O TEU SORRISO... (24/08/2005)

Certo. Antes de mais nada, faço aqui uma importante ressalva. Não pense você, seu bolo de folhas de uma figa, que, por eu ter escrito aqui três ou quatro dias seguidos, estou “escrevendo um diário”. Não estou. Nem sei por que coloco datas. Nunca segui as orientações fajutas daquele médico, e não pretendo segui-las de novo... Se escrevo aqui, não o faço por ter sido sugestionado pelo doutor, mas apenas pelo fato de meus amigos – a quem contaria minhas histórias – estarem morando meio longe, no momento, e as ligações interurbanas estão muito caras. Assim, anoto para não esquecer. Apenas por isso. Você é um bloco de anotações; nada mais.

Tendo deixado isto bem claro, revelo, agora, os acontecimentos diários. Pois bem, ontem, enquanto aqui escrevia, a campainha tocou, você deve lembrar... Para minha surpresa, quem estava parada à porta, quando a abri? Sim, a leoa em pessoa, toda suja e cheirando extremamente mal, após seu dia de trabalho. Com a nota de cinquenta amassada em uma mão e a orelha da filha amassada na outra, estava com uma cara furiosa. Nem tive tempo de cumprimentá-la, já saiu atirando o dinheiro na minha fuça e esbravejando palavras de baixo calão, cuspindo pelo espaço dos dentes que faltam:

- Tu acha, seu velho viado, que nós somos mendigas!? Ou tu é um tarado que anda dando dinheiro para as crianças!?

- Olha aqui, sua...

- Um velho sem-vergonha que não faz nada o dia inteiro, agora vem pra cima da minha filha, o que tu tá pensando da vida!?

- Olha, me deixa expli...

- Cala a boca! Eu vou chamar a polícia, a Maria da Penha, qualquer um, e vou te botar na cadeia, seu velho filho da...

- Epa! Dá pra me ouvir!? Eu não sou tarado, sua maluca! Sou um cidadão respeitado, trabalhador e honesto. Se dei esse dinheiro pra pirralha, foi porque fiquei com pena de vocês, trabalhando de sol a sol cortando aquele matagal do Macedo, esse sim, um velho sem-vergonha!

A mulher baixou um pouco a crista

- O Seu Macedo é um bom homem...

- Ah, claro, um santo em pessoa! Botando uma mulher grávida e uma criança pra capinar a casa dele! Bem, não tenho nada que discutir, faça o que quiser, a vida é sua! Mas não me difame! Se dei o dinheiro pra menina é porque sabia que você não iria aceitar. Fiquei com pena de vocês, esse foi meu erro. Não se preocupe, não faço mais, Dona. Passar bem.

E bati-lhe a porta na cara, sem choro nem vela.

Que leoa, companheiro, que leoa! Uma mulher e tanto, pra homem nenhum botar defeito. É feia como o Diabo, mas quem se importa? As mulheres bonitas andam tão fúteis...

Bem, o fato é que hoje o sol novamente não saiu, e o frio estava de matar, além da garoa, que caia em uma cadência forte. O tempo estava feio, mas meu coração insistia em bater. Pensei que embaixo de minha árvore, lá na calçada, não haveria chuva, e decidi sair. Penteei os cabelos que me restam, fiz a barba com o cuidado de um adolescente iniciante, vesti uma camisa nova e lá me fui, com a cadeira dobrada sob o braço.

A leoa já lá estava, com sua cara amarrada de dor, cortando a grama ainda mais lentamente do que o habitual. Trabalhava cinco minutos e parava dez. Uma tristeza sem fim. Por causa da chuva, não deixou a filha ajudar. Esta ficou sentada, no chão, sob o alpendre, com um livrinho de colorir, sem nenhuma pontada de alegria ou satisfação. Quando a mãe chegava perto dela, a pequena pedia, em tom choroso, alguma coisa que eu não conseguia entender. A mãe ralhava, e já voltava, com uma mão nas costas e a outra alisando a saliente barriga, como quem diz “aguenta mais um pouquinho, meu filho, e já paramos”, e seguia, morosa como nunca. Para você ter uma ideia, fiquei mais de duas horas sentado e o gramado parecia sempre a mesma coisa. Um aperto sem fim no coração.

De quando em quando, surpreendentemente, ela me lançava olhares, nos quais havia um ar de novidade para mim; misturado com a raiva e a dor habituais, surgia, por vezes, um toque suave, sutil, que, a mim, pareceu, perfeitamente, um pedido de desculpas. Virei a cara, todas as vezes, com ódio por importar-me, com raiva por ela atingir-me.

Ao fim da tarde, quando eu estava prestes a recolher-me, uma surpresa: a menina veio até mim, sem eu perceber, com sua cara repleta de sardinhas:

- Tio, a mãe perguntou se o senhor não consegue um copo d’água pra gente.

- Ah, por que, o São Macedo saiu e não deixou água pra vocês?

- Não, ele tá em casa, mas ela pediu pro senhor...

Confesso que não pude conter um sorriso de satisfação, nem sei por quê. Peguei uma jarra de água fresquinha e dois copos. Adicionei, ainda, um saco de biscoitos, e fiz dois sanduíches, com queijo e presunto, só pra leoa não me chamar unha de fome. Coloquei tudo em uma bandeja de metal, com guardanapos de papel que eu mesmo dobrei. Entreguei pra guria, que, quando viu o lanchinho, desabrochou um sorriso que estava há muito tempo guardado em seu coraçãozinho fechado. Não consegui dizer nada, tampouco precisou. Ela não agradeceu, tampouco precisou.

Apenas nos olhamos, e, em seus olhos, vi uma força e uma esperança que jamais vira. A pequenina, toda cuidadosa, pegou a bandeja de minhas mãos e foi indo, pé ante pé, em direção à mãe. A mulher olhou para mim com carinho, e deixou escapar um sorriso do tamanho do mundo. E, apesar da boca banguela, da barriga de grávida e da cara suada, pela primeira vez, não a achei feia. Estava muito bem, na verdade.

Corei, como um adolescente. Rapidamente, peguei minha cadeira e entrei.

Não sei se posso prosseguir com isso, companheiro; não estou mais em idade para estas coisas. Vou morrer a qualquer momento, então por que envolver-me física ou emocionalmente com outras pessoas? Não me importo se não houver ninguém chorando no dia do meu funeral.

Amanhã não saio de casa.