O TEU SORRISO... (21/08/2005)
Domingo, 21 de agosto de 2005, 20:07 hs.
Certo, certo... Ao reler minhas últimas anotações, percebo que jurei não mais escrever um diário. Bem, se você fosse uma pessoa, eu teria de inventar desculpas, justificar-me por estar quebrando minha promessa, mas como não passa de um emaranhado de folhas recicladas sujas, não vou perder o meu tempo. Senti vontade de escrever e aqui estou. Ponto. Minha única justificativa é que eu necessitava relatar as experiências vividas nesta tarde de inverno e, como nenhum amigo estava em casa, resolvi escrever aqui mesmo, só pra não esquecer. Contente-se com isso.
Bem, sinto muito dizer a você, mas a vida de um velho não é nenhum parque de diversões. Sei que a ideia pregada por aqueles adoráveis – e ridículos – velhinhos das propagandas da televisão não é exatamente esta, mas a realidade deve ser dita. Para se ter uma ideia, o ponto alto de meus dias tediosos é arrastar minha cadeira de praia favorita até a frente de minha casa e passar a tarde instalado sob uma árvore, apenas com as pernas banhadas pelo saboroso sol de inverno. Quando não há sol, é impossível fazê-lo, pois o vento e o frio são insuportáveis; desta forma, quando acordo pela manhã, a primeira coisa que faço é ir até a janela e verificar se o sol está agradável. Quando está, meu dia se anima um pouco; quando não está, fico emputecido, pois sei que não haverá nada para fazer a tarde inteira. Hoje, felizmente, o sol saiu. E como estava forte! Minhas pernas aqueceram rapidamente, a ponto de eu ter que as esconder na sombra fresca. Ali passei minha tarde.
Você pode pensar que tudo correu bem, tranquilo como água de poço, mas, se assim o fizer, estará redondamente enganado. Uma irresponsável acabou com meu dia.
Veja a situação: após uma hora sentado, surge, em algum lugar, o insuportável ruído daquelas máquinas medonhas de cortar grama. Pronto, lá se foi minha paz! Postei meus olhos no meio do sol à procura do infeliz, e, para minha surpresa, não era um homem, mas uma mulher. Uma mulher sujismunda e com jeito de pobre. Maravilha, em vez de estar em casa, cuidando das crias, fica fazendo barulho e importunando os bons cidadãos. Quando minha vista se acostumou com a claridade, percebi um agravante. A filha da mulher, uma pequena de seis ou sete anos, estava com um saco, catando as gramas com a mão. Crime 1: exploração infantil. E isso não é tudo! Para piorar, notei que a mulher ainda estava grávida! Crime 2: atentado contra incapaz. Pensei seriamente em chamar a polícia. Refleti, no entanto, que isto poderia prejudicar o Macedo, o dono da casa em que a infeliz estava trabalhando. Não que eu tenha pena do Macedo, estou pouco me lixando para ele; o fato é que não quero aturar um insuportável me atormentando a esta altura da vida. Resolvi interpelar eu mesmo:
- Mocinha! Ei, mocinha! – chamei, enquanto atravessava a rua deserta.
- Oi, moço...
“Moço”, vê se pode!? Que falta de respeito! Olhando de perto, pude perceber que a desgraçada, além de irresponsável, era banguela; faltavam-lhe uns dois dentes na frente. Vendo sua cara de suor, seu cheiro insuportável e seu rosto de dor, admito que senti um pouco de pena, a qual logo refutei.
- Minha filha, você não sabe que está cometendo um crime grave!?
- Eu!?? Que isso, tô trabalhando, moço...
- Em primeiro lugar, moço é o senhor seu pai. Em segundo lugar, está cometendo um crime, sim, senhora! Dois, na verdade. Esta menina é sua filha? Pois bem, isso se chama exploração infantil. Esta menina deveria estar na escola, não trabalhando. O segundo crime é mais moral do que jurídico: está pondo em risco a saúde da criança que está em sua barriga. Este sol está de matar, a senhora deveria estar em repouso, e não fazendo trabalhos braçais. – a desgraçada me olhava com cara de sonsa, mas a resposta que me deu, furiosamente, desmentiu esta aparência:
- Quem tu PENSA que é para me dar lições de moral!!?? Se eu pudesse escolher, tu acha que eu estaria aqui, neste sol de matar!? Tu acha que eu não queria deixar minha filhinha em casa, estudando e brincando!? Mas o senhor vai trabalhar pra mim, se eu ir para casa, agora? Vai cuidar da minha filha, se eu deixar ela em casa? E vai alimentar ela e o meu bebê, se eu parar de trabalhar...? O que é pior: uma criança trabalhando ou uma criança morta de fome?
Obviamente, companheiro, não tive respostas para fornecer. Claro que eu tinha conhecimento de tudo o que mulher me falara. Se ela estava trabalhando naquelas condições, é porque não tinha outras alternativas. Entretanto, a arrogância impediu-me de considerar seriamente o que estava em minha frente.
Com o rabo entre as pernas, ainda fiz algumas perguntas de praxe à mulher. Perguntas as quais eu já obtinha a resposta: onde estava seu marido; por que não tentava receber algum auxílio do governo, etc... A mulher não se dignou a responder... Naturalmente, não era de minha conta.
- Agora o senhor me dá licença, senhor “defensor da boa vizinhança”, que piedade não vai encher nossa barriga. – e, furiosa, religou aquela máquina de fazer barulho.
Fiquei chocado com a audácia da leoa. Com as mãos no bolso, a cabeça baixa e resmungando qualquer coisa, voltei para minha inutilidade, embaixo da árvore.
Não fiquei lá por muito tempo, pois o som insuportável do cortador de grama feria muito os meus ouvidos e, mais ainda, o meu coração...