O TEU SORRISO... (07/09/2005)
Companheiro, voltei ao médico e disse a ele o que já havia dito a você: não sou um adolescente e não vou escrever um maldito diário. Ele disse-me que está bem, perguntou-me se eu tinha escrito alguma coisa, respondi que sim, bastante; ele achou graça da minha incoerência e pediu-me que eu seguisse assim, “não” escrevendo.
Neste período em que estive em falta com você, companheiro, nada aconteceu; pelo menos externamente. Internamente, uma revolução ocorria. Pensei muito sobre minha vida, meus amores e meus amigos, minha profissão e minhas escolhas ao longo deste percurso longo e sinuoso. Criei uma autobiografia mental, rememorando, em ordem cronológica, cada dia que consegui lembrar. Em outras palavras, fiz o balanço geral...
E decidi passar a régua e fechar a conta.
Os acontecimentos descritos nas páginas anteriores deste emaranhado de folhas mexeram comigo com intensidade surpreendente, especialmente por ser pego em um momento da vida em que minha maior expectativa era ir dormir tranquilamente, em uma noite qualquer, e não acordar mais. Entretanto, inesperadamente, inexplicavelmente, após todos estes anos, novamente senti vergonha, senti medo, senti angústia, senti raiva, sinto saudade... Saudade do contato humano, da bagunça das crianças, da presença de uma mulher. O único problema, companheiro, é que me esforcei, todos estes anos, para afastar a vida de minha volta, e agora este velho acabado, sem família nem amigos, não tem o direito de exigir alguém para si novamente.
Além disso, após a terrível morte de minha esposa, perdi a fé em Deus, único motivo razoável que poderia impedir-me de fazer o que estou prestes a fazer. Então, por que hesitar? Que diferença vai fazer um ou dois anos a mais ou a menos em minha vida? Já cumpri todas as etapas, passei por todas as provações e agora chega, é hora de partir. Não me arrependo de nada, tive momentos bons, dos quais destaco a vida com minha esposa, e momentos terríveis, como a falta de filhos e a morte tenebrosa desta querida companheira.
Moralmente, não tenho problemas, não estou abandonando a batalha, como alguns jovens estúpidos fazem; pelo contrário, já lutei minha batalha, e estou apenas fazendo uma retirada um pouco antecipada. Chamemos de uma pequena deserção, a qual, graças aos inúmeros anos de serviços prestados, certamente será perdoada.
Se, daqui há alguns minutos, descobrir que a vida pós-morte e o Ser Superior existem, e que a forma de minha morte condenou-me para a desgraça eterna, aceitarei. Ninguém esteve em minha pele para saber como me sinto, então não podem criticar minha escolha.
Neste momento, minha pistola está a meu lado, mais fiel que qualquer amigo que já passou por minha vida. Agradeç...
Maldição! A campainha tocou... Vou mandar embora quem quer que seja, não quero perturbações neste momento.”