Hara Quiri

Dia: Terça-feira. Ano: 2010. Estação: Verão.

- Alô?

- Allan?

- Eu... Quem?

- É a Mya, tudo bem?

- Ah, oi, Mya... Eae?

- Você me ligou. O que foi?

- Ah, nada de mais... Ia te chamar pra fazer alguma coisa hoje...

- Hum... Eu tenho que ir na casa de umas amigas hoje...

- Ahnn...

Silêncio.

- É aqui perto, quer ir comigo?

- Será?

- Que horas você sai do trabalho?

- Daqui meia hora.

- Vem aqui pra casa e a gente vai... Ou não?

- Pode ser, pode ser...

- Tá, te espero, então. Toca a campanhia quando chegar?

- Sim, sim... Daqui uma hora eu tô aí, tá?

- Tá bom!

- Beijo, então.

- Beijo, tchau.

- Tchau.

Desligou.

- Quem era?

- A Mya... Caralho!

- Eae, vão sair hoje?

- Sei lá... Ela me chamou pra colar na casa dela. Ela vai numas amigas lá perto...

- Aí sim hein!

- É foda...

- Tá apaixonado?

- Tá foda, só sei disso...

- Também, pudera, pela história que você me contou...

- Foi foda, Brunão!

- É...

Allan tremia de excitação. O que aquela oriental tinha de tão excepcional, assim, para deixá-lo daquele jeito?

A meia hora restante do expediente custou a passar. Nos últimos dez minutos foi ao banheiro, escovou os dentes, lavou o rosto e trocou a camiseta. Estava ansioso. Ansioso demais pro próprio gosto.

Pegou suas coisas, bateu o ponto, se despediu dos amigos do trabalho com certa pressa e voou pra rua. Era Verão e um calor miserável honrava a estação. O trânsito estava lento, como de costume. Os ônibus estavam lotados, como de costume. O trajeto do trabalho até a casa da Mya demorava - em um dia bom - no máximo vinte minutos. Demorou cinqüenta, preso no trânsito, dentro de um ônibus abafado e abarrotado. Choveu de repente as janelas foram fechadas. Cotoveladas, curvas abruptas, o anda-anda pára-pára característico do horário de pico. Aquele ar escasso, úmido. Aquela mistura de mil fedores juntos. Um verdadeiro inferno. Allan cogitou a possibilidade de desmarcar o encontro e ir pra casa tomar um belo de um banho gelado. Estava começando a ficar de mau humor e sua camiseta limpa e cheirosa estava começando a ficar com manchas de suor.

Com muito esforço para conseguir chegar até a porta de saída, desceu no ponto de ônibus que ficava numa estação de metrô. Fazia calor, muito calor. Subiu as rampas, atravessou a ponte e saiu do outro lado da estação. Contemplou a rua da casa da Mya: uma pirambeira de paralelepípedos que parecia levar os seres humanos ao céu.

Allan respirou e começou a galgar o monstro. Suava. Tirou a camiseta, jogou no ombro e continuou subindo. Na parte que o precipício deixava de ser precipício, respirou aliviado. Estava nervoso. Que aquela oriental tinha feito com ele, afinal?

Ligou mentalmente pra ela umas oitocentas vezes durante o dia, cada vez com um motivo diferente, com um convite diferente. Mas setecentas e noventa e cinco vezes descartara a possibilidade de ligar, com medo de soar inseguro ou chato, ou demasiadamente atencioso, demasiadamente grudento - coisa que as mulheres parecem não suportar. Ligou cinco vezes, apenas. "Apenas". Ela não atendeu, como era de se esperar. Totalmente relapsa com o aparelho celular, como ele pôde perceber nos dois dias que passara ao lado dela - aquela terça-feira era o terceiro dia desde que seus destinos se cruzaram. E Mya era totalmente desinteressada com seres humanos, também, como ele pôde perceber. Ela tinha qualquer coisa de selvagem, tinha alguma coisa no cerne dela - talvez adquirido nos dias vividos às margens do Rio Amarelo - que o deixou tola e precocemente apaixonado.

Parou diante do portão e esperou alguns minutos para se recompor. Bebeu uns goles de água, colocou a camiseta, tocou a campainha e esperou. O fim de tarde estava realmente bonito. A rua que Mya morava era tranqüila, silenciosa... Algumas senhoras conversavam no portão com sacolas de mercado em mãos. O vizinho de Mya tinha uma Pick-Up e colocava uma cadeira de plástico em cima da caçamba do veículo e sentava lá pra fumar cachimbo. De samba-canção. Era uma visão estranha, no mínimo...

Mya bota a cabeça pra fora de uma janela da lateral da casa. Penteava o cabelo.

- Já subo, pera aí!

Mya tinha a bendita predileção por usar shortinhos jeans curtos e surrados e blusinhas rasgadas no ombro. Subia as escadas penteando o cabelo ainda meio molhado. Sorriu enquanto enfiava a chave no portão. Allan por pouco não derrete igual o Sr. Waldemar e passa por baixo do portão.

E agora? Beijo no rosto? Abraço? Aperto de mão?

Mya abriu o portão, saiu e abraçou Allan com força. Afastou-se e tascou-lhe um beijo na boca com gosto de pasta de dente - a pasta de dente que ele havia esquecido ali no dia anterior.

- Gostei do seu camisa - Disse Mya, piscando e mordendo a língua no canto da boca, moleca que era.

- É?

- É! Vem, entra!

Calor. Fazia calor. Allan daria um braço por um banho. Tinha esquecido uma toalha lá também e ficou ponderando se perguntava ou não, se podia usar o chuveiro por alguns minutinhos. Pensou que, depois de um bom banho, poderia também convencê-la a ficarem por ali mesmo, abraçadinhos e seminus, ouvindo a tempestade que estava por vir. Da mesma forma que aconteceu no segundo dia com ela.

Mas Mya foi mais rápida: terminou de pentear o cabelo, jogou um perfume no pescoço, calçou uma sandália e já intimou Allan a acompanhá-la na busca de suas amigas de infância pelo bairro.

Ele, como sempre, era um bom ouvinte enquanto ela, ah, ela tinha muitas histórias pra contar, apesar de ser bem mais nova do que ele. Era inteligente, tinha senso de humor, extremamente focada no futuro, na carreira que queria seguir, nas metas que havia estipulado para si própria. Viera de outro País com os pais, que tinham um negócio em outro Estado e, por conta disso, morava sozinha na mais caótica das cidades. Ele ficava num só tempo encantado e com uma pulga atrás da orelha com tanta coisa que aprendia com uma estrangeira bem mais nova do que ele. Achava-se um merda inútil em vários momentos. Não tinha nenhuma história realmente interessante pra contar. Nascera ali, fora criado ali. Como uma pessoa que mal consegue pronunciar o nome de uma cor corretamente por causa da barreira do idioma passa numa faculdade pública enquanto ele estava começando uma faculdade particular quatro anos atrasado? Não era de se admirar que ele só ficasse quieto! No entanto, ela parecia não se incomodar com tudo isso e dizia gostar da companhia dele e vira e mexe fazia algum elogio mencionando sua inteligência e humor negro. Formavam um casal bonitinho, até.

Perambularam pelas ruas do bairro. Allan só conhecia as ruas principais, que era por onde os ônibus que pegava pra trabalhar ou ir à biblioteca circulavam. Não imaginava que aquela região fosse tão cheia de ribanceiras de asfalto e sentia suas panturrilhas latejarem e ficava sem fôlego enquanto ela parecia não perceber seu sufoco e continuava falando, apontando casas que tinham uma determinada raça de cachorro, uma determinada planta, uma determinada senhora biruta, que ela via todos os dias quando fazia aquele caminho pra ir à escola.

- Não é de se admirar que você tenha essas pernas grossas, Mya!

- Palhação!

Andavam de mãos dadas. Numa determinada pirambeira que seguia para o Leste, Allan fotografou com a retina a imagem dos dois de mãos dadas na sombra negra do asfalto.

Pararam na frente de um condomínio. Mya perguntou por algumas amigas da época da escola. Nenhuma estava por lá, segundo o porteiro. O tempo começou a fechar. Continuaram caminhando e sairam na rua de uma escola que Allan estudou por alguns anos. Foi a vez dele de contar algumas histórias que a fizeram gargalhar ou se enternecer e aninhar-se com força ao lado direito do corpo dele, que adorava o contato de suas peles.

Começou a chover e eles correram pra dentro de um centro de treinamento de artes marciais que Allan treinava. Estava rolando a aula de jiu-jitsu. Mya olhava entre excitada e confusa o local. Os alunos receberam as instruções da técnica a ser treinada. O professor, malandro, dava um toque ou outro e sorria maliciosamente pro seu aluno turista que estava do outro lado da academia atracado com uma oriental gatinha. O professor deu mais algumas instruções e veio ter com eles.

- Ah, por isso que o senhor anda faltando, né?

- Que isso!

Abraçaram-se com o respeito característico entre mestre e aluno.

- E quem é a namorada? - Perguntou o professor, com uma piscadela marota.

- É a Mya.

- Como vai, Mya? - Pegou na mão dela.

- Vou bem, obrigada!

Conversaram sobre amenidades. Faculdade, os treinos e, sobretudo, o suposto namoro. Mya parecia torcer o nariz toda vez que ouvia a palavra, enquanto Allan ficava sem jeito e até meio empolgado com a impossível possibilidade...

- A chuva diminuiu... Tenho que ir, Allan...

- Então vamos, ué!

Despediram-se do professor e sairam na garoa. Mya ia dormir na casa de uma amiga - o que colocou alguns planos do Allan pra escanteio - e tinha que ir pra lá. Era uma caminhada de meia hora da academia até a casa da amiga e eles foram andando pela calçada em silêncio.

De repente, a chuva fraca tomou a proporção de uma tempestade. Raios e trovões, e uma chuva gelada que parecia vir do horizonte ao invés de cair do céu. Esconderam-se parcamente atrás de uma banca de jornal que tinha um pequeno telhado. Mya tremia de frio. Allan, cavalheiro, retirou seu moletom da mochila e agasalhou a garota. A chuva vinha do leste trazida pelo vento, cada vez mais forte e fria. Parecia o fim dos tempos. Allan, que era mais alto e possuia ombros largos, ficou de costas pra chuva e abraçou-a. Suas costas ficaram ensopadas. Sentiu-se meio babaca por um momento por estar fazendo aquilo. Mas ela o apertava com força. Afundou a cabeça em seu peito e aferrava-se ao seu abraço como se ele fosse a única possibilidade de mantê-la viva. Ele gostava mais e mais daquilo. Só que na porra do verão a chuva acaba da mesma forma que começa e não demorou muito pra tempestade parar e se transformar numa garoinha safada. Mya devolveu a blusa e pediu pra ir até a casa da amiga sozinha.

- Por quê? - Perguntou ele, tateando o terreno.

- Sei lá... Não precisa ir até lá comigo.

- Por mim, não há problema!

- Não, você tá cansado, tá todo molhado aí por minha culpa, melhor ir pra casa descansar...

- Er... - Ele pouco se importava com isso. Mas não insistiu - Tá! Leva a blusa, depois eu pego.

- Não precisa, estou bem assim - Disse Mya, de maneira peremptória.

- Então tá...

Conversaram por alguns minutos e ela se foi enquanto ele ficou num ponto de ônibus plantado por uma boa meia hora.

No dia seguinte, perto do horário de encerramento do expediente, Allan ligou pra Mya pra propor alguma coisa pro dia seguinte. Combinaram de ir ao cinema ou qualquer coisa do tipo. Decidiriam no caminho.

Claro que no dia seguinte ele escolheu uma roupa menos largada e ficou num estado de espírito eufórico durante todo o expediente, o que fez com que seus amigos começassem a ficar preocupados.

- Não tá se empolgando demais, não, nenê?

- Que nada, tô de boa, nenê!

- Sabe que eu não gosto de você choramingando por causa dessas vagabundas depois, né?

- Porra, relaxa. Tô de boa!

- Sei...

Mya não apareceu no local combinado e não atendeu as ligações que Allan fez durante os dois dias subseqüentes.

Uma semana depois, o celular dele tocou. Era Mya.

- Desculpa.

- Relaxa.

"Relaxa" - pensou ele assim que terminou de pronunciar a palavra - "relaxa... Porra, quase que fico louco!"

- Mas o que houve, Mya?

- Lembra que eu te falei que tinha um meio-namorado, quando a gente se conheceu?

- Lembro.

- Então...

O de sempre: voltou pro cara. Coisas mal terminadas, mal conversadas, fragmentos de passado que circulam no presente, capciosos, prontos para ruir qualquer novo futuro. Allan estava um pouco aéreo durante a ligação. Não sabia o que falar. Que falaria? No dia que conheceu Mya, por intermédio de uma amiga em comum, numa noite meio insana com outros amigos, ela tinha mencionado o meio-namorado que morava em outro Estado. Naquela noite, ouviu de passagem Mya falando pra amiga em comum algo como "Porra, não dá pra terminar. Ele é lindo, olhos azuis, tem grana e passou numa federal, meu!". Depois que eles por fim se agarraram e passaram os dois dias seguintes juntos, Mya confessou que havia percebido o interesse de Allan e que por isso soltava um aforismo ou outro sobre o loiro-rico-universitário, justamente pra podar qualquer investida do primeiro. "Por que você fez isso?", perguntou ele na ocasião, no que ela respondeu "Porque a carne é fraca, nego! Porque você é lindo e eu não queria dar mancada com ele".

Agora aquilo. "Mulheres... Por que essas filhas da puta esperam acontecer tudo isso pra depois tentar consertar o erro? Que chances eu tenho de competir com um cara desses? Rico, bonito, loiro, inteligente, futuro arquiteto, médico, engenheiro, a puta que o pariu e eu, o que tenho pra oferecer? Amorzinho? Sexo? Poesias imbecis e inúteis? Quando que palavras vão colocar comida no prato, vai pagar o ar-condicionado, a hipoteca, a prestação do carro, o vestido, as jóias, tudo o que essas sanguessugas têm como prioridade num homem?"

- Bom, Mya... Eu não sei o que falar...

- Não tem muito o que falar, né?

- É... É chato...

- Mas eu gostei do que rolou entre a gente. Eu fiquei confusa e por isso sumi, sei lá, precisava pensar...

- Entendo.

- É foda ser tão nova e morar sozinha aqui nessa cidade, ter que tomar milhares de decisões sozinha e minha vida vai começar a ser muito corrida, eu tenho meio que um futuro planejado e bem, você...

- ... Não faço parte dos seus planos.

- É, mais ou menos isso.

Continuaram na conversa mórbida e tensa por mais um tempo e desligaram.

- Que cara é essa?

- Nada.

- Quem era?

- A Mya.

- Sério? E o que ela falou?

- Que voltou pro carinha lá...

- Vagabunda...

- Nem tanto. Eu que forcei a amizade. E SIM, eu sei que você avisou, haha.

- Ah nenis, não fica assim!

Mas não tinha como ficar de outro jeito. Doía. Ideais estavam desmoronando dentro dele. Miríades de pensamentos passavam pela sua cabeça tentando mostrar onde foi que ele errou, o que deveria ter feito para fisgar o coração glacial de Mya.

"Fui afobado demais demonstrando que gostava dela? Telefonei demais? Será que deveria ter penetrado quando tive a oportunidade? Metido com força? Ter dado tapas na cara, tocado fogo em suas calcinhas, dançado tango de cuecas com uma rosa na boca? Será que deveria ter besuntado aquele corpinho com óleo de massagem? Chamá-la de puta? Acordá-la com flores, bombons? Ter feito uma serenata? Deveria tê-la como musa eterna nos poemas do porvir e ter confessado essa minha intenção ao pé do ouvido num jantar à luz de velas no Terraço Itália? Ah merda, o que eu FIZ? E o que eu NÃO FIZ? Agora essa porra dói aqui dentro e ela não sai da minha cabeça! O que eu faço, Cristo?"

Mas não tinha o que fazer. Ele não tinha o que fazer a não ser esperar o sentimento minguar. Talvez findasse com a troca de estação. Talvez as folhas mortas do Outono dessem as boas-vindas ao seu coração livre daquelas omoplatas nuas, daquele sotaque Made in China, daquele mundaréu de cabelos negros e lisos e daqueles alargadores de orelha vermelhos.

E ele esperou.

Esperou.

Esperou.

E esperou, até que...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 20/01/2011
Código do texto: T2739956
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