Apenas Caminhando - Capítulo II

II

- E você me diz que ela não está interessada? - questionou meu amigo, como se falasse de algo fundamental para salvar uma vida, seja lá o que isso quisesse dizer.

- Não sei... - murmurei, claramente sem saber do que estava falando.

Ele continuava de queixo caído.

Já era fim de tarde quando pude sair de trás do balcão e dar uma volta. A inconveniência do meu amigo mais íntimo mostrou-se valiosa quando o encontrei logo que saía da porta sem rumo, pois menti ter ido para casa, de novo. Sem demora, uma coisa levou à outra.

Caminhávamos dando várias voltas na mesma quadra enquanto eu o atualizava de algumas coisas que estavam acontecendo. Eu e Layla havíamos marcado um encontro mais cedo, no começo da tarde, assim que descobrimos ter o fim de tarde livre. O resto foi totalmente natural.

- Não viaja! - indignou-se após alguns segundos. - Não viaja!

- Quê?

- Uma garota aparentemente legal que conversou mais de duas horas com você, sendo que só conhecia você de vista? E mais, lhe passou e-mail e quis conversar ao vivo de novo?

- Sim.

- E qual é a sua dúvida?

- O que eu faço? - perguntei, sabendo que deveria estar soando ridículo para ouvidos alheios.

Ele levou as mãos à cabeça.

- Não viaja... - ria. - Vai lá e conversa mais, vê o que acontece, daí pede para ficar com ela.

- Ficar... - a ideia não me agradava. - Não, não sei sobre isso. “Ficar" é tão superficial, parece algo tão bobo.

- Fique sozinho, então. - debochou. - É assim que se inicia um relacionamento hoje em dia, acostume-se. Você já quase conseguiu algumas vezes.

- O "hoje em dia" não está totalmente correto. Essas conversas são realmente legais e gostosas, talvez tudo corra ao natural a partir delas. E não tenho coragem de pedir um beijo... parece fora da realidade. Além do mais, talvez ela não queira isso.

Agora ele balançava a cabeça de um lado para o outro negativamente, rindo.

- Ah, só pode estar brincando... As garotas demonstram afeto com toques, com sorrisos, com conversas. É óbvio que ela quer isso e como qualquer outra garota, está esperando que o garoto tome a iniciativa.

- Ela não parece ser qualquer garota. – suspirei e tentei desviar rápido. - Que injustiça a responsabilidade ser jogada no nosso colo.

- Pare de reclamar. Culpe a cultura, tanto faz, mas tudo está ao seu favor hoje. Pensa comigo, hoje é dia dos namorados. Tem situação mais perfeita e romântica do que essa? Foi acontecer justo com você, que gosta dessas coisas melosas.

Assenti com a cabeça. Não havia escapatória. Não pensava nem na questão de estar gostando um pouco demais dela, nem tanto na questão cultural que me forçava a tomar iniciativa primeiro, pensava mais na armadilha em que havia caído.

Despedi-me dele depois da terceira volta na quadra, quando já estava quase na hora do encontro. Caminhei para a pracinha, ignorando tudo à minha volta sem perceber, me isolando e acabando perdido em minha própria distração. Um carro poderia ter me atropelado que eu demoraria a perceber o que tinha morrido.

Na grande quadra que era cheia de árvores, a notória pracinha da cidade, meus olhos procuravam-na nervosos. Ela disse que estaria perto da árvore grande que tem um banco na frente, isso era na parte oposta a que eu estava.

Por ser a primeira vez que saíamos desde o verdadeiro primeiro encontro, no shopping uma semana atrás, o clima era quase de comédia. Tivemos contato direto via internet por uns três dias seguidos, no começo da tarde e à noite e uma vez via telefone, quando ligou para a videolocadora perguntando sobre um filme antigo, e rindo da ironia que era sua mãe ter pedido para ligar justamente para aquele lugar. Infelizmente, não encontrei o filme que ela queria. Cogitei a possibilidade de ela ter inventado tudo para me ligar, mas risquei da lista – eu não poderia ser tão sortudo.

Andava meio confuso em relação a ela.

Não sabia o exatamente o que esperar. Que recepção eu teria, o que falar ao vê-la, como agir, se sentaria ao lado dela... sequer sabia se ela estaria me esperando mesmo.

Entre as árvores, avistei-a exatamente onde disse que estaria. Ela estava lendo alguma coisa, um livro. Quando chegasse lá perto, como chamaria a atenção se ela não me percebesse? Pigarreando, talvez. Já estava chegando perto.

Para minha surpresa, ela olhou para mim antes que eu precisasse fazer qualquer coisa e sorriu acenando, gesto que devolvi constrangido.

Meu coração acelerou um pouco, meu rosto esquentou.

- Oi. - disse-lhe quando estava perto o suficiente.

- Oi. - sorria ainda. - Eu não devia sorrir tanto.

Sentei ao seu lado.

- Sorrisos são legais. - quase soou como uma pergunta.

- Yeah. São.

Meia hora havia se passado, enquanto eu contava uma história, estranhando ouvir minha própria voz por tanto tempo sem interrupções.

- Quando o céu está escuro desse jeito, muito nublado, me faz sentir preso, como um belo inseto cujas asas foram cortadas. Essa metáfora me assombrava, porque me lembro de quando era criança, talvez com uns cinco anos, estava brincando alegremente pelo quintal da minha tia, com minha prima um ano mais velha. Ela era a influenciadora e eu era o influenciado, simples assim. Mas meu ato de maldade dessa vez não veio por palavra dela. Eu estava sozinho esperando alguma coisa e vi uma borboleta azul, grande, pousar na areia ali perto. Sorrateiramente, cheguei perto enquanto ela exibia suas asas bonitas. Formei uma pinça com os dedos polegar e indicador e prendi-a pelas asas, levantando-a, para vê-la de perto. Bichinho esquisito, pensei. Na época, por mais feio que fosse eu não tinha medo. Satisfeito com minha exploração, soltei, esperando que voasse novamente. Para minha surpresa, livre dos meus dedos desastrados, ela caiu como um papel. Mexia as asas devagar, como se estivessem quebradas. Vi que não devia ter tocado nela. Quando olhei para meus dedos, vi a cor azul de suas asas ali, como manchas de tinta guache. A memória termina aí, não lembro o que fiz depois. Dizem que o bater de asas de uma borboleta pode causar um furacão em algum lugar. Pergunto-me o que causei.

Layla pensou em silêncio, fitando meus olhos com atenção.

Eram quase seis horas, já anoitecia e esfriava cada vez mais. Eu podia sentir a temperatura descendo grau por grau - ninguém mandou sair sem moletom, apenas com camiseta.

Ninguém mandou sentar na grama também, mas isso foi ideia dela. Disse que gostava de ficar assim, pois se sentia livre, encostada num tronco de árvore, como estávamos naquele momento.

- É uma lembrança legal. – ela disse finalmente. - Bonita e triste.

- Mais triste do que bonita.

- De certa forma. Mas sabe o que eu acho interessante sobre essas memórias? - seu olhar foi para longe. - Muitas vezes são coisas rotineiras. Algo que nossos pais disseram, alguma arte que fizemos, coisas que poderíamos ter esquecido.

- Entendi. Cá estou contando isso para você, poético e nostálgico, como se isso fosse importante de lembrar.

- Talvez seja. – assentiu com a cabeça. - Diga-me, você acredita em destino? - perguntou reencontrando meus olhos.

Ajeitei minha postura, apoiando as costas na árvore de um jeito mais confortável.

- Não sei... a ideia de que não tenho controle sobre minha vida é meio esquisita. Qualquer escolha que tomamos muda todo o final da história, a vida é muito cheia de caminhos e cruzamentos de outras vidas, sabe? Nesse "destino", como se as coisas já estivessem planejadas, eu não acredito. Ainda que, muitas vezes, certas coisas pareçam destino.

- Algumas situações parecem. - ela riu. – Encaixa alguma religião no que pensa?

- Nada. - sorri indefeso. - Fiz catequese, mas só depois que acabou é que fui levar a sério tudo que aprendi. Não digo que não é verdade, são bons ensinamentos, mas vejo o mundo de outra forma.

Enquanto falei, ela arrumou a postura na árvore e em seguida soltou o cabelo no ombro direito, penteando-o de leve com os dedos.

- Meio confuso - ela riu. Mas parecia não ter relação com o que eu havia acabado de falar.

- Por que está rindo?

- Isso é engraçado. - sorriu.

- A que se refere com isso?

- Nós. - sorriu como se fosse óbvio. - Estarmos aqui agora disfarçando que essa conversa toda não tem nada a ver conosco.

No fundo, eu entendi.

- Como assim? - perguntei depois de uma pausa.

Ela não desviava seus olhos dos meus.

- Sabe que dia é hoje? - perguntou-me.

- 12 de junho. - engoli um riso. - Dia dos namorados.

- Não me diga que isso não era pra ser um encontro romântico.

- Era? - pensei em tossir, mas não havia motivo para isso.

- Não era? - perguntou inclinando a cabeça de leve.

Algo deu errado na rotina do meu corpo. Sorrimos ao mesmo tempo. Havia certa graça no meio de meu leve desespero. Ao arrumar minha postura novamente, propositalmente joguei meu corpo mais para a direita, perto dela, nossos ombros quase se tocaram. Deixei que ela percebesse.

Desviei o olhar para meu lado esquerdo, para algum ponto na grama, tentando não vê-la com a visão periférica. Por mais que não soubesse o que devia fazer, sabia muito bem o que estava prestes a acontecer. Como se já tivesse passado por isso inúmeras vezes, como se sempre soubesse, senti que estava prestes a sentir meu coração bater mais forte cada vez que a visse e que seria diferente encontrá-la dali em diante.

Senti algo frio e pequeno tocar minha mão direita, que estava apoiada no joelho direito, que estava levantado. Voltei meu olhar para onde ela estava - a coisinha fria era o dedo indicador dela. Tocou-me com timidez, como se estivesse apenas tirando um cisco dali. Ela percebeu que eu a olhava, mas continuou com aquele tímido carinho com um dedo só, sem desviar sua atenção.

Virei minha mão, devolvendo o toque tão timidamente quanto. A carícia atingiu um dedo, dois, até que ambos tínhamos uma mão inteira para si.

Era impossível calcular quanto tempo ficamos sem trocar mais que olhares e carinhos.

Os dois metros de raio que havia se formado ao nosso redor se expandia agora que estava mais calmo. As tantas árvores que nos cercavam, os passarinhos que se empoleiravam nos galhos, a luz fraca que passava entre as folhas, vãos que revelavam o céu já quase totalmente azul escuro, com apenas uma estrela em nosso campo de visão. Tudo lentamente foi se juntando, formando o belo quebra-cabeça em que eu me encontrava, onde todas as peças estavam no lugar certo na hora certa.

- Preciso ir. - ela disse baixinho. - Já passam das seis e meia.

- Se importa se eu acompanhar você até onde quer que seja sua casa?

- Claro que não.

Levantei sem soltar sua mão, ajudando-a a pôr-se de pé. Entrelaçou os dedos entre os meus, rindo um pouquinho, e tomamos o caminho mais iluminado até a calçada.

O caminho não parecia longo. Cruzamos três ou quatro bairros, mas não parecia longo, não do jeito que conversávamos. A conversa sobre religião continuou em partes, mas eu estava completamente alheio às minhas próprias falas. Em um momento, ela riu e encostou a cabeça no meu braço.

- Vamos parar aqui. - disse-me mais à frente, diante de um portão de uma casa branca.

- Mora aqui?

- Não, moro ali na outra quadra, mas sabe, meus pais não seriam muito receptivos a me ver com você agora.

- Posso imaginar por quê. Seria uma surpresa, certamente. - imaginei a cena rapidamente, mas quando vi tiros de espingarda, desisti de imaginar.

- Então... - sorriu, ficando bem na minha frente, segurando minhas duas mãos. - Hora da despedida.

Ficamos num silêncio cômico por cinco segundos.

- Será que é agora? - perguntei-lhe, sabendo que entenderia.

- Talvez já tenha acontecido muita coisa para um dia, não?

- Talvez, tudo tenha sido obra do destino para chegar até aqui.

Sorriu.

- Se importa se eu tentar? - perguntei sem pensar ou esperar resposta.

Encurtei a já pequena distância entre nossos rostos. Os lábios se tocaram.

Alguns segundos ficamos ali. Passava rapidamente pela minha cabeça que era dia dos namorados, que todo meu conceito sobre romance havia mudado, que sempre duvidei da minha coragem e, finalmente, que minha frase sobre a obra do destino tinha sido tenebrosa.

Distanciamo-nos devagar, tão devagar quanto nos aproximamos antes. O sorriso de ambos foi inevitável.

- Aposto que está muito feliz consigo mesmo, não? - questionou.

- Bem, estou feliz.

- Eu também. - sussurrou e suspirou em seguida. – Não sei muito bem o que dizer.

- Pode ser difícil expor um sentimento com palavras sabendo que ele pode soar errado ou equivocado.

- Então vamos fazer um pacto? - lançou a proposta como uma daquelas promessas que crianças fazem. - Vamos falar tudo que quisermos, mesmo sem saber ao certo como se expressar na hora, porque podemos sempre continuar tentando explicar para ter certeza de que tudo foi devidamente compreendido.

Fingi pensar a respeito por um momento.

- Aceito.

- Não tem volta.

- Dane-se.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 09/01/2011
Código do texto: T2719305
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