, viver quase como um animal de acordo com a clima e a distância da cidade mais próxima. As leis eram feitas pelos moradores ou por aquele que, sendo homem de posses, pudesse alugar o corpo e a força alheias, como o teu pai, exactamente.
Um dia era igual ao anterior e ao seguinte. Todas as pessoas se levantavam cedo, faziam as suas tarefas, geriam os tempos de acção e de descanso e ficavam a olhar para o fogo antes da deita. Alguns juntavam-se para o café e o bagaço, para uma troca de ditos e palavras sem grandes enredos. O pessoal ligado ao trabalho doméstico dormia no piso térreo em pequenos quartos lúgubres todos com porta para a varanda colonial. Nas extremidades do casarão havia a zona dos banhos, as latrinas e os depósitos de combustíveis. Carvão, lenha, gasóleo, álcool e gasolina, devidamente controlados, guardavam-se ali. Na outra ala, dominando todo o conjunto habitacional, as cozinhas, as despensas e a escadaria de acesso ao primeiro andar onde a tua mãe, logo que a barriga lhe denunciou a prenhez, se acomodou passando a ter regalias inerentes ao facto de dormir com o patrão. Haveria de o tratar sempre por senhor Matias limitando-se a fazer-lhe todas as vontades e gozando o que podia sem exigir absolutamente nada.
Cresceste assim, sem grandes cuidados, sem afectos especiais. O teu pai, nunca te pegou ao colo nem te deu particular atenção. Para ele eras uma criança mais a alimentar e vestir, um animal como os outros, como ele próprio. As primeiras letras ensinou-te o Ariel, quiçá o mais educado dos trabalhadores braçais. A seguir a D. Mariana, irmã do padre, por ocasião da morte prematura da tua mãe, haveria de te levar para o ensino no seu colégio. Quando voltaste, eras já uma moça de grandes pernas e seios a apontar. Treze anos, muita curiosidade e um terror absurdo pelo dono da fazenda, teu velho pai. Fugias dele, respondias por monossílabos e, tal como todos, tratava-lo por senhor Matias ou por patrão. Eras uma adolescente rebelde e quase selvagem. O pouco que aprendeste, acabou por nada valer naquele meio rural onde ficaste como substituta da tua progenitora na cozinha, no asseio dos quartos, na arrumação do escritório onde o teu pai ficava horas a olhar para o largo portão da fazenda. As faltas eram punidas com jejuns e silêncios. Crescias subjugada e triste.
Um dia, porém, aconteceu. O velho Matias surgiu macilento, com a pele de tom terroso, o cabelo a cair, as rugas a cavarem-se sem remédio no rosto, no pescoço, na flacidez dos braços. Dizia-se que era fígado, cirrose ou cancro. Outros garantiam ser malária mas todos achavam, com razão, que o velho não ficaria muito mais tempo a rondar os campos a bordo do jipe ou a controlar as mulheres que ainda lhe apeteciam. Sentindo que o seu tempo acabava, procurou medicinas na cidade mas voltou abatido e, se possível, ainda mais sisudo. Foi a ti, Isadora, que ele pediu que passasses a preparar os remédios, a cuidar da dieta, a controlar os acessos daqueles que chamava para atribuir o serviço. Que visses bem como as coisas eram, que aprendesses depressa que ele já não tinha tempo para emendar erros. – Sou teu pai, disse-te. É pai que quero que me chames daqui para o futuro. Perdoa se te dei pouco cuidado e nenhuma atenção. Os homens como eu não amam, fazem sexo. Juntam-se os corpos para a criação mesmo quando nem sequer se pensa nisso. A seguir dorme-se para aliviar o corpo moído e não há conversa possível com uma serviçal como a que foi tua mãe. Ela esforçava-se e foi-me leal mas nunca partilhei nada com ela, nem a filha que tivemos. Acontece que tudo o que temos vai ser só teu e tens de ter coragem para enfrentar isto sozinha. Não dizes nada?
Claro que não dizias. Rolavam-te as lágrimas. Choravas por ti, pela tua mãe, pelo homem que tinhas na frente e que se gastara sem ter sido mais que um moiro de trabalho, um cacto na aridez do seu tempo. Choravas por ser tarde para ganhar um pai e afecto e, também, por medo da autonomia que te chegava, assim, rodeada de perdas, tão cedo. Um frio invasivo tomou-te os lombos e a nuca. Adivinhavas tempos difíceis embora empolgantes. Olhaste-o com pena mas o teu olhar mostrava a melhor porção que dele te veio, a determinação.
Depois da morte do velho e do luto breve, muitos tentavam impor o caos. Todos queriam tudo, todos, de repente, se arvoravam em donos da terra, dos códigos, do mando. Abateram rezes de reprodução para uma festa que prometia durar e quase ninguém pensava em cumprir as próprias funções. Era insuportável o mugir do gado sem ração, o campo agricultado à míngua de água e quase todos, novos ou maduros, experientes ou não, a romper as regras em total desleixo e descaso. Choraste os primeiros dias até te crescer uma raiva surda e uma revolta sem tamanho. Então lembraste-te dele, Ariel, o único que talvez merecesse ser ouvido. Deste-lhe poder e ele centralizou tudo. Ninguém mais poderia fazer nada antes de ser definida a respectiva ordem. Os recalcitrantes eram ameaçados com a velha pistola retirada da gaveta da escrivaninha do teu pai e alguns, depois de advertidos, foram expulsos.
Começou a reinar um medo subterrâneo mas os trabalhadores voltaram às suas tarefas de sempre. Tu parecias outra. Dir-se-ia que as responsabilidades te aformosearam e te fortaleceram o corpo. Trabalhavas sem parar de manhã à noite, um e outro dia, todos os dias, até mesmo os de guarda. Ficavas muitas horas a conversar com Ariel e, em breve, corria que se tornaram amantes. À boca pequena havia quem contasse pormenores, quem narrasse contos cabeludos a vosso respeito. Só para os calar casaste com ele, homem forte e bem mais velho que tu. Uniram-se sem amor. A amizade haveria de bastar ao trato e para o amor não tinhas nem maré nem jeito, pensavas. Ele passou a ser, além do colaborador que já era, teu confidente e, de novo, professor. A física, a matemática, as letras e alguma filosofia, afinal tudo o que ele sabia, tudo o que aprendera te ia passando com afecto e com desvelo. Era um tipo sério, um homem de valor, alguém que só tinha olhos para ti mas a quem a idade madura já sinalizava a sua aparição. Tu respeitava-lo e procuravas corresponder à sua bondade nata. Aprendias muito e depressa e a breve trecho comandavas, decidias e optavas com invejável autonomia. Ariel, apoiava-te, fortalecia-te o mando, resolvia as pendências com uma inusitada ferocidade. A prosperidade chegava para ti e para todos. Agora já delegavas funções, já tinhas tempo, já te preocupavas com a roupa e a aparência. Enquanto Ariel se reduzia e ganhava jeitos de velho, tu ficavas exuberante, uma verdadeira mulher elegante, sã, verdadeiramente fascinante. Tinhas um olhar duro mas eras doce, tranquila, uma estátua de carne pronta para a vida, para a guerra e para o amor. Entre vocês o pouco que havia perdeu-se. Ele queria-te muito mas não tinha já vigor. Seguia-te com o olhar para onde fosses mas acentuava a ruga da fronte sempre que as diferenças lhe acudiam à mente.
Quando se escutaram os primeiros rumores da guerra ninguém imaginou que chegaria àquele ermo mas as hordas de homens que fugiam à luta passavam, esfaimados, por lá e, com a sede de justiça traziam além de doenças, um genuíno ódio à estabilidade. Roubavam, matavam, abusavam. O medo fez debandar muitos trabalhadores e tu, Isadora, foste adequando a fazenda, o gado, as plantações aos braços de que dispunhas. O verde dos campos retraía-se em direcção à casa, os estábulos passaram a ser extensões desertas e inúteis, a fome ameaçava muita gente em redor. E, um dia, gastas todas as reservas, consumido tudo o que havia, a fome chegou lá. Decidiram, finalmente, partir. Ariel recolheu parte dos víveres, encheu o depósito do jipe e iniciou a retirada rodando de noite para evitar as patrulhas e os assaltantes de estrada. Escondiam-se entre pedras, dunas e terra seca ou, mais raramente, junto à vegetação existente na margem do rio. A progressão fazia-se apenas pelo espaço de estrada pesquisado durante o dia já que teria de ser feita em completa escuridão. Carne e peixe secos, atum e sardinha em conserva, farinha de milho e água onde fosse possível arranjá-la constituíam uma maneira rica de sobreviver. Mas Ariel, já cansado e muito abalado com as circunstâncias, era um homem doente e excessivamente fragilizado. Disse-te que, acontecesse o que acontecesse, deverias seguir em direcção ao litoral e tentar achar os contactos de que, em tempos te falara. Morreria pouco depois devastado pela febre e pela diarreia. Pela primeira vez na tua vida te viste só e entregue a ti mesma. Com as lágrimas a correr pelo rosto queimado, tapaste-o e, sem te voltares, entraste no jipe e rodaste até acabar o combustível.
A cidade mal se percebia tão forte era a poeira que o vento levantava. Arrastaste-te até lá. Ruas ermas, casas esventradas, vegetação ainda verde nas dunas junto ao mar. O deserto começava ali e o sol fazia vibrar as areias. Entre o deserto e o mar, perdida no labirinto das ruas, escolheste uma das casas e entraste. Era lá que eu estava, ferido, febril, desidratado. Sem forças para me deslocar à procura de comida, achei que a minha hora tinha chegado. Mergulhado no torpor e no silêncio não quis responder-te. Foste tu que organizaste tudo, preparaste o lume, trouxeste a água potável, me arrastaste para uma cama e passaste a ter como missão salvar-me da morte. Salvaste. Três dias depois eu já falava. Soubeste outros pormenores da guerra, do êxodo, da fome. Soubeste também que os barcos já não chegavam ali, que as pessoas fugiram prometendo não voltar. A terra, maldita desde a sua fundação, fechava-se a quem tinha de ali ficar, entalado entre o mar e o deserto. Deixá-la e esquecer os extremos a que obrigava os seus habitantes já era bom. Ficaram os que não puderam sair, aqueles que queriam morrer, os que achavam ser mais adequado acabar ali que às mãos de assassinos a soldo. Soubeste que eu, sem família noutro lado, sem terra além daquela, sem motivos para viver, ficara decidido a permanecer ali. Recusava-me a sair. Visto por mim o mundo era, em qualquer latitude, um lugar inóspito. Sobreviver implicava larga dose de agressividade, como se tudo o que não nos privilegiasse em primeira e última instâncias não valesse a análise. Mudar não estava na minha maneira de ser. Já vivera muito mesmo considerando que ainda não tinha 40 anos.
Estavas destinada a partilhar a vida com homens maduros. Eu não seria excepção. E amei-te, deixei-me amar, dividi-me entre a luta pela vida e a vida doce com uma mulher jovem mas forte e determinada, como tu. Ficámos aqui mas sabemos, ambos, que isto é só um compasso de espera. A ideia é voltar à tua terra, recuperar a Fazenda, fazer crescer as manadas, regredir para um tempo que, apesar de tudo, foi de abundância. Sem notícias, sem contactos, sem movimentações de gente ou tropa temos de inferir que começou um tempo de paz ainda que podre, morna, sem saídas visíveis…
E um dia, entre o penar naquele deserto e o risco de achar outro inferno nas terras abandonadas da Fazenda, iniciámos o regresso. Lá haveria água nos poços, a casa talvez montada, algumas conservas no subterrâneo cujo acesso só tu sabias. Foram semanas de caminho, de sustos, a cruzar vastos espaços sem gente. Pedras, pó, vegetação rasteira. A vida selvagem recuperava o seu espaço. A estrada, de novo tapada pelo capim alto só servia como orientadora do nosso caminho. Era difícil progredir por ali. Era muito mais difícil prosseguir fora da estrada. Mas…chegámos. O portão fora arrancado, a casa parcialmente queimada, os estábulos destelhados mais pareciam ruínas acabadas de bombardear. Nem cães nem gatos, nem rês alguma. Era preciso limpar os poços, recuperar a casa, libertar o adro e a eira de ervas daninhas. Plantar a horta, semear o que houvesse na cave... Usámos o que ainda existia, filtrava-se e fervia-se a água, gastavam-se os combustíveis armazenados.
Ao cheiro de comida, acudiram dois cães vadios que passaram a guardar o que restava da Fazenda. O uivar deles trouxera um homem faminto que se dispôs a ajudar. Era novo, forte, sisudo. A seguir conseguimos atrair uma égua e esta dois cavalos saudáveis. Depois de domados seriam um excelente meio de locomoção. Dividiam-se as emoções e as noites por três. Mussul passou a fazer parte do grupo. Era um homem ainda jovem, seco de carnes, forte, moreno. Falava pouco mas deixava-se ler.e percebia-se a sua vontade de fazer parte do grupo, de ajudar à concretização dos projectos. A princípio distante começou a insinuar-se mais junto de ti e de mim. Ainda que o negasse estava irremediavelmente apaixonado por ti e via-me como amigo mais velho, como guia e companheiro, nunca como rival. Na tribo de onde vinha a cultura fazia apelo ao grupo não ao indivíduo, à partilha de tudo, até das pessoas amadas. Dai que entendesse não precisar de esconder a atracção nem a vontade de ter, no teu amor, um quinhão igual ao meu. Achaste graça e nunca valorizaste as consequências. Estava fora de questão admitir sequer a hipótese de dividir a intimidade, o corpo e o afecto, com um amigo culturalmente diferente e estranho mas era tarde para lhe retirar regalias e para fazer a demarcação que se impunha. Por outro lado, ao considerares a hipótese, abriste o teu espírito para essa eventualidade e passaste a olhá-lo como uma potencialidade que te escapara na análise anterior. O que se passou a seguir foi forte demais para todos nós e não valeria a pena recordar-to. Lembro apenas que, dadas as circunstâncias, nenhum de nós usava as regras consensuais da sociedade a que pertencíamos e aceitámos que ninguém é de ninguém e todos pertencemos a quem amamos e nos deseja. Não te sentias obrigada a ser-me fiel e não exigias fidelidade. Ganhava-se a vida recuperando, muito lentamente, o que era possível. A Casa estava habitável e a terra renascia para uma produção humilde que nos garantia o sustento. Éramos felizes.
Mas um dia, trazida não sei por que ventos, ela apareceu para reivindicar o homem que considerava seu, homem que perdera durante os conflitos mas que lhe pertencia. E Mussul, ingenuamente feliz, impôs-nos a mulher disposto a integrá-la no nosso círculo de afecto, amor e sexo. Foi aí que tudo se alterou. Tu, que não eras ciumenta nem te obrigavas a fidelidade para com nenhum de nós não admitias partilhar-nos com Timena, mulher de Mussul. Refugiaste-te num silêncio amuado, no isolamento e na inércia e adoeceste. Os males do espírito atingem o corpo e, em breve, recusavas a comida por não desejares viver. Resististe a tudo, do apelo ao pranto, da persuasão à ameaça e estás, hoje, a gastar as tuas últimas horas. Sinto que se apaga, gradualmente, a luz dos teus olhos, que os teus lábios se fecham numa recusa de sons, que o teu corpo se despede de nós e da terra como se morrer fosse a libertação esperada, o remédio para uma decepção que ninguém pode justificar e que já não podemos evitar.
A história da tua vida corria entre as pessoas da minha família que vos serviram. Era uma espécie de lenda, um exemplo, uma aspiração para os humildes que não tinham outros horizontes. Contei-ta para que te visses sob um talvez diferente ângulo, para te ajudar a ver como serpenteia a vida dos que Deus ajuda a vencer, para que desejasses retroceder na determinação de morrer. Foste forte tantas vezes, heroína quase sempre e fraquejas quando a esperança renascia para nos recortar um futuro melhor. Continuas escondida em ti mesma e é possível que, amanhã, já cá não estejas. Estive assim quando me salvaste e sei que não consigo viver sem ti. Partirei para a cidade abandonada e vou acabar, como tu ou às mãos dos que ainda ganham a vida a matar o próximo. Se é isto que queres mantém-te de olhos fechados. Se a minha vida ainda te merece cuidado, abre os olhos, sinal de que me amas também e que me queres e eu far-te-ei beber leite, para que vivas. Amo-te, Isadora.
E das sombras, dominando o rosto abatido e macilento, um verde líquido, iluminado e vibrante, anunciou, nos seus olhos, o regresso à vida. Isadora voltou.
FIM