O ESCRAVO DE RAMSÉS - PARTE 2
A aproximação de uma carruagem de forma repentina e barulhenta desviou a atenção do evento e, mais ainda, uma mulher bela, tanto em trajes quanto em beleza física.
– Quem ousa interromper a cerimônia? – quis saber o juiz presente.
– Sou Demétria, secretária de paz da princesa Bartira, do reino de Abdul.
– Que deseja a nossa adorada Bartira?
– O rei Abdul está doente. Os afazeres do castelo se fazem urgentes e acumulados e necessitamos de escravos. Poupe do castigo este pobre coitado que vou levá-lo agora mesmo à presença de Bartira.
– Embora não aceite fiança o nosso faraó, o condenado pode ser negociado como escravo e livrar-se assim da pena e a responsabilidade recai sobre o adquirente. Sabe, no entanto, que os valores da negociação são altos. Não sei se valerá à pena ao nosso rei.
– Não importa a Abdul o valor e ele está ciente de todos os riscos. Liberte-o agora mesmo.
Livrou-se assim Ahamed de perder a mão direita e seu peito encheu-se de gratidão e alegria. Aquele infeliz menino, vagabundo e sem família, atirado na rudeza e na solidão das ruas, viu transformar-se a vida de um momento para o outro como consequência afortunada de um fato corriqueiro nas ruas do Cairo nos tempos de Ramsés. A fama de Bartira como favorita do rei Abdul era inquestionável. À bela princesa não faltavam o conforto e as riquezas do castelo onde vivia. Alta, olhos azuis brilhantes e expressivos e tez morena acentuada pelos raios abundantes do sol que invadiam os amplos espaços dos seus aposentos. As escravas cercavam-na de préstimos e atenção. Foi este ambiente de riquezas e maravilhas que acolheu Ahamed e o viu transformar-se de um raquítico e débil guri num forte e garboso mancebo. A princesa, acompanhando de perto esta mudança, mudava de igual forma o jeito de ser para com ele. Os músculos, desenvolvidos no exercício diário das pesadas obrigações como escravo, eram agora o colírio calmante que a enchia de admiração e desejos por ele.
Tornaram-se amantes. A princípio, às escondidas, tendo como testemunhas de seus momentos proibidos não mais do que as paredes e pilastras daquela morada.
– Meu coração não vê a hora de unir-se ao seu sem que precisemos ocultar ao mundo os nossos sentimentos, meu grande amor. Amo-o como nunca amei outro homem. Não foi à toa que rejeitei as investidas aventureiras de muitos que aqui estiveram trazidos pelo faraó. É porque sabia, do fundo da alma, que um dia seria sua. O fim de Abdul está próximo e, como rainha, não precisaremos fingir nossa paixão.
Ahamed deixava-se levar pelas declarações de Bartira, correspondendo integralmente. As mãos macias que penetravam os bastos cabelos macios do moço, como as unhas pontiagudas da futura rainha, deslizavam com afeto sobre o couro cabeludo, eriçando-lhe os pelos.
– Que mais poderia eu desejar da vida? Tanto sofri que já perdia as esperanças de haver alguma felicidade neste mundo. Até que, por desígnio dos deuses, surgiu você, salvando-me a existência. Mais do que isto, mostrou-me o doce encanto do amor. Quero viver a seu lado eternamente; este é o meu lar e você é tudo que quero e que preciso.
A morte de Abdul trouxe mudanças. Bartira, no trono, não cumpria, à altura do pai, as árduas tarefas de um monarca. O temperamento calmo e parcimonioso que a todos agradava e havia conquistado desapareceu com o tempo. Mudou leis, criou estatutos e afastou amigos e colaboradores. Tornou-se uma rainha má, na opinião de seus próprios conselheiros. As penas de morte, assim como as execuções, triplicaram, colocando em pânico a sociedade do seu tempo. Ahamed, por mais que a alertasse, não obtinha sucesso em abrir-lhe a visão ao que vinha ocorrendo. A paixão já não era a mesma. O fogo do amor diminuía ao transcorrer dos anos, os mesmos anos implacáveis que empanavam também a frescura da pele e o cativante brilho da fisionomia da rainha.
Alguns anos se passaram. A herança de Ramsés II permanecia gloriosa, exposta nos templos e palácios da capital Tebas e, nas suas vizinhanças, Luxor e Karnac eram o habitat de Deus sobre a terra. De uma maneira inteiramente excepcional, Ramsés III permite-nos lançar uma olhadela sobre a vida íntima do harém e suas diversões. Nos apartamentos das torres da “Grande Porta”, situada hoje na margem ocidental do Nilo, fez-se representar em suas relações familiares com suas favoritas. As mulheres, e ele próprio têm por únicas vestes uma coifa, um colar e sandálias. As esbeltas e graciosas criaturas cercam seu senhor, que traz à cabeça a coroa azul dos faraós, jogam com ele o xadrez e apresentam-lhes às narinas buquês de flores cheirosas. A gente o vê pegar pelo queixo sua encantadora companheira e não se pode contemplar este gosto de terna intimidade sem que ocorra a lembrança de que aquele mesmo soberano haveria de morrer, vítima de uma intriga do harém, na qual estiveram imiscuídos seus familiares mais imediatos.
Além das moças nativas, o harém compreendia representantes de regiões longínquas. Mais de uma princesa oriental foi enviada com grande pompa e ricamente escoltada para o vale do Nilo a fim de ali se tornar esposa oficial do filho do sol e contribuir para a melhoria das relações políticas entre os dois países. Depois de alguns dias de festa, em que a recém-chegada era coberta de presentes e honrarias, esta desaparecia atrás das grades do harém e os documentos históricos fazem o silencio mais completo a respeito delas. Sabemos somente que uma tumba lhes era reservada a oeste de Tebas e o que conhecemos da psicologia daquele tempo nos permite crer que a estranheza dos ritos fúnebres egípcios devia encher de inquietação e de angústia mística o coração daquelas belas exiladas.
Evidentemente, a escolha das concubinas era determinada, em primeiro lugar, pelos encantos femininos, sem que a nobreza de sua origem fosse tomada de maneira alguma em consideração. O faraó tinha por costume manifestar a particular estima que mereciam certos personagens da corte, oferecendo-lhes esta ou aquela beldade do seu harém pessoal. Não sabemos quanto tempo as pensionistas do harém viviam a cargo do soberano. É, entretanto certo que várias dentre elas, cujos nomes conhecemos, passaram, após a morte do seu senhor, para o harém de seu sucessor e ali ocuparam um cargo de destaque.
Ruana viera da Pérsia para encher de beleza e magia o castelo de Ramsés III e ele, tendo na conta de um dos mais fiéis conselheiros o garboso Ahamed, fez questão de ambos aproximar. Agora, com 25 anos bem distribuídos, em beleza física e inteligência, Ahamed exercia no palácio as funções de escriba e gozava de grande respeito e admiração perante a nobreza. O passado de miséria ficara no esquecimento. O felá esfomeado e vagabundo, o ladrão de feiras emagrecido era apenas um a mais dentro da maioria esmagadora que era a população do Egito, a classe dos dominados. Mas quis o destino que uma sentença fosse interrompida e lhe trouxesse uma grande oportunidade. Amou-o Bartira pela constatação dos fatos que só fizeram comprovar a grande fé que nele depositava. Amou-o por vê-lo escravo durante o dia e seu servo favorito em todas as outras horas, estudante fervoroso, amante das letras; tanto ou mais que as curvas do seu belo corpo. Devia a ela, sem dúvida alguma, a sorte que conquistara, devia-lhe, mais do que isto, a salvação.