Eternos são os Coelhos de Cartola

Como chove lá fora. Aqui dentro, aquecido mas com o coração gelado. Café, e alguns biscoitos. E o mundo , girando rápido demais, e eu inerte. Quando o inesperado acontece, meu velho Nokia, solta um ruído estridente, era alguém ligando - Não conheço!- Atendi.

- Alô?

- Alô?

- Quem é?

_ Quer falar com quem?

- Deve ser engano - disse eu.

Seja lá quem for, esse alguém estava preocupado, chorando, estava realmente sem saber o que fazer. Minha consciência dizia pra ligar de volta, a lógica não, porém resolvi ser inconseqüente, e liguei.

- Alô?

- Você me ligou agora pouco, por engano, mas notei que não está bem, posso fazer alguma coisa?

- Você consegue achar formas nas nuvens?

- Como? - E ouvi a pergunta mais uma vez.

- As vezes, pra ser sincero, desde criança não faço isso. E nunca fui bom. Por quê?

- Eu consigo, agora mesmo, avistei um coelho de cartola, correndo atrás de um novelo de lã. Queria tanto um novelo de lã.

Estranho e maluco, é o que soava tudo aquilo, mas o choro continuava tão intenso, que resolvi continuar.

- E o que você faria se tivesse em suas mãos um novelo de lã?

- Tanta coisa. Costuraria uma blusa colorida, desenrolava, para depois enrolar novamente. Correria atrás, como todos os coelhos de cartola fazem, talvez recuperasse o tempo que perdi.

- Sempre há tempo para se recuperar o que perdeu. Nada é estático, o tempo é relativo, e a eternidade é longa, sempre se consegue o que quer.

- Não. Não se consegue. O passado é inalterável. O futuro sombrio até que se viva ele, e existem coisas eternas, que não são tão eternas assim.

- Eterno é sempre eterno- disse.

- Eterno é sempre eterno, embora existam alguns que são dolorosos demais. Perder o que mais se ama. é uma delas.

- Perdeu alguém?

- Perdi.

- Sinto muito.

- Não sente. Me conhece? Não, não conhece, então não sinta muito. Aliás não sinta nada. É melhor assim.

- Tudo bem. Ah estou vendo, o coelho também. Precisei redobrar a atenção, mas achei.

- Lindo ele. Queria ser livre como ele, aliás como as nuvens. Não são de lugar nenhum, e não pertencer é ao mesmo tempo onipresença.

-Talvez. É tem razão. Também gostaria de ser uma nuvem.

- Eu vou pra lá.

- Como?

- Perto do coelho, acima dele, através. Quero sentir como é tocar o vazio, quero fazer parte dele.

- Um dia, todos nós vamos descobrir estas sensações.

- Queria agora, vivo.

- Impossível, mas depois...

- Acredita que os maus vão para o inferno? Eu acredito, eu irei, lá não existem coelhos, pelo menos não como este que estamos vendo no céu.

- Por que diz isso? Não há pecado que não seja perdoado.

- Sim , um.

- Acho que não.

- Quero ver você, onde está? - disse eu.

- Longe, muito longe.

- Espera que eu chego, estamos na mesma cidade, sei disso.

- Então sabe que não há coelhos, somente chuva, e frio.

- Vemos aquilo que queremos ver, acredite que eles existem, que eles existirão, nem que seja apenas para nós. Não faça, seja lá, o que queira fazer. Respire, sente, e me espere. Onde está?

- Está frio aqui, chove muito. Perdi.

- Levante, vença. O mundo não para se você parar.

- Por isso. Não quero ver. Não aguento. Dói. Alma, não tenho mais.

- Pelo amor de Deus, para. Pense, há saída, posso ir aí, iremos caminhar na chuva, falar bobagens, pular nas poças d'água, ouvir o sino da Sé, respirar,VIVER.

- Como diz tudo isso. Não me conhece, nunca me viu. Somos dois desconhecidos. Para de fingir que se importa, eu não me importo. Só precisava ver mais alguns coelhos de cartola, antes...

- Então iremos ver coelhos, sapos virando príncipes, princesas em suas torres, e cantaremos no municipal, seremos bons desconhecidos.

- Sim, dois desconhecidos.

Inexplicável era o que sentia, nada sabia. Sim era quem eu esperava, não posso perder. Então disse:

- Não posso perder você. Sem você, nunca mais cinema, nunca mais poesia, nunca mais feliz.

- Bonito de sua parte, mais ninguém muda meus ideais, e o meu é morrer agora , do que esperar e morrer depois. Eu me perdi, me desencontrei, me feri, estou morrendo um dia de cada vez.

- Todos nós estamos.

- Jamais ficarei sentando na varanda, de cabelos grisalhos, face enrugada, crianças correndo.Morrerei antes.

- Posso fazer tua vida, bela, como a aurora de primavera, como gosto de amora, como o toque da lua...

- Amei conversar com você, tu és sensível, inocente, e isso se perdeu na nossa raça, humanos cada vez mais cruéis, e isso me assusta. Quer saber, senti aqui, a brisa da primavera, sujei as mão com amora, e senti a lua sorrir pra nós. Vou feliz.

- Não me deixe, alma desconhecida, não quero nada solto ao acaso.

- Quem sabe o acaso não se torna realidade?!

- Quem sabe, não posso ajudar...

- É assim que tem que ser, desconhecidos, soltos no acaso, quem sabe não cometo outro engano em minha vida, e assim conhecerei você. Há enganos que valem uma vida. Mas nada vale a eternidade. Adeus...

- Para, espere, cadê você? Alô? Alô? Oi? Está aí?

Não fiz o suficiente, não sei o que houve, nunca mais consegui conversar de novo. Telefone sempre fora de área, minha vida fora de rumo. Será que ajudei? Ou piorei? Meu desafio, é esperar o tempo, caminhar sozinho, e sonhar com coelhos de cartola e imaginar que através dele e sobre ele, há pessoas, que perderam a esperança, e que com ele, consigam descobrir o sentido de toda uma eternidade. Por favor meu Deus me trás de volta esta menina, pois tudo que tenho é o que ela me ensinou.

Há enganos que valem uma vida, e amores que conhecem a eternidade.

Affonso Santos
Enviado por Affonso Santos em 26/01/2011
Reeditado em 27/01/2011
Código do texto: T2754125
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