A história de outro beijo

Contaram-me que foi um beijo, mas presta atenção, não poderia ser. Aquele não foi desses, esta é a história de outro beijo. Um beijo daqueles que estalam e que são profundos. Daqueles que dura um tempão e deixa os beijoqueiros sem fôlego. Pois foi. O burburinho se espalhou assim. Aquelas duas criaturas se olharam, se aproximaram uma da outra, se tocaram e se fundiram num beijo daqueles. Foi o que disseram.

Por mais que contassem, pedi para que repetissem incansavelmente. Não era possível. Não dava para acreditar. Aquilo tinha sido um beijo, pior ainda, no meio do jardim. Todos os passantes de repente pararam para ver. De fato era um suculento beijo na boca, de língua, diga-se de passagem, um beijo de língua no meio da praça.

Foi nesse dia que o vento deixou de ser o ar em movimento. Parou. As árvores daquele jardim deixaram de sacudir sua folhagem. Diz-se que tinha algo diferente a contemplar. Era um instante sacro de contemplação e elas respeitaram. Dizem que uma estrela no céu, olhou e olhou, perdeu o equilíbrio e despencou. Dizem que a lua, que minguava desgostosa, empurrou sua cobertura de sombras pra olhar, tudo ficou claro como o dia e ela recuou para não atrapalhar, mas ficou olhando da gretinha, pois aquilo era um beijo de língua no meio da praça da Matriz.

Os santos olharam, taparam os olhos e, outra vez, olharam descrentes. No meio da praça da Matriz, que absurdo, havia um beijo em andamento, e não era só um beijo não, pois se fosse ninguém olharia tanto, era um daqueles. Um grandioso. E as freirinhas correram para acudir os santos congelados nas paredes. Fechem, fechem as portas e janelas da Matriz, lá fora há um beijo, dos mais pecaminosos que pode existir.

Uma mãe boquiaberta pôs as mãos nos olhos dos filhos e olhou abobalhada, o beijar daqueles dois. Viu tanto que relaxou e os meninos, assustados, viram pelas gretas dos dedos, se comerem os dois mortais. O idoso, estarrecido, maneou a cabeça passando adiante e resmungando coisas do passado. Não era mesmo de se fazer uma coisa dessas, mas esses nossos novos tempos, tão mesquinhos e tão modernos. Essa gente tão cheia de si e tão obstinada, já não pensa mais na sociedade e beija assim tão gostosamente causando inveja até nos mais conservadores.

Beijo não, eu já expliquei, esta é a história de outro beijo. Um beijo daqueles de deslocar queixo, beijo feito de tição, brasa e faísca; beijo de fogo e coração muito além da fricção. O que chamou a atenção, foi que o beijo daqueles dois não estava só. Veio um anjo em sua missão lá de cima e parou para olhar, disse o anjo outro dia, que viu duas anomalias: era um beijo de paixão, de amor e fantasia, mas também era um beijo de entrega e devoção.

Findo o beijo, se olharam, extasiados de beijar e o céu se iluminou. Foi ai que aconteceu e que tudo começou, duas meninas se beijaram, dois rapazes namoraram, duas vidas se encontraram, duas almas encarnaram, dois casais se apaixonaram, inimigos se tocaram, opostos se desejaram e o dia amanheceu.

Abimael Borges
Enviado por Abimael Borges em 15/02/2011
Código do texto: T2793754
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