Apenas Caminhando - Capítulo V

V

As trovoadas avisaram.

Chuva fortíssima e tapas de vento varriam a cidade com fúria. Acordei na cama com Alison, sentindo a água respingar em meu rosto das frestas da janela. Fechei o vidro e procurei as horas no relógio em cima da cômoda - 07h23min. Não fazia sentido deitar de novo, então me preparei com algumas roupas mais reforçadas para levar Sofia até a escola.

Às sete e meia ela acordou sozinha e rapidamente vestindo-se em seguida, o que era motivo de orgulho, de certa forma.

- Bom dia, papai. - sorriu para mim quando chegou à cozinha. Parecia estar alheia ao clima louco, como se fosse um dia ensolarado qualquer.

- Ótimo. - sorri. - Está pronta para ir?

- Sim, vamos que hoje é dia de filme!

Quase perguntei brincando se podia ir também. Peguei a chave do carro e não me preocupei em acompanhar a velocidade com que ela correu até o veículo. Adorava andar de carro. Esperava eu desligar o alarme, sempre abrindo a porta antes dos três "bips" indicando a desativação.

Dei a volta pela frente e finalmente, sentei no banco confortável diante do volante. Apertei o botão no controle para abrir a porta da garagem, contemplando a claridade cinzenta que o sol emitia de trás das nuvens.

- Nossa, está chovendo muito. - comentou Sofia.

- Está. Deve passar logo, pelo menos era o que dizia a previsão. - comentei de volta, observando o céu pelo pára-brisa enquanto manobrava a saída.

- Ah! - ela gritou. - Tem um bicho aqui!

Girei quase o corpo todo para ver o que era. Com sua natural aversão a qualquer pequeno inseto, poderia ser uma formiga. Mas não era.

- Calma filha. - suspirei. - Borboletas não mordem.

Uma pequena borboleta marrom tentava forçar a saída pelo vidro traseiro.

- Mas são assustadoras. Posso abrir a janela para ela sair?

- Se ela sair agora, morrerá. Não vai conseguir voar na chuva. Deixe-a ali, ela vai parar de se mexer.

Acelerei pela rua tranquilamente enquanto Sofia não voltava a comentar alguma coisa. Quase podia ouvir as engrenagens trabalhando, formando algum questionamento em sua cabeça. Fiz a primeira curva à direita, como sempre.

- Pai. - começou, como previsto. - De onde vêm as borboletas?

- Do mesmo lugar que todos nós viemos, imagino. - respondi sem pensar muito.

- Que lugar?

- Não sei. Provavelmente, nem é um lugar específico. Ninguém sabe. Alguns acreditam que sabem, mas ninguém tem certeza.

- Hm... - fez uma pausa. - Borboletas são bonitas.

- São. - concordei, virando na segunda curva à esquerda.

- A mamãe é bonita.

- É. - fiz a terceira curva, chegando à rua da escola.

- Como você soube que queria casar com ela?

Começaram as perguntas difíceis.

- Um dia fica fácil perceber... - tentei. - Quando começar a namorar vai entender. Mas isso não quer dizer que já pode namorar, certo?

- Combinado. - riu. Estacionei na frente do portão, e a zeladora se aproximou da porta traseira com um grande guarda-chuva. - Tchauzinho.

- Tchau, filha.

A porta se abriu e o barulho de chuva ficou mais alto; se fechou, e só podia escutar o motor do carro com leves tambores, efeito sonoro causado pelas gotas grossas batendo no vidro e no capô. Engatei a marcha e segui reto, voltando para casa.

Os momentos de estar sozinho eram bons. Ansiava muito por eles quando pensava em morar sozinho ou algo assim. Não era como solidão, mas estar em silêncio comigo mesmo dava a sensação de liberdade. Podia ter ligado o som, mas optei pela quietude.

Mal terminara o pensamento e no meio da segunda curva de volta, o celular tocou, quebrando bruscamente o silêncio. Terminei de virar o volante e estiquei a perna o suficiente para minha mão entrar no bolso e puxar o aparelho barulhento. O visor indicava um número desconhecido. Estacionei perto do meio fio completamente deserto daquela avenida que tinha árvores no canteiro central e finalmente, atendi.

- Alô. - cumprimento óbvio da minha parte.

- Oi. - uma voz feminina devolveu a cortesia. - Quem fala?

- Eu. - brinquei. - Leonardo.

- É com você mesmo. - ouvi um leve sorriso. - Aposto que nunca vai lembrar-se de mim.

Pensei por um momento, primeiro me perguntando se devia saber do que se tratava, segundo, me perguntando se era um trote.

- Que bom que me encontrou então. - afirmei. - Mas quem está falando?

- Bruna.

Demorei um segundo para lembrar.

- Bruna! - repeti.

- É, fazia tempo. Como está a vida?

Bruna foi uma grande amiga em minha adolescência, com quem não tinha contato há alguns anos - não fosse por ela, não teria as melhores indicações de livros. Lembro que me fazia comprar uns esquecidos nas prateleiras, velhos e mal tratados, que lia e adorava. Eu sempre me surpreendia.

- Está normal. - respondi, corrigindo logo depois, sem saber por quê. - Na medida do possível, estou me virando, sabe.

- Sei... não é muito diferente das outras sete bilhões de vidas.

- Não. Realmente não é. Como está você na cidade grande, então?

- Incluo-me no grupo dos sete bilhões. Mas consigo me divertir, nisso, nunca mudei.

- Sua voz está diferente. É difícil imaginar você como mulher. - brinquei.

- Rá. Rá. Rá.- ironizou. - Não posso dizer que é difícil imaginar você como um homem, já que sempre parecia ser mais velho.

- Você também parecia.

- Engraçadinho. Pois saiba que meu espelho discorda, de acordo com ele, sou a mais bela da cidade.

- De acordo com o meu, terei sete anos de azar.

Ela gargalhou. Sorri - como sentia falta de ser adolescente.

- Como estão as coisas com Alison? – perguntou.

- Nós casamos.

- Nossa, Leon! – não lembrava da última vez que alguém havia me chamado de Leon.

- Quem diria, não?

- Quem diria. E eu aqui, tentando encontrar uma definição de amor... como essas coisas acontecem rápido.

- Não foi tão rápido, demorou dois anos. – assinalei. – Dois anos é bastante.

- Foi o mesmo tempo que namorou a Layla, não? – seu comentário foi duro, num tom estranho.

- Foi. - uma série de pensamentos conexos me levou à inevitável dúvida. – Falando nisso, como ela está?

Ela não respondeu por cinco segundos.

- Bruna?

- Estou aqui. - claramente, o clima leve se fora.

- O que foi?

- Na verdade, esse era um dos motivos que me fizeram tentar achar você. - fez outra pausa esquisita. - Não sei como lhe dizer isso. Mas é importante.

- Diga-me.

Uma terceira pausa esquisita.

- Aconteceu um acidente.

A frase demorou a ser processada.

Por dois segundos, estava apenas tonto.

Por mais dois, estava sentindo coisas esquisitas acontecerem dentro de meus órgãos. Mais dois, respirar parecia ser uma tarefa complicada. Outros dois, para sentir todas as massas esquisitas e frias que passeavam por meu corpo caminharem até a garganta, ali ficando, ocupando espaço demais.

Como se estivesse presenciando uma cena horrível, não conseguia acreditar que estava realmente ali e que aquilo estava realmente acontecendo. Não poderia dizer quanto tempo demorei até falar novamente. As palavras seriam apenas palavras. Eu me sentia transparente como vidro, tão facilmente quebrado e estilhaçado. Somos acidentes esperando para acontecer, ela me disse uma vez.

Desliguei o telefone depois de vinte minutos, após Bruna ter me explicado o que havia acontecido. Demorei a perceber o barulho da chuva e do motor ainda ligado. De repente, pareciam altos demais. De repente, algumas coisas perderam o sentido.

Lembrei claramente de várias cenas que pareciam ser de outra vida, mas eram da minha. Lembrei do sol, da grama, das árvores, de uma conversa acidental, de uma banda gótica.

Toda minha mente estava comprimida a um ponto do tamanho de um átomo, como se fosse um chip desativado de um robô com defeito.

Esfregar os olhos foi uma reação sem sentido. Mas esfreguei de novo, em desespero. Agarrei o volante com as duas mãos, como se pudesse me firmar ali para não ser cair. Apoiei a cabeça também.

Lembrei de café. Tomava muito café. Também escrevia mais e gostava de publicar algumas coisas. Lembrei de discutir qual era a melhor banda do mundo e sobre ser interessante. Iracema. Eram boas memórias guardadas com carinho numa gaveta que se tornaram repentinamente dolorosas, piores que qualquer dor física.

Lembrei de acordar ao lado dela.

Estar dentro do carro na chuva me trazia a sensação de proteção. Mas não fazia diferença. Estava chovendo em mim, estava frio. Eu estava chorando.

Não estou aqui e isso não está acontecendo.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 12/01/2011
Código do texto: T2723780
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