O TEU SORRISO...

O rapaz, sentado na calçada, ficou desesperado quando percebeu que aquela era a última página. Revirou todas as folhas, revisou uma por uma, procurou pelo chão qualquer papel que pudesse ter se perdido. Nada encontrou. Foi tomado por um terrível sentimento de impotência, quando se convenceu que aquele era, de fato, o fim daquela assustadora história. Algumas perguntas lhe assombravam, insistentes a ponto de fazer sua cabeça doer: o homem cometera suicídio? E, se o fez, por que, antes disso, não terminou de compor as linhas finais de sua derradeira mensagem?

Tentando ligar as ideias, estabelecer boas hipóteses, organizou as folhas e tentou alinhá-las da melhor forma possível. Ergueu-se vagarosamente, abandonando a sombra agradável em que estava instalado, no meio fio da rua. Hesitante, relendo trechos do diário com a cabeça baixa, afastou-se do local, mas o que não pode afastar foi o pensamento insistente que povoava sua imaginação. Aquele bolo de folhas, o qual encontrara no chão, anexado por um clipe enferrujado, seria um sinal em sua existência? E, se assim fosse, como ignorá-lo e seguir sua vida como se nada houvesse acontecido?

Com a cabeça pesada, andou de volta para seu apartamento, encerrando prematuramente sua caminhada vespertina. Dirigiu-se diretamente para o escritório, para a surpresa da esposa. Releu o manuscrito do início ao fim, em busca de pistas sobre a identidade do autor, já imerso no desafio de localizar seu paradeiro. Agia segundo um misto de curiosidade e preocupação.

O velho quase não escrevera nomes de pessoas ou ruas, não colocara nenhuma identificação pessoal, tampouco números de telefone ou qualquer pista que pudesse levar a sua identidade ou a de qualquer envolvido. Apenas dois sobrenomes apareciam no texto: Macedo e Amaral.

Após horas trancado, pensando incansavelmente em suas escassas possibilidades, o jovem abandonou o escritório e finalmente respondeu as questões da mulher. Esta, após inteirar-se, pediu para ler o texto, a que ele não fez objeções. Ao sair do banheiro, a mulher, com um sorriso de satisfação, o esperava na porta:

- “Boteco da Saudade”. Eu sei onde fica. O ônibus da faculdade passava na frente.

Sem hesitar, entraram no carro e partiram. O bar não ficava longe, perguntaram pelo Macedo. Um velho careca, com olheiras profundas e uma terrível cara de bêbado que contrastava com as roupas finas que vestia, ergueu-se sem dizer palavra. O rapaz arriscou:

- Macedo. – usou um tom seco, influenciado pela antipatia que o autor do diário tinha pelo homem.

- O que vocês querem?

- Eu quero saber onde fica a casa de um velho que morava por estas bandas. Ele sempre sentava na calçada nas tardes de inverno... Resmunguento, mal-humorado...

- O velho Fillipo – respondeu imediatamente, ao ouvir os últimos adjetivos. – Portão verde. – falou secamente, apontando uma casa a alguns metros. Após, deu as costas para o casal, e pediu, com o dedo, uma bebida ao garçom. Escondeu o rosto; não queria falar sobre o assunto.

Reascendeu-se o medo na espinha do rapaz. A reação de Macedo devia-se a ressentimentos do passado ou algo de grave acontecera ao velho? O jovem ansiava cada passo, mas, ao mesmo tempo, temia que os resultados de sua pesquisa não fossem os mais agradáveis. Sutilmente, pegou na mão da esposa, e ela apertou-o firmemente, dando a ele forças para continuar.

Estavam agora parados à frente do portão verde do velho Fillipo. A ansiedade e o medo duelavam em seus espíritos às vésperas de obter o capítulo final daquele misterioso diário. Este constituía um relato tão pessoal e revelador que o jovem e sua esposa sentiam-se como testemunhas indiretas do possível suicídio. E, uma vez inseridos no seio daquela história com tamanha intimidade, o retorno era impensável; necessitavam saber o que acontecera ao velho.

Tomado por súbita coragem, após um momento de indecisão, o rapaz tocou a campainha com força. A mulher olhou-o nos olhos, tomada de medo:

- Espero que não tenha acontecido nada... É muita tristeza, amor, um homem morrer desta forma, tomado, ao mesmo tempo, de amor e solidão!

O rapaz não teve tempo para tentar tranquilizar a esposa e a si próprio. Ouviram o som da chave girando na fechadura e prepararam-se. Após um instante, a porta abriu-se e eis que surgiu...

- Oi. Pois não? – falou uma menina de cabelos longos e roupas bonitas. O rapaz julgou tratar-se de um engano. Teriam batido na casa errada?

Entretanto, enquanto esperava a demorada resposta do casal, a guria postou no rapaz seus grandes olhos castanhos. Olhos de dor e tristeza; de uma seriedade quase adulta. E ele compreendeu. Subitamente, outra criança apareceu; um menino pequeno, bem menor que a irmã. O rapaz sorriu.

- Tua mãe está?

- Minha mãe se foi... No parto do meu irmãozinho.

O rapaz e a esposa olharam-se, atônitos. Necessitavam, no entanto, de mais respostas.

- E o teu pai?

- Não mora com a gente. Minha mãe dizia que ele era um sem-vergonha. Mas o meu pai “de verdade” está em casa. Quer que eu chame?

- Seu pai “de verdade”?

- É, o nome dele é Fillipo. Bem, ele não é meu pai, mas pra mim ele é, entende? Ele ajudava minha mãe quando ela estava esperando meu irmãozinho, e quando ela morreu, ele ficou com a gente... Quer que eu chame?

O casal se olhou, com lágrimas insistentes nos olhos e um sorriso doce nos lábios. O velho estava vivo!

- Sim, chama ele...

A pequena saiu com o irmãozinho puxado pelo braço, a chupeta segura na boca por um bracinho gorducho e as perninhas trêmulas arriscando-se nesse mundo louco.

Passou-se pouco tempo quando o velho, bambo, magro e curvado, com o menino no colo e a menina atrás, segurando a barra de sua camisa, apareceu. Para sua surpresa, entretanto, não havia mais ninguém lá fora.

- Ué, papai, eles estavam aqui agora mesmo... – falou a menina, já sem olhos adultos e duros, mas doces e infantis.

- Eu sei, meu amor. Tem cada louco nesse mundo! Essa gente é assim, mesmo. Ah, tive uma ideia! Quem é que quer sentar na calçada com o papai??

- Nossa, papai, que coisa de velho!

Fillipo explodiu numa gargalhada. Após, pensou um pouco e concordou: de fato, estava muito jovem para estes programas...