ABENÇOADO ENCONTRO PROFANO

Naquela noite o que ela menos queria era voltar pra casa... Depois de tantas palavras ocas, nada parecia fazer mais sentido aos seus ouvidos cansados. Eram tantos porquês sem respostas e tantas lamúrias sem lógica, que talvez ficar sozinha, mesmo que debaixo daquela fina chuva, viesse a ser mais satisfatório.

Caminhou pelo centro histórico da cidade buscando um beco onde a vida pudesse abrigar suas lembranças e confortar seu corpo faminto de sensações. Seu corpo clamava por ele, implorada silencioso o toque de suas mãos, e mesmo as gotas de chuva fria não amenizavam esse querer.

Já havia se passado muito tempo. Ele se despedira, a saudade não; e em alguns dias aparecia cortante feito navalha afiada. E pensar que a felicidade junto dele era seu maior plano... Agora só restavam a chuva e o beco, além do relógio que insistia em manter um tic-tac opressor e sádico, para lembrar o quanto havia ficado pra trás.

Sentou-se na escadaria da catedral, protegida da chuva por uma imagem barroca da Virgem. Eram tantos os pensamentos misturados que ela não sabia ao certo onde eles começavam e pra onde a levavam. Tudo tão passado e tão presente, tão bonito em momento e em outro tão triste. As lágrimas vieram se juntar à chuva, provocando nela uma enxurrada de emoções confusas e pulsantes. Sacou da bolsa o antigo e amarelado retrato dele ao lado dela, sorrindo aquele sorriso matreiro e olhando pro nada com aqueles olhos que sabiam falar. Ele não estava mais ali; somente uma imagem mantida por tinta que o tempo também apagaria...

Recostada nos degraus da catedral teve a impressão ligeira de que alguém se aproximava. Cética desta presença continuou fitando o retrato até que uma sombra a engoliu e a fez voltar-se para o que acontecia. Era ele. Estava ali, bem à sua frente, dois degraus abaixo. O coração disparou e seu tum-tum misturou-se ao tic-tac do relógio e aos pingos chuvosos de lágrimas ou lacrimejosos de chuva que compunham aquela cena. Ele a tocou e a partir de então não havia mais tic-tac, só tum-tum... O tempo havia parado para que ela fosse feliz de novo!

Na escadaria da catedral ele a beijou e ela se deixou beijar. O corpo faminto de mãos e sensações se deixou saciar pelo toque quente daquelas palmas já familiares que exploravam seus seios assanhados embaixo da blusa, despertavam nela um calor instigante e a despiam não somente dos trajes, mas também de todos os pudores. Ele a possuiu na escadaria daquela catedral escura debaixo da imagem barroca que a abrigava da chuva. Sagrado e profano se fundiram no enlace daquelas pernas afoitas e na danças das línguas que se buscavam, se achavam e se completavam. Quando chegou ao clímax, amparada pelos braços dele, ela arqueou o pescoço pra trás, deparando-se com a imagem barroca da Virgem de mãos abertas e braços estendidos. E era como se a Virgem abençoasse aquele momento tão sagrado; e era como se a Virgem condenasse aquele momento tão profano... Braços santos apontando um ato profano, santos braços direcionados para um amor sagrado.

Um feixe de luz quente surgiu à sua frente. Meio entorpecida ainda, ela se deixou despertar pelo sol que surgia e pelas badaladas do sino da catedral, anunciando a primeira missa. Eram seis da manhã no centro histórico da cidade e no seu relógio que, ensurdecedor, marcava de novo o tic-tac do tempo. Ela acordava com um retrato amarelado dele e dela nas mãos e ainda molhada, apesar de não saber se pela chuva ou pela sofreguidão do sonho quase real. Aprumou-se e recolheu os cacos do sonho que haviam se espalhado pelos degraus. Guardou o retrato e desceu a escadaria, se encaminhando para o dia que insistia em começar mais uma vez. Atravessou o beco e chegando na praça voltou seu corpo para a igreja, olhando mais uma vez para aquela fachada antiga cujo sino ainda balançava no alto da torre, e pra escadaria onde ele a havia visitado. E lá estava ela, a Virgem barroca, braços estendidos, mostrando o lugar onde o profano se fez sagrado, onde o sonho se fez realidade e onde a felicidade havia pernoitado.

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