Apenas Caminhando - Capítulo VI

VI

A madrugada se arrastou vagarosamente, tanto que o tempo parecia estar literalmente parado, e eu com ele. Três taças de vinho se foram rapidamente, goles ansiosos embalados por músicas aleatórias que sempre faziam jus ao momento de alguma forma.

Alison não demorou muito para entender que precisava de algum tempo sozinho. Tentei explicá-la, mas poucas palavras vagas saíam, até conseguir contar o essencial. Logo, ela compreendeu minha relutância, pois sempre soube quem era Layla. Acho que foi nosso primeiro assunto, quando nos conhecemos. Abraçou-me, beijou minha bochecha e deixou-me sozinho. Sabia que era o que eu precisava.

Às sete e meia, ainda estava na mesa, sem música, quando escutei o despertador tocar. Minutos depois, geralmente quando Sofia aparecia na porta, escutei Alison a chamando. Algumas frases baixíssimas, ininteligíveis de onde eu estava. Minutos depois, Sofia apareceu na porta com o uniforme.

- Oi, papai. – disse com cautela, sem a empolgação que geralmente demonstrava.

- Bom dia. – respondi.

- Mamãe disse que você está muito triste... é verdade, pai?

A preocupação carinhosa de Alison trouxe uma sensação boa, mas não um sorriso.

- Sim, estou. Uma amiga do papai faleceu.

Ela ficou em silêncio. Depois de quase um minuto, aproximou-se timidamente e me abraçou.

- Tudo bem, papai.

Impressionava-me o quanto uma criança parecia entender melhor os sentimentos do que os adultos. Afaguei seu cabelo.

- Vou ficar bem. – sussurrei. – Mas agora ainda é difícil. Vamos para o carro. – tentei desviar do assunto.

Ela dirigiu-se logo ao veículo, pondo-se de frente à porta como sempre, esperando que eu desligasse o alarme. Levantei, deixando a taça de vinho na mesa do computador e a garrafa aberta em cima da mesa. Beber não parecia fazer efeito, sequer havia me embebedado alguma vez, era apenas simbólico.

Em algum momento em que eu estava muito distante, fazendo as curvas de sempre automaticamente, Sofia quebrou o silêncio.

- Pai... – começou com timidez. – O que acontece quando as pessoas falecem?

- Não sei filha. Ninguém sabe. – respondi tentando manter a voz estável.

- Minha professora disse que elas vão para o céu.

- Alguns acreditam que sim, mas eu não sei mesmo. Ainda acho que elas permanecem vivas no coração das pessoas.

- Por causa do amor?

Minha pausa foi quase longa demais.

- Sim, por causa disso.

A tarde demorou ainda mais para chegar. Dirigir até a cidade em que ela morava, onde eu havia morado com ela, demorou três horas. Não estava com pressa.

Era um pequeno campo verde, limpo, com as lápides denunciando do que se tratava aquele gramado bonito. Era difícil aceitar por que estava ali, era ainda mais difícil olhar para um lugar tão bonito carregando todo o peso de uma perda irrecuperável. Quantas vezes passei por ali e era apenas um lugar.

Estacionei o carro por perto. Deixei o motor morrer, girei a chave devagar e respirei fundo. Até certo ponto, sabia por que estava ali. A sensação de estar atento aos detalhes me era familiar - há tempos era inexistente, perceber que o silêncio estava alto demais, que havia sempre canto de pássaros ao fundo, que a pele dos meus dedos que se encostavam ao volante pareciam tremer de frio. Algumas músicas soavam nos meus pensamentos, quase escondidas, com vergonha de aparecer. Senti-me vivo como há muito tempo não me sentia, mesmo que naquele momento, caso fosse possível escolher, seria capaz de ter optado por não estar.

Enfiei a chave no bolso e abri a porta, cada movimento me fazendo perceber a insegurança por trás dos gestos. Podia sentir a textura da camiseta em cada parte do meu corpo, o calor agradável do sol que passava entre as árvores. Fechei a porta, liguei o alarme. Comecei a caminhar.

Sabia onde ficava, mas não queria procurar. Receosamente examinei o gramado, enfeitado com as lápides, sentindo grande desconforto quando o primeiro pé saiu do cimento da calçada e pousou na grama macia.

Incrível como saí de uma tempestade e entrei em um dia de sol, como se tivesse passado por uma porta.

Aquela grama me lembrava de algo. Lembrava de quando estava sentado numa semelhante, porém mais escura, perto de uma árvore. Aquele silêncio que apenas os pássaros sabiam fazer me lembrava de fins de tarde. De repente eu estava lá, sentindo novamente aquela presença insubstituível no meu peito, de repente minha cabeça estava uma bagunça, havia novamente um mundo alternativo no qual eu procurava refúgio. De repente, eu tinha 17 anos.

Encontrei o nome de referência numa das pedras, muito antes do que pensava. O lugar procurado ficava há poucos metros dali. Virei para a direita.

Eram poucos passos. Parei. Tomei alguns segundos para respirar e finalmente, levantei o olhar para ler.

Não era diferente das outras lápides, para qualquer passante, era apenas mais uma pessoa. Ajoelhei-me devagar, tomando cuidado para não desabar. Mordi o lábio, não sabendo direito como reagir. Era como esquecer minha fala no meio do grande teatro da vida.

Minhas pernas cederam, e acabei sentado no chão, tão sem energias quanto estaria se não comesse há dias, sem água, sem qualquer coisa para viver por. Era como se estivesse vivendo apenas dentro de minha própria cabeça, sem o corpo.

Como nunca antes, o tempo era apenas uma palavra. O tempo tornou-se incontável, incalculável e inexistente. Eu estava sentado com ela na grama no passado, sorrindo por algum motivo qualquer, e estava ali, sentado na grama com ela, com a cabeça entre os joelhos, perdido.

Precisei de muitos minutos para reaver alguma vontade de me mexer, lentamente voltando a sentir o mundo material. Olhei para o céu, estava azul claro, o sol não aparecia, estava escondido atrás das árvores ali perto, mas deixava tudo bem iluminado.

O tempo passou enquanto eu tentava voltar.

- Oi. - eu disse, para o nada, depois de vários minutos. - Há quanto tempo.

Não houve resposta. Minha voz estava muito baixa, talvez se falasse mais alto.

- Ah. - continuei. - Eu não sei bem o que dizer, sabe. Faz tanto tempo. Resolvi aparecer aqui para...

O bolo na garganta era quase insuportável. A primeira lágrima deslizou em silêncio enquanto eu procurava as palavras. Quando tentei, várias outras gotas salgadas deslizaram em uma careta incontrolada e dura.

- Depois de tanto tempo... depois que... eu não sei...

Não houve resposta.

- Como pude? - indaguei para mim mesmo. - Como deixei isso acontecer? Como pude ser tão burro? - as palavras irritadas soavam inteligíveis apenas para mim.

O vento varreu algumas folhas, um vento quente e acolhedor. Tomei-o como resposta, não conseguindo deixar de sorrir por um momento, mesmo que numa hora ruim, tentando me recompor.

- Desculpe, eu não queria desabar assim. Bom saber que está aí. - sussurrei. - Precisava falar com você. Não é coisa ruim, eu acho que não. Só precisava dizer fui terrivelmente estúpido ao deixar que você saísse da minha vida como saiu. Depois de um tempo pensei que não valia mais a pena, cada um para o seu lado, certo? Pensei que seria melhor assim. A vida pode ser muito distrativa, mas não consegue apagar certas coisas. Eu sentia saudades. - funguei, enxugando o nariz na manga, não ligando para a desconexão das frases. - Lembra quando eu dizia que nunca ia esquecer você? Espero que não tenha pensado que eu estava mentindo. - a pausa foi mais longa. - Na verdade, estou sendo convencido, provavelmente me deixou para trás há um bom tempo. – quase sorri. - Mas não consigo deixar de considerar... como as coisas acontecem.

O tom de minha voz parecia o de uma conversa qualquer.

- Eu não sei o que pensa de mim depois de tanto tempo. Agora eu tenho cara de homem mesmo, como pode ver a barba está mais definida... ainda gosto das mesmas bandas. - sorri, mas a graça morreu um segundo depois. – Ainda tenho as cartas que me mandava naqueles tempos. Não perdi nenhuma, só estão guardadas.

Eu poderia ter mandado mais cartas para ela. Sempre adorou cartas.

- Eu preciso ir. – disse. – Eu dizia muito isso. Estávamos sempre atrasados, para podermos nos encontrar em algum lugar, acabamos atrasando todo mundo por conta disso. – lembrei. – Mas agora preciso ir mesmo.

Novamente uma brisa quente surgiu, jogando algumas folhas secas ao meu encontro. Peguei uma delas, estava dura e laranja.

- Tinham algumas dessas na pracinha, lembra? - comentei com ela.

Deixei a folhinha cair e continuar voando.

- Desculpe se eu fiz você pensar que havia desistido. Desculpe, por favor, me desculpe se... - minha voz foi morrendo até desaparecer. - Eu fico devendo um abraço, pode ser? Em outra vida? Temos várias, não é mesmo? Ainda tenho outra chance... - sorri por mais tempo agora, pensando na ideia. - Você me daria essa chance?

Não houve resposta, mas esperei que sim. Eu acreditei que sim.

Analisei a lápide por um momento. O formato dela, arredondado nas bordas, com letrinhas retas formando seu nome. Lê-lo ali apertou meu coração de uma forma amedrontadora. Finalmente, então, vi seu epitáfio.

Temos nosso próprio tempo.

Tanto soou como uma resposta que me assustou um pouco. Uma surpresa verdadeiramente inesperada, que demorava um segundo para ser assimilada e compreendida – uma surpresa perfeita.

- Você ainda consegue fazer isso. - disse-lhe e suspirei.

Foi um suspiro longo, um momento curto e cheio de recordações, transbordando as felicidades de tempos passados com as mágoas do agora.

Levantei-me, reencontrando as forças que havia perdido. Bati nas pernas com as mãos, para limpar a areia. Li a frase de novo, finalmente aceitando a lágrima que queria sair junto. Agachei-me uma última vez e pousei a mão levemente na grama ali, onde ela estava. Fechei os olhos em despedida, podendo vê-la sorrindo, uma imagem clara e nítida das minhas memórias.

- Até mais.

Liguei o som do carro e procurei o álbum preferido dela, que sempre esteve guardado ali. Sua música preferida era "Plainsong", do The Cure.

Já estava dirigindo novamente, enquanto a música preenchia cada minúscula parte dos momentos que se transformavam em passado com o correr dos segundos. Peguei a estrada que ia para fora da cidade. Dirigia como se estivesse caminhando, e pela primeira vez, foi tão relaxante quanto.

Pensei rapidamente em como nunca quis voltar no passado. Pensei no quanto aquilo tudo fora importante. Pensei em como tudo parece se resumir a encontrar e ser encontrado. Pensei em como havia certas coisas que nunca entendi completamente.

Sentia apenas o leve vibrar do motor no volante, escutava apenas a linda música que tocava.

Estava, como sempre estive, apenas caminhando.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 13/01/2011
Código do texto: T2725903
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