O TEU SORRISO... (25-27/08/2005)

Quinta-feira, 25 de agosto de 2005, 23:30 hs.

Hoje não tenho nenhuma condição de escrever, estou acabado. Um cansaço sem fim.

Amanhã explico...

Sábado, 27 de agosto de 2005, 14:40 hs.

Há oito anos eu não fazia um serviço braçal. Desde que minha esposa faleceu, na verdade. Nunca gostei deste tipo de serviço, mas o homem tem a obrigação de cumprir certas tarefas de manutenção da casa. Faz parte de seu papel como marido, do qual nunca me esquivei. Adiava o máximo possível o conserto de uma porta, ou a troca do chuveiro, confesso, mas sempre cumpria com estas obrigações. Depois que me tornei viúvo, entretanto, abdiquei também de minhas obrigações como esposo; não teria a mesma graça a realização das pequenas tarefas do lar sem o rosto surpreso da companheira, comunicando que havia sido um trabalho digno de um profissional, mesmo quando o serviço, na verdade, não ficava grandes coisas.

Estou contando isso com um motivo, logicamente, mas peço perdão ao companheiro se minhas explanações acabam alongando-se em excesso; o fato é que ao contar algumas memórias, outras vão retornando, e os dias doces e saborosos acabam se tornando uma realidade em minha mente. O fato concreto é que anteontem e ontem, após oito anos, realizei uma pesada atividade braçal: cortar grama. E admito que gostei, apesar de, hoje, eu ter a impressão de que meu corpo foi trocado pelo de um cadáver, tamanhas as dores que sinto.

Bem, comecemos as explicações do início.

Você bem lembra, companheiro, que, quarta-feira, jurei não sair para a rua no dia seguinte, a fim de não encontrar com a leoa e sua filha. Bem, ao que parece, este velho esqueceu-se que, na vida, não somos totalmente responsáveis por nossas ações. Há sempre uma variável latente, vibrante, que nos impõe certas circunstâncias independentemente de nossa vontade. Em outras palavras: não mandamos totalmente em nosso nariz.

Quinta-feira, apesar de o sol, maravilhoso, ter saído, após um interminável período de chuvas e frio, não botei o pé para fora de casa. Fiquei lá dentro, escondido, quieto, forçando meus sentimentos a fazerem o mesmo. Duas horas infernais passaram-se e eu não conseguia relaxar. Queria sair, conversar, caminhar e, especialmente, implicar com a leoa. Não o fiz. Fiquei em casa. Mas, como disse anteriormente, nem sempre governamos nosso comportamento: ao olhar pela janela, abrindo uma mínima fresta da cortina para não ser visto, notei que o Macedo estava passando um sermão na leoa, a qual ouvia tudo quieta, de cabeça baixa, inexplicavelmente, abandonando sua natureza rebelde e sua personalidade feroz. Macedo apontava para a grama a sua volta e deduzi o que ele estava dizendo. Era óbvio que não suportava mais a lentidão de sua empregada. Ralhou muito com a pobre moça e, por fim, aparentemente deu-lhe algum aviso, pois estava com o dedo arrogante em riste apontado para o rosto da inocente. Apesar da vontade de não me envolver com a situação, permanecendo em casa até que a leoa fosse embora, não pude conter a raiva. Troquei de roupa, furioso, escondi a inseparável adaga na bainha da calça e saí para dizer algumas boas verdades ao infeliz. Não tive tempo; ao fechar meu portão, o desgraçado ia deixando a casa, escoltado sob a lataria velha de seu carro. A leoa percebeu minhas intenções e engoliu em seco a cara de choro; era orgulhosa demais para chorar na minha frente.

- O que este velho safado te falou!? – indaguei, mal contendo a raiva.

- Não te mete. Isto é assunto meu e dele. – ralhou a outra, não querendo fazer papel de vítima, imagino.

- Ah, agora tu voltou à velha forma? Há instantes atrás, baixasse a cabeça para aquele sem-vergonha! Ou será que tu só é arisca comigo? Parece que sim, pra ter esse monte de filhos!

- Como tu te atreve!??

- Não quero discussão! O que ele te falou!? – a mulher relutou, mas precisava desabafar. Necessitava de proteção, e ambos sabíamos disso.

- Se eu não terminar até sábado, ele não me paga.

- O quê!? Ele ainda não te pagou nada!? E como ele espera que tu termine tudo isso até sábado, nas tuas condições? Velho safado, mas deixa quieto, eu vou dar uma lição nele, nem te preocupa!

- Nada disso! Não te mete. Olha, eu agradeço o que tu estás fazendo por mim, mas se criar problemas com o Seu Macedo, ninguém mais me dá trabalho aqui neste bairro, nem depois que eu ganhar meu nenê.

- E o que tu vai fazer? Abandonar o dinheiro depois de todo este trabalho?

- Vou fazer o possível pra terminar até sábado. Deus vai me ajudar...

- Tá louca, mulher, tu vai te matar trabalhando e perder esta criança!

- Está nas mãos de Deus...

- Deixemos Deus fora disso, ele não dá a mínima...

E, então, companheiro, fiz o que havia para ser feito. Não quis envolver-me, juro por tudo que há de mais sagrado neste mundo, mas não houve jeito. Quis dar o dinheiro do trabalho para a leoa, mas a desgracenta não aceitou. Então, só me sobrou uma alternativa: fazer o trabalho para ela. Obviamente, ela berrou, esperneou, xingou coisas que nem vale a pena descrever. Digamos que, no fim, percebendo que eu não desistiria por nada neste mundo, deixou-me trabalhar em seu lugar. Tentava ajudar-me, mas eu pedia para que pensasse no filho querido em seu ventre, e, assim, conseguia, na maioria das vezes, comovê-la. A filha pequena ficava em seu encalce, tão orgulhosa quanto a mãe, sem saber exatamente o que fazer. Nos dois dias de trabalho, brinquei bastante com ela, o que me deu um ânimo renovado. A cada sorriso que retirava de seu rostinho duro, meu coração parecia ganhar dez anos. Nem lembro há quanto tempo não brincava com uma criança. Tinha raiva delas, ultimamente. Mas aquela pequenina, tão solitária, tão rígida em sua postura independente – obviamente, uma herança materna – conquistou-me. Sentia uma vontade de abraçá-la, de cuidar dela e impedir que qualquer mal a atingisse.

...Veja você, companheiro, em que cilada fui me meter.

O Macedo apareceu no mesmo dia, perguntando o que estava acontecendo, o que eu estava fazendo ali... Depois que a leoa explicou, disse que não aceitava, que era um absurdo, e isso e aquilo... Aguentei o quanto pude:

- Macedo, tu não sabe a sorte que tens. Se dependesse exclusivamente de mim, já estarias a sete palmos do chão, com uma faca metida na barriga, e eu passando o resto dos meus minutos atrás das grades. Surpreendentemente, alguém ainda se importa contigo. Então façamos o seguinte: até sábado, tua grama maldita estará toda cortada, do jeitinho que tu quer, então tu vai pagar essa mulher. E até lá, fica fora do meu caminho, porque aquela ideia ainda não abandonou totalmente minha cabeça.

O Macedo não era homem de ouvir desaforos em silêncio, e eu sabia disso. Fiquei apreensivo enquanto ele me olhava com uma expressão de coisa nenhuma.Entretanto, desta vez, talvez por medo da minha cara de velho maluco, talvez por pena da pobre mulher, deixou as coisas como estavam e não criou problemas. “Vocês que sabem...”, limitou-se a resmungar.

E, assim, passei os dois melhores dias dos últimos dez anos. Trabalhei muito, como já disse anteriormente, mas valeu a pena. Ontem à noite – às onze e meia! – terminamos de cortar e limpar todo o jardim do Macedo, e ele e a esposa saíram alegres para ver como havia ficado. Modéstia à parte, fizemos um trabalho impecável, e o velho safado gostou. Pagou o que devia à mulher e questionou-me se tinha de pagar alguma coisa para mim também. Lancei-lhe um olhar de ódio e virei as costas, indo em direção à minha casa, satisfeito por provar o meu valor.

Antes de fechar o portão, a guriazinha, repentinamente, apareceu em meu lado e esticou-me uma florzinha amarela, a qual colhera da margem de uma valeta. Deu-me um sorriso do tamanho do sol e foi embora, caminhando contida.

Depois desta semana atípica, surge este sábado angustiante e tedioso para trazer lembranças, há muito adormecidas, para aterrorizar este velho caduco. Depois de muito tempo, sinto-me, novamente, terrivelmente só.

Já me acostumei com a solidão uma vez, companheiro, não sei se posso fazê-lo novamente.

Estou estudando minhas possibilidades...