O Escravo de Ramses - PARTE 1

Todas a formas e todas as cores, que possam atrair a atenção e despertar, não só a curiosidade, mas os paladares mais exigentes, ali estavam expostas. Completamente apinhados de barracas simples, cobertas de uma lona branca e bastante forte, que as protegiam das fortes chuvas que ali se faziam freqüentes, e guarnecidas nas laterais por tecidos avermelhados, encontravam-se os dois lados da rua. A multidão se espremia e disputava espaços raros em busca daquelas que ofereciam os melhores preços e as melhores mercadorias. A vista das enormes e apetitosas ameixas, do vermelho das maçãs, realçado pelo brilho das gotículas que resvalavam do alto de uma pequena abertura, enchia de desejo os olhinhos de Ahamed e de água a sua boca, que desde a noite anterior, até aquele já quase final de tarde, ainda não provara alimento.

Valeria a pena se arriscar e pagar o preço da fome implacável? Por culpa do próprio regime em rigor naquela terra distante, a pobreza excessiva destruira a dignidade e a esperança da maioria. Ahamed era o exemplo vivo desta desumanidade. Seu corpinho raquítico destoava da idade de 14 anos vividos em meio à fome e à miséria. Os olhinhos fundos nas faces encovadas acompanhavam com agilidade o movimento da turba. Ao contrário daquela sua aparência, desfilava a sua frente a nata privilegiada, mostrando sem pudor ou constrangimento o produto do ganho fácil, fruto da discriminação.

Ainda não caíra com força a chuva. Restara, do temporal da véspera, o barro em alguns pontos da estreita rua de terra. As mulheres pisavam com cuidado e desviavam-se das poças protegendo as belas e coloridas sandálias, enquanto os homens que trajavam túnicas preferiam erguê-las até a cintura, não se importando em chafurdar os pés no negro lamaçal recém formado.

Ahamed não despregava os olhos de uma das barracas a sua frente. Era repleta de frutas; nozes, pêssegos, enormes cachos de uva pendurados a balouçar ante a sua visão maravilhada. Encostara-se no muro branco de uma residência a uns dez metros do portão e ali ficara, esperando a oportunidade de se aproximar sem ser notado. Talvez não tenha percebido a chegada de um morador descendo as escadas do terraço, trazendo nas mãos algumas sacolas contendo lixo. Ele abriu o portão, olhou para o menino, mas não esboçou nenhum tipo de reação. Caminhou alguns passos para o lado oposto, ergueu a tampa de uma enorme caçamba, atirou lá dentro as sacolas e retornou, subindo as escadas.

As ofertas tentadoras atraiam a todos que passavam. Os preços estavam expostos em tinta preta sobre plaquetinhas amarelas espetadas nas mercadorias. A multidão aglomerava-se ao redor, cobrindo com freqüência a visão de Ahamed. Súbito, uma idéia pairou em sua mente. Porque não se infiltrar no meio dos grandalhões para roubar algumas frutas? Era tão miúdo que talvez não dessem por sua presença. Esperou a passagem de um burro, montado por um sujeito muito magro e sem camisa que transportava uma menininha em sua garupa. Atravessou e meteu-se no meio dos outros. Uma gorda, vestida num avental branco e encardido, atendia aos pedidos, pesando em uma balança quadrada as mercadorias e ensacando as moedas no enorme bolso da frente. O moleque, sem que ninguém notasse, passou para debaixo de uma das bancas das barracas e ali ficou, na espera de uma oportunidade.

– Aproveitem! As melhores frutas da estação pelos melhores preços estão aqui – gritava a mulher e depois sorria, exibindo os dentes amarelados, com algumas falhas no lado esquerdo da boca. Ahamed, encolhido por trás de alguns balaios de vime, esticava de vez em quando a mão e puxava um pêssego ou uma ameixa, saciando, aos poucos, a fome.

Eis que surgem, entre a freguesia, vestidos em seus uniformes – saiote de linho alaranjado, jaqueta com cinturão de fibra de algodão e alpercatas de pano reforçadas com tiras de couro – os guardas do palácio imperial, fazendo a costumeira ronda. Ahamed os viu. De onde estava, acompanhou os passos de um deles que, súbito, retornou e veio em sua direção. Percorreu-lhe um calafrio e pressentiu algo ruim, quando duas enormes pernas pararam diante dele. Tentou sair dali e correr, mas já era tarde. Ao erguer-se pelo outro lado da barraca sentiu duas mãos pesadas que o agarraram pelo pescoço. O homem que vira minutos antes saindo da casa esperou o momento certo de tirar mais um desfavorecido de circulação.

O flagrante da prisão levou-o diretamente ao departamento de polícia onde permaneceu por duas semanas encerrado em um cubículo de oito metros quadrados junto com mais três menores que, como ele, se condenados, e certamente o seriam, receberiam o mesmo castigo. No Egito daquele tempo não havia apelação, idade e, tampouco, fiança para os crimes de roubo. Perder a mão, decepada ao golpe da cimitarra, era o que aguardava Ahamed. Triste penalidade para o triste suplício da fome que pede apenas que seja saciada.

Julgado e condenado chegou o dia da execução da pena. Foi levado a campo aberto na entrada do deserto e amarrado a duas traves fincadas na areia úmida e branca, na posição de pé, braços e pernas abertos e com os pulsos e mãos esticados e atados em grossas cordas. A mão direita pendia, inerte, aguardando o fim trágico. Ali se encontravam os homens da lei, representantes do faraó, testemunhas e outros interessados e curiosos. Foram lidos os termos da pena. Em seguida, um trecho do Alcorão completou a cerimônia. O carrasco apresentou-se; os braços nus, musculosos e queimados pelo sol. As mãos peludas seguravam com firmeza a arma que brilhava e causava medo.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 24/01/2011
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