Sem Vida no Coração
Para que te sentisses bem com os teus vícios, dizia-te que eu próprio, em tempos que descrevia ao pormenor, cruzara pântanos parecidos, para a versão masculina. As minhas perversões, dizia-te, beiravam o absurdo na perene procura de estímulos fortes, ainda mais fortes, para aceder a coisas onde as noites se gastavam em doentias procuras e nas quais as luzes só balizavam caminhos de perda. Media as mulheres pelo tamanho do busto, pela rijeza das nádegas, o jeito de abrir ou fechar a boca sempre vista fora do contexto geral do rosto e sempre avaliada como objecto sensual. De desvarios eu estava, consequentemente, formado, era mestre, garantia-te. Se eu era um tarado sexual? Claro que sim, ainda sou, nesta mansidão que aqui vês, nesta força de vontade, neste dobrar-me aos teus caprichos nas esquinas do lençol. Faço-o por prazer é certo, mas repara como há diferenças em mim. Eu sou a perversão com pernas, o que procura em ti o traquejo que aprendeste, o que ignora a tua alma por inteiro. - Não é verdade, contestas. Tu jamais te interessarias por alguém assim, acrescentas. E…ficávamos noites a fio a ver passar os barcos ao largo, a sentir as luzes da cidade adormecida, a escutar o escuro que nos tornava belos um para o outro. Nesses momentos, casávamos as almas e os nossos corpos sabiam bem como a mistura íntima poderia acontecer com a suavidade de uma melancolia.
Quando te beijo, disse-te tantas vezes, ficas logo transformada em estrela que dorme nua. Depois que te calas, é só nos gorjeios de amor que encontro motivo para te analisar. Ficas transformada em sereia, daquelas que ou já foram desencantadas ou trazem, de origem, outras peles mais lisas. Digo sereia por ser impossível a consumação do amor carnal naquele todo que, à semelhança do que acontecia aos marinheiros, só se usava em metade dos precisos. Beijam-se as sereias, usam-se as suas farturas de seio, a lisura do rosto, a boca em carne túmida. Mas, tal como as virgens dos templos, todo o amor se gasta em chamas inconsequentes e toda a trajectória do sexo morre sem acontecer. Contigo é um pouco assim, também. Chegas cansada dos outros, moída, sem tempo que não seja para a higiene, para dormir e esquecer. E tento tudo, até a descrição dos falsos horrores que te conto para branquear o teu comportamento. As mais das vezes fico, ávido mas imóvel, tenso mas conformado com a tua compreensível recusa. Sei que me negas o corpo apenas por estafa e sei como lamentas que se não possa amar só com o espírito.
Uma vez disseste que a prostituição é um suicídio lento, um meio mais para torcer a sorte guinando a alma para um lugar escuro onde a podridão se esbate. - Fica só o cheiro da pestilência, disseste, mas permite que a volta aos roteiros da família seja como entrar numa sorte nova. Quando chegavas, já deixavas as sombras lá fora e vinhas vestida de serenidade. Foste assim até aquele dia, contaste-me. Depois, o teu homem, o mesmo que te empurrou para a rua, pegou no dinheiro, nos teus fios de ouro e anéis e desapareceu sem te deixar um bilhete de despedida. Ficaste a saber que, também para ele, não existias, não tinhas dimensão nem peso, que o que pensavas nunca contaria, que, provavelmente, nem alma terias para te acompanhar nas piores porções do tempo. Ficaste assim, desmotivada, insensível, premeditada. Repetias, afinal, uma história comum, absolutamente vulgar. Sem pais, sem marido, sem filhos, sem verdadeiros amigos, o mundo torna-se um abismo e qualquer pessoa um náufrago sem razão para viver, sem sentido, sem objectivos. Morrer ou viver dependerá, apenas, da sensibilidade de cada um. Tu, por exemplo, continuavas por cobardia. O suicídio é um acto de coragem extremamente cobarde, passe o aparente paradoxo. O acto exige bravura, a desistência da vida é cobardia. Continuaste na profissão porque não sabias fazer mais nada, porque não tiveste ânimo para abrir mão da folga financeira, por não conseguires ver-te como empregada doméstica ou mulher-a-dias, mas, sobretudo, porque ele continuava a ser o fogo que te acendia e onde te queimavas sempre. Quem se enlameia deixa de estranhar o charco, concluíste.
Eu sei que entrei na tua vida por acaso. Sentiste que eu não era um cliente comum. Trazia a mesma sede dos outros mas recusava a mera relação carnal, nos moldes convencionais, à revelia de pormenores e sempre com pressa. Eu, dizias, era diferente, talvez mais atencioso, mais capaz de te entender sem juízos de valor ou sem tentar pautar a tua vida pelos cânones da normalidade. Gostava de conversar e era, nos diálogos, um tipo íntegro, frontal, honesto, tudo virtudes que supunhas já não haver. Normal, de resto, para ti, é isso, esse vaguear por lugares escusos, o contacto com corpos que alisas por dever de ofício, a arte de fingir prazer quando é o asco que deixa marcas e degrada a tua vontade. A princípio achaste que eu era só mais um apesar de diferente. Depois, convenceste-te que eu merecia horário alargado e mais confiança. Agora, esperas-me como se dependesse de mim a tua paz, a tua felicidade. Dependem?
Deixaste de aceitar o meu dinheiro, deixaste de por a tua vida em primeiro lugar e aprendeste que os que trazemos no coração têm direitos e prioridade sobre tudo. Mas, a verdade, é que preciso sentir-te mais segura nas convicções, mais certa do que não queres, mais apta a voltar a gostar, realmente, de alguém. Na medida em que te prefiro a muitas outras de percurso menos comprometido, me acho, eu sim, um anormal, um fora de série, “um porco” como diriam os meus colegas ou os meus amigos, se lhes contasse como me envolvi contigo e como te acho importante na minha vida. Sei que muitos me tomariam por alguém sordidamente voltado para o que a mente humana tem de menos limpo, de mais doentio. Gostar de uma mulher que se entrega a qualquer um por dinheiro e que já nem se esconde para manter uma réstia de dignidade não é vulgar. Atenuantes eu teria se te impusesse uma mudança de comportamentos e um novo recato, mas decidi que o meu gostar é incondicional e, ainda, que só tu podes, se quiseres, inflectir o rumo da tua caminhada. Eu vou estar, sempre, ao final da noite, à tua espera. Eu vou estar, sempre, pronto para te acompanhar sem críticas, sem falsas moralidades e com um afecto estranho mas leal. Será assim, até que me peças que desapareça, até que me digas que preferes a rua à estabilidade de um lar comum.
Estavas estranha quando saíste. Alheada e de olhar vazio mas atribui isso a outras coisas embora uma certa intranquilidade me abanasse interiormente. Quando nos pautamos por instintos, todas as pequenas coisas assumem o relevo de sinais vitais. Contra o que era usual não te despediste. Ajeitaste a bolsa, alisaste o cabelo, esticaste a saia e perdi a tua silhueta logo que a rua, escurecendo à medida que entravas na zona arborizada, apagou todas as imagens. Já não ouvi os teus gritos nem – tão pouco – o diálogo agreste que os precedeu. Não me contaste que ele tinha voltado e que pretendia impor ritmos, objectivos financeiros e mudar-te para outras dimensões mais rentáveis do negócio. Nessa altura sentiste como era sórdida a tua vida. Pensaste em mim mas algo de visceral ainda te atraía para o algoz e para a fatalidade de uma relação a todos os títulos sem sentido. Era como se uma existência como a de toda a gente te estivesse para sempre vedada. Resistias pela convicção de que, se o não fizesses, baixarias a uma condição de subserviência sem paz e sem retorno. Enfrentaste-o e ele bateu-te. Insististe e ele passou a usar na agressão o cinto, depois, uma ripa de madeira, os pés… Parecia ter enlouquecido e só te largou quando alguém, naquele pedaço de cidade sem lei, lhe cortou a garganta e o deixou a morrer no passeio. Soube de ti depois de te procurar muito. Estavas inconsciente, com múltiplas fracturas e irreconhecível. Ninguém conseguiu refazer a história completa e tu recusas-te a falar. Choras e não queres ver ninguém. Nem a mim. A morte dele, longe de te libertar, apagou uma espécie de fascínio que vos unia, que te impedia de deixar a prostituição, que dava razão e coerência a todas as coisas infames que faziam parte do teu quotidiano. Uma sensação de perda ainda vai perdurar muito tempo no teu espírito e vai travar por muitos meses a tua recuperação, disse-me o psiquiatra que te assiste. A nossa ligação não acaba aqui, mas interrompe-se aqui. Saberei dos teus progressos por telefone e deixei no Hospital os meus contactos. Vou esperar que me procures. Livre. Finalmente livre para recomeçar.
FIM