A Primeira Valsa
Eu acordo com a televisão alta na sala.
Olho o radio relógio. 10h30min.
Dormi bem essa noite.
Cheguei cedo. Costumo chegar tarde e acordar tarde.
Levanto e vou pro banheiro.
Urino, lavo o rosto e escovo os dentes.
Patrícia está sentada na mesa tomando café.
Sento. Abro o pão com a mão, passo manteiga, coloco o café na xícara.
- Acordou cedo. – Disse Patrícia depois de mordiscar o pão.
- Bom né?
Ela sorriu.
Patrícia é minha irmã caçula, somos sós nós duas, não temos pais e eu cuido dela.
Eu trabalho a noite, sempre chego tarde.
Mas sou obrigada, penso no futuro da minha irmã.
Se ela soubesse da verdade...
Ele pensa que trabalho numa agencia de telemarketing que funciona 24 horas. Melhor assim.
Sabe aquela amiga que vem e oferece um emprego, já que você necessita urgentemente de um?
Ela fala do dinheiro, das vantagens.
Você escuta e acredita que vale a pena, cai direitinho.
O dinheiro é excelente, eu não reclamo. O que eu reclamo é o tipo de trabalho que faço.
Mas o que fazer? Nesse trabalho ganho mais dinheiro do que um emprego normal.
Eu sei que é errado, também detesto o emprego. Faço pelo dinheiro.
Trabalho na Girls Club na Nelson D’Ávila.
Entro às dezoito horas e não tenho hora de terminar. Ou seja, posso varar a noite.
Trabalho para o Guilherme, é ele que entrega os clientes.
Tem dias que a maré tá braba, só consigo levá-los ao quarto ou nem isso.
Os homens são brutos, estúpidos e violentos, não tem nenhum respeito. Às vezes é humilhante. Por isso detesto os homens, tratam a gente como bicho.
Não gosto de homem nenhum. Só quero dinheiro.
Guilherme mandou sentar-se à mesa de uns caras junto com duas meninas.
Olhei para cada um deles e refleti: “Hoje vai ser daqueles dias!”
As meninas sentaram do lado de dois que pareciam tarados, eu sentei do lado de um que me olhou tímido.
“Hoje vai ser daqueles dias!”
Estava irritada, o cara não falava. Perguntava alguma coisa, ele respondia cortando a pergunta seguinte.
As meninas foram com os caras para o quarto e eu fiquei com o babaca.
Um tempo depois ele começou a falar:
- Como se chama?
- Lucrecia. – Respondi.
Inventei na hora. Pra qualquer idiota eu invento um nome diferente.
- Espero que não seja a Lucrecia Bórgia.
- Quem?
- Esquece.
Tenho que fazer alguma coisa, pelo menos começou a falar.
Faz várias perguntas que respondo de mau humor. Fala que é tímido, apareceu na boate a convite dos companheiros, morava sozinho.
Não tava afim de escutar, estava cansada e de saco cheio.
O Guilherme me perdoa, mas não serei babá de um babaca.
- Vamos?
Até que enfim. Vou tirar muito dinheiro.
- Vamos. – Disse.
Ele segurou meu braço.
- Pra minha casa.
- Casa?
- O seu patrão permitiu.
Penso. Não posso perder dinheiro por causa disso.
- Tá. Eu vou. – Disse.
Sua casa ficava no jardim Satélite.
Dentro:
- Não vamos perder tempo, tira a roupa. – Eu disse.
- Desculpe. Sou tímido, não quero que faça isso.
- Quê?
- Eu deveria ter falado, desculpe.
- Você é virgem?
- Não, não.
- Cara, que merda é essa? Eu sou paga pra transar.
- E pra não transar?
- Impossível. Todo homem que sai com prostituta quer transar.
- Como assim?
- Prostituta, o que os homens enxergam é sexo.
- Eu não quero transar.
- Quer fazer o que, então?
- Nada.
Tem cada um que eu arranjo...
- Eu quero companhia, porém não quero sexo.
- Você não é normal, cara.
- Só porque não quero sexo com você?
- Outros teriam me chamado de vários nomes feios, ordenando tirar a roupa, mandar deitar, deitar sobre mim e dizer que apenas sirvo para isso. Estou dizendo que você não é normal.
- Porque eu não quero mandar tirar a roupa e abrir as pernas?
- Sim. Você está recusando meu trabalho.
- Você está trabalhando, não veio aqui à toa.
- Se não quer transar, então não sirvo pra nada.
- Não fale assim...
- Que quer de mim, afinal?
- Estava querendo companhia, se você quiser... eu aluguei alguns filmes, tem lanche, refrigerante, suco até cerveja.
- Assistir filme pornô?
- Não.
- Eu só assisto aos filmes do Mel Gibson.
- São filmes preto e branco.
- Filme antigo?
- Sim e um é mudo.
Pensei. Ele não quer sexo, convida a assistir filme e comer. Não levar tapa e não vou ser chamada de vagabunda.
- Tá, eu fico. Mas tenho que...
- Eu sei, precisa receber pelo serviço. Não tem problema, eu pagarei.
- Não precisa, não vou fazer programa.
- Vai sim, um programa diferente.
Rimos.
Ah, se os programas fossem assim!
...
Assistimos um filme mudo. “Metrópoles.”
Depois “O Dia que a Terra Parou”, “Guerra nos Mundos”, “O Homem Invisível”, “Dracula” e outros.
Tudo isso durou com o sol raiando.
- Está tarde, tenho que ir.
- Não vai ter problema com seu patrão?
- Avisarei o que aconteceu.
- Contará a verdade?
- Um pouco. Sem problemas, você pagou tá tudo bem.
- Posso te ligar?
Jamais dei meu telefone para nenhum cliente. Fora do trabalho sou outra pessoa. Ele me tratou com respeito, darei uma chance.
- Ligue pra esse numero.
Escrevi e entreguei para ele.
- Ligue depois das quatorze horas.
- Ligarei amanhã.
Cheguei morta em casa. Patrícia estava acordada. Inventei que deram hora extra.
Deitei e pensei... Será que ele vai ligar? Ah... Menina, você não é assim pare com isso!
...
Outro dia. 14h00min.
Fiquei do lado do telefone.
Estava ansiosa, esperando tocar, fazer barulho, som, fazer trim.
Espero tanto tempo, penso que não vai ligar.
Ah... Menina viu no que dá acreditar num homem?
Levanto. Ao dar dois passos...
Trim.
Desesperada peguei o fone.
- Alô?
- Alô, Lucrecia?
Era ele!
- Será que pode vir à noite em casa? Eu avisei seu patrão, tá tudo certo.
- Assistir mais filmes?
- Hoje será surpresa.
- A que horas?
- Dezenove, tá bom?
- Por mim tá legal.
- Vou esperar. Tchau!
- Tchau!
Meu coração disparou, estava ansiosa, não conseguia definir meu estado. Não via a hora de a noite chegar
...
Noite.
Aperto a campainha. Ele abre a porta.
Sinto o cheiro de colônia nele.
Estava bem vestido.
- Como vai?
- Bem.
Ele beijou meu rosto.
- Entre.
Rolava uma musica suave na casa.
- Agradeço por aceitar meu convite.
- Não há de quê. Você disse que não vamos assistir filme, estou ansiosa para saber o que será.
- Vá até ao meu quarto, tem uma coisa em cima da cama.
Fui e encontrei um vestido preto brilhante.
Levei a sala.
- Era isso?
- É. Gostou?
- Sim, gostei. Pra que o vestido?
- Quero que vista. Pra combinar com iremos fazer. Faz parte da surpresa.
- Você é maluco, cara.
- Não vai vestir?
- Espere aí.
- A sandália está debaixo da cama.
Entrei e demorei e quando sai parecia outra mulher.
- Ficou bonito em você, caiu bem no seu corpo.
- Obrigada. É leve. E qual é a próxima parte da surpresa?
- Venha até a mesa.
A mesa estava arrumada, com duas velas vermelhas dentro de castiçais.
Acendeu as velas, em seguida puxou a cadeira para eu sentar.
- Logo chegará à comida. – Ele avisou.
A comida chegou.
Ele apagou as luzes e o sinal de claridade que emanava vinham das velas.
A comida e o ambiente estavam agradáveis. Nunca estive bem como estou agora.
- Está gostando? – Ele perguntou.
- Estou.
No fim de tudo ele abriu uma garrafa de vinho e ficamos na sala.
- Adorou a surpresa?
- Adorei.
- Tudo pra você.
- Pra mim? Por quê?
- Queria tratá-la de outro modo.
- Você é gentil...
Ele levantou e colocou uma musica romântica no som.
- Quer dançar?
Ofereceu sua mão e eu levantei.
Dançamos.
Que gostoso, que momento bom...
Terminamos de tomar o vinho e no final já era meia-noite.
Era hora de ir.
- Vai pra boate?
- Não. Pra minha cama. Darei a desculpa que fiquei com você até de manhã.
- Ligarei pra você daqui a dois dias.
- Estarei esperando.
Estou feliz!
No outro dia levantei as oito.
Patrícia se surpreendeu com meu horário de acordar.
Ela assistia um programa na televisão.
- O seu chefe dispensou cedo ontem?
- Hum hum. – Respondi.
Coloquei leite e café no copo e peguei algumas bolachas num recipiente de vidro.
Eu vi a cena de ontem. A comida, a dança, o ambiente. Quando percebi estava sorrindo a toa. Patrícia percebeu.
- Posso saber o que é esse sorriso alegre?
- Não é nada. Senta aqui.
Patrícia sentou.
- Você sabe como começa a gostar de alguém?
- Quando ela aparece confiável.
- E quando vem o amor?
- Quando ele aparece confiável.
- Isso não vale! Você respondeu à mesma coisa.
- É que cada um tem uma forma diferente de gostar e amar alguém.
- Pra mim é tudo igual.
- Você tá gostando de alguém?
- Sabe que não confio em homem.
- Não sei por que, você nem diz o motivo.
- Não preciso dizer, não confio em homem e pronto.
- Precisa encontrar alguém.
- Não preciso de nada.
Patrícia saiu e eu fiquei pensando nele.
À noite inventei que estava indisposta e nem fui trabalhar.
Nossa, nunca matei o serviço.
Deve ser por causa dele...
Hey, garota... Vai com calma, não é por aí.
Patrícia ficou contente. Era a primeira vez que jantamos juntas. Eu também gostei.
- Você precisa de férias, viajar. Seu chefe é muito ruim. – Disse ela.
- Ele é um pouco. Mas férias não estão na minha cabeça.
- Você não quer descansar, trabalha nessa agencia há... Desde que eu tinha oito anos.
- Faz tempo mesmo.
- Tire um tempo de descanso.
- Vou pensar no caso.
Eu mudei de assunto.
- Você conhece o estado da pessoa quando está amando?
- Ela fica cheia de espinhas.
Patrícia riu.
- Pare de rir sua boba!
- Ah, você está muito interessada, parece que arrumou namorado.
E foi pra cozinha lavar o prato.
- Jamais namorarei.
- Claro, tem medo de ficar com a cara cheia de espinhos.
E riu de novo.
No dia seguinte plantei no telefone.
As horas iam passando, e eu nervosa para ouvir o chamado.
- Está esperando alguém? – Perguntou Patrícia. Está aí faz tempo.
- Uma pessoa.
- Sei. – Disse mostrando um riso irônico.
- Não é o que está imaginando.
Trim!
É ele!
- Alô?
- Não, não senhora, foi encano. De nada.
Era outra pessoa.
Trim!
- Alô?
- Não senhor, aqui é residencial. Não foi nada.
Outra pessoa...
Trim!
- Alô.
- Aqui não é a casa do Adílson, senhora. É um numero errado.
Mais uma...
Trim!
- Alô?
- O numero é outro senhor.
Desisto.
Não sei por que estou chateada, esperava por isso. Não é assim que os homens são?
Trim. Trim. Trim.
Patrícia atendeu.
- Sim? Não mora nenhuma Lucrecia...
É ele!
Corri, tomei o telefone dela.
- Alô? Sou eu.
- Tudo bem e você?
- Pensei que tinha desistido.
- Às vinte e uma? Me pega lá? Tudo bem. Eu te espero.
Patrícia me olhava numa expressão de interrogação.
- Quem é o cara?
- Um amigo.
- E por que você deu o nome de Lucrecia pra ele?
- É um código que criei. – Era minha desculpa.
No Girls Club, Guilherme me chamou.
- Quer falar a respeito dele? – Perguntei.
- Ele paga bem pra ficar com você. – Disse ele batendo a ponta da caneta na mesa.
- Você quer saber do quê?
- Por que não sai com outra?
- Vou saber.
- Não estou reclamando, não sei pra que levá-la na casa dele.
O que fazem lá?
- O que todos os homens fazem com a gente.
- Há um problema. Tem clientes reclamando.
- Quer que eu desmarque com ele?
- Não, de jeito nenhum. Pode ir.
- Não está achando bom?
- De não sair com os clientes? Claro que não, mas o lado bom é que ele paga bem e por isso reconsidero.
- Até certo ponto?
- Certamente. Eu posso aceitar, porém terá que sair com os outros também.
Saí da sala. Ele estava no barzinho.
- E aí. – Disse ele.
- Oi.
- Pronta?
- Estou.
Saímos e fomos num restaurante japonês.
Admito que a possibilidade de comer peixe cru me embrulhou o estomago.
Fiz esforço para engolir. Ao terminar senti alivio.
O restaurante era quieto, as luzes amarelas, azuis e vermelhas iluminando um brilho fraco e discreto.
- Me fale de você. – Comecei a falar. – O que faz, é casado...
- Trabalho como químico numa indústria, ela possui uma unidade na cidade.
- E é casado?
- Solteiro. Por quê?
- Achei que fosse. Homens gostam de esconder que são casados e procuram prostitutas.
- Acha que vim de outro lugar pra farrear com prostitutas?
- Disse que achava. E você é muito sério.
- Agora me fale de você. Faz tempo que trabalha na boate?
- Estou no Girls Club bastante tempo. Foi por necessidade e pelo bom dinheiro.
- Por algum motivo?
- Pela minha irmã. Meus pais morreram e eu fiquei como responsável dela.
- Sua irmã sabe?
- Ela pensa que trabalho numa agencia de telemarketing.
- E já se apaixonou por algum cliente?
- Eu não confio nos homens.
Ficou um tempo me olhando e depois perguntou:
- Pelo motivo que você me disse no primeiro dia em casa?
- Sim. Mas essa minha filosofia de não confiar em homem veio quando eu era pequena. Não é porque faço programa, é bem antiga.
- Terá que admitir que um dia sentirá atraída por alguém.
- Nunca. E sua vida amorosa?
- Eu... – Pausou. – Eu não confio nas mulheres. – Pausou de novo. – Não, não era isso que quero falar. Não confio no amor, pra mim não existe, o que está dentro de nós são paixões. Paixões boas e más.
- Continue. – Disse com ar de grande interesse.
- Nós possuímos paixões em nosso ser, paixões que nos levam a fraqueza, pois nos levam as boas e as más.
- A paixão é negativa? – Perguntei.
- Se gostamos de alguém, sentimos desconfiados, ciúmes ou pensamentos impuros. A paixão torna-se negativa. Precisamos equilibrá-las, no mesmo nível da balança.
- Quer dizer que precisamos das duas paixões?
- Exatamente. Veja o seu caso, não confia nos homens. Essa sua filosofia é uma forma negativa e estando equilibrada tudo fica bem.
- Mas eu posso gostar de alguém.
- Claro que pode! É só manter o equilíbrio.
- É estranho, você parece um homem duro, inquebrável, que possui um escudo invisível ao seu redor.
- Sei de gente assim. Fique sossegada sou diferente.
- Não chegou a eliminar as paixões?
- Certa parte sim, mas não podemos ser “duras” como você definiu. Eu também preciso sentir.
- Como gostar de alguém?
- Com certeza. E eu gostei de você. Sei que não é paixão, porém sinto bem ao seu lado.
Neste momento queria dizer o mesmo.
- Você é o único que não me vê como um objeto. - Falei.
- Isso te faz feliz, né?
Respondi que sim.
- Estou deixando de sair com outros clientes para estar com você.
- Seu patrão não está gostando?
- Ele avisou, mas não esquenta, prefiro ficar com você.
- Tenho que falar, mas estou enrolando.
- O quê? – Perguntei ansiosa.
- Vou ser transferido.
Foi um tiro.
- Ser transferido?
- Para Campinas. Eu não queria.
- Têm que fazer o que os seus superiores ordenam.
- Justo agora que te conheci.
Ele pegou minha mão e disse:
- Tive ótimos momentos ao seu lado, nunca esquecerei deles.
E beijou minha mão.
Queria dizer o mesmo. Faltou coragem...
- Presumo que seja o nosso ultimo encontro.
- Mas eu...
Calei-me.
- Fale.
- Não, não é nada...
...
Dois meses se passaram e nem sinal dele. Deve ter encontrado outra mais especial do que eu.
Era apenas fingimento? Se eu me entregasse, ele seria a mesma pessoa?
Continuei minha vida, trabalhando no Girls Club, saindo com homens que não atolero, chegando tarde e sentindo que nada disso mudaria.
Ele não vai ligar, está bem em outro lugar. Aposto que tem outra.
Por que sinto saudade? Deveria saber que terminaria dessa maneira. Então, por que sinto saudade?
A campainha toca.
É um rapaz segurando uma caixa de presentes.
Ele entrega junto com um cartão.
Abro e leio. Abro a caixa.
Havia um vestido azul-escuro.
...
Entrei no restaurante e num canto ele deu sinal.
- Ficou linda no vestido.
- Obrigada.
Olhei ao redor e uma orquestra tocava e casais dançavam.
Ele pediu champanhe e em seguida o jantar.
Comemos. Eu estava feliz. Não precisava negar, estava feliz ao lado dele.
- Eu voltei por você. – Ele disse.
- Se transferiu de novo pra cá?
- Ainda não. Mesmo que eu não queira, não parei de pensar em você.
A orquestra começou tocar valsa. Ele levantou.
- Vem, gosto dessa valsa.
- Não danço bem valsa.
- Eu te conduzo.
E fomos à área de dança juntar com mais quatro casais.
- Eu nem disse meu nome. – Ele avisou.
- Eu nem perguntei.
- Quer saber?
- Não hoje, talvez outro dia.
- Certo.
- Quero dizer que não me chamo Lucrecia...
- Suspeitei.
- Quer saber?
- Não hoje, que seja pra outro dia... O que importa é sentirmos nossa primeira valsa...
(Rod.Arcadia)