Sonho ou realidade

Estávamos em uma mesa triangular com uma toalha branca brilhante que iluminava a noite que se nos apresentava, nossos olhos se encontravam um no outro frente a frente.

Era uma praça pública e seu marido em meu campo visual a esquerda estava de pé discutindo com dois amigos sobre os investimentos e sobre a política mundial.

Iniciou-se nossa aproximação mental, física, espiritual, fomos nos unindo, ela queria tácito, subtendido, de olho nos olhos, mente com mente, longe das percepções mundanas, eu não quis, a imprudência orgulhosa foi maior.

Anos de abstinência e bom comportamento eclodiram na forma de indiferença em relação às condições externas.

Deixando que as condições instintivas e selvagens aflorassem sem qualquer restrição, dei-lhe um delicado e sincero beijo nos lábios, que penderam inertes no mesmo ritmo e na mesma busca inconsciente, diante da idéia de que o momento era este e não há mais como esperar.

Os olhos do marido, apesar de sua intensa participação no debate financeiro com os amigos, contorceram-se naquele momento vidrados, esbugalhados, vermelhos de furor. Um furor ardente e destrutivo tomou o ambiente naquele momento, e iniciou-se a agressão contra a mulher que agira daquela forma diante dele, ela se reduzia em silêncio.

Não obstante a atração ambígua ter sido o motivo do nosso beijo, senti que era o momento de assumir aquela atitude, o que fiz no mesmo momento:

- Fui eu que me aproximei e forcei um beijo, a culpa foi minha...

Iniciei imprecações que rendiam a minha pessoa toda e qualquer responsabilidade pelo ocorrido, o que resultou em clara aparência de alívio na face daquele que queimava de furor, passando a minha pessoa a ser o alvo daquela fúria, mesmo que reduzida perante a não participação de sua esposa.

As lágrimas afloraram de minha face e aquele poderoso financista, mantendo–se em sua compostura superior dirigiu-me várias ofensas, tomando o cuidado de não perder sua posição diante de alguém tão sem importância ( em termos econômicos) como a minha pessoa.

Diante da situação e do sentimento de dever cumprido, retirei-me do local e iniciei uma caminhada labiríntica por entre corredores com muros de madeira, cortiços e pequenos bares rústicos que tinham vários freqüentadores e lâmpadas amarelas.

Mas alguém me seguia e era ela, seguia-me como se fosse minha sombra, queria estar comigo, queria me tirar da certeza de que eu era novamente, meramente um detalhe, de que minha vida era meramente cumprir deveres, e adicionar a minha pessoa a noção do mais do amor, me seguia como se o espaço entre nós fosse um abismático inimigo, e como se aquele momento não fosse nunca mais voltar.

Eu caminhava sem parar sem olhar para trás, e o cenário ia se repetindo, sempre bares, sempre lâmpadas amarelas, locais fechados abafados, com pessoas em suas mesas de madeira, anônimos sem existência.

Parei e senti que algo ocorrera em meu interior. Não era mais o mesmo, a faísca de amor fora alimentada e assim como o fogo extingue a escuridão, o meu ser estava sendo alimentado pela reciprocidade, e extinguindo a escuridão – as luzes amarelas das lâmpadas ser tornavam mais intensas.

Falávamos sem parar, sem observar o que era dito, sem ouvir, e sem ver o que se apresentava a nossa frente.

Parei.

Não suportava mais fugir daquela mulher cujos cabelos amarelos brilhavam sobre o escuro da noite, e que me perseguia, trazendo às minhas costas sentimentos e buscas e perguntas sem respostas.

Estávamos no chão em um canto escuro na entrada de um bar fechado de madeira, como uma caverna, em nossa dianteira luzes brilhavam, e aquele local de estilo europeu prosseguia em suas atividades.

Perguntei:

- Eu existo pra você? No seu coração estou presente?

Apesar de parecer ingênua, eu precisava de uma resposta, precisava saber a verdade, após vários anos de negação, eu mesmo precisava de um ponto de partida para iniciar esta jornada.

Ela disse:

- Sim,

Junto a esta palavra pude ver a imagem de seu coração e minha presença verdadeira em suas origens, pude sentir e ver coisas que as palavras não são capazes de traduzir, vi que o silêncio dela se devia a importância daquele sentimento que era guardado com todo o cuidado e com orgulho de ter algo a ser lembrado e que o tempo não destruíra. Sentimentos reais que dependiam somente da minha capacidade de me esquecer de mim mesmo, meus medos, traumas, rejeições, e me abrir àquilo de belo, resplandecente e luminoso que um dia alguém vira e guardara como lembrança e como um tesouro.

Então acordei.

Terá sido um sonho?

Isaias João
Enviado por Isaias João em 21/02/2011
Código do texto: T2805183
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