Vendaval de Emoções

Sempre que o trabalho me leva para longe, escreves. A tua veia poética, tece discursos capazes de me enlouquecer de paixão quando pensava que estava serenamente ancorado a um amor sem acidentes, mansamente maduro, amortecido. Releio a tua penúltima carta : - gosto de algum recato no jardim das delícias. Que seja o calor a descobrir o canhão de jacto na febre dos antúrios. Que sejam gritos ou sussurros, apertos na melodia dos corpos acesos. Que sejam bons os medos de que a festa dure menos que as vontades. Depois, sem grandes reservas, acrescentas: - Já sinto o atropelo do ar na garganta, imagino o teu sexo na minha mão, o raspar forte pelos sulcos do amor, o vento manso a ajudar a língua na tua praia escondida, o sopro forte, a arrancar do fundo de ti a nata do tempo, doce como um pudim francês. Só depois, cansados, nos ligamos num abraço para dormir, à margem de convenções, falando para os pés um do outro. Amenamente. Como me iludi pensando-te serena após o nosso afastamento.

Interessante é o facto de te sentir ali inteira, marginal, apaixonada, dependente de mim e do sexo como uma viciada sem escrúpulos. A seguir, pedes desculpa, retrais-te, pensas que eu estou furioso sob a casca da minha amorfa forma de ser e, em letra redonda e larga, acrescentas: - Mil desculpas pelo furor do escrito. Assustei-te, Frank? Se sim, esquece-o. Voltarei à suavidade dos lírios e começarei por eles, doces meandros do prazer oculto, ainda íntimo, sigiloso. Já os olhaste por dentro? já viste como são perversamente sensuais? São, exactamente, como tu, aparentemente alheio ao afecto condenável, mas, como aquela flor, a sinalizar o caminho do menos puro, do apetitoso, qual conversa de virgem já farta de tédio e solidão. Agora estou a ver o teu riso doce, discreto, tímido. Aprendi que a timidez se torna agressiva mal tenha a certeza da impunidade ou da ausência de crítica.

É bem verdade o que escreves, Liliana, penso. Eu sou monotonamente igual, quase sempre. Alegro-me sem que se note, vejo olhando para outro lado, sinto por dentro como se fosse de pedra, amo à revelia do que expresso. É uma defesa. Mas, como um rio, corro todos os espaços úberes, todos os recantos do afecto, todos os poros onde, eventualmente, possa destilar-se mel ou fel. Onde, em suma, a vida se defina convicta, forte, iluminada. E tu, amor, sabes que sim. Só por isso me informas que desistir não nos consagra, não nos isenta, não nos eleva, mas atira-nos para onde não queremos. Como se eu não soubesse!

Só porque desisti de pleitear o que me era devido na chefia da Fábrica me vi arredado para aqui, expulso do centro das decisões. Ficaste tu a resistir, olhos e memória de factos, o meu peão de brega. Não sei que homem sou mas depressa aprendi que este exílio temporário pode ser-me útil se, como tenho feito, me dedicar a sentir a produção na sua origem, se me disponibilizar para ser parte das soluções e da modernização que já tardava na sucursal. Longe de ti é mais fácil fingir que somos estranhos, que um Director não tem, necessariamente, de estar envolvido com a secretária.

Acontece que, desde a primeira hora, me senti atraído por ti. Éramos dois náufragos, ambos separados, ambos em começo de depressão, ambos a necessitar, com urgência, de sair para uma existência normal. Mas tu, receosa de uma nova decepção, resistias. Nunca fui homem para usar o poder que detenho nem para forçar nada em questões de sexo. Sentia-te como uma doença, um perigo, um pólo inevitável de atracção e, também para furtar-me ao teu fascínio, aceitei afastar-me. Só por isso me isolei de toda a gente. Para te imaginar, inventar e sonhar contigo a todas as horas.

Atordoava-me com coisas que, em pensamento, realizava no outro lado da realidade. Serviam-me para tentar perceber-te, para estar próximo do fogo em que me aquecia, me queimava, me iluminava. Imaginava levar-te, por caminhos ínvios, ao paraíso dos sentidos, à fusão dos corpos, ao usufruto maior da partilha. Sem pejo, sem pudor, sem reserva mas com verdade intensa, doce, raspada, suada, cansada até à implosão das sensações e ao urro dos corpos, todos lava e paixão. Era assim que te queria, apenas sensualidade e sexo. A razão ficaria para depois, quando, vestidos de indiferença ficássemos iguais aos cinzentos que precisam parecer gente"séria".

Resististe, já disse, mas a carne é fraca e tu, uma mulher sensual, autónoma, decidida. Foi por isso que jogaste tudo para o espaço. Convenções, princípios, emprego. Estavas comigo correndo riscos, confessavas. Alegremente, como se isso te acrescentasse prazer. Querias apresentar o meu corpo à tua boca, sentenciaste, mas não estavas para assumir compromissos de ânimo leve. Podíamos casar mas preferíamos a clandestinidade, o perigo, a corda bamba em que, todos os dias jogávamos a profissão e o prestígio.

Discretamente apostados em usufruir esta paixão sem que ninguém percebesse, dávamos tratos à imaginação para realizar encontros, sessões estranhas, cultos lúdicos, devassidões livremente aceites por ti e por mim. Como dois garotos irresponsáveis, como dois dependentes do corpo um do outro. Um dia, pensei, após se gastar tudo o que temos de diferente, quando forem de novo monótonos os nossos caminhos, casamos e ficaremos a ver os dias acontecer em tranquilidade.

Nunca a moral ou os bons costumes entraram no nosso jogo. Para estarmos à margem das críticas mentíamos concertadamente, traíamos a confiança dos amigos, usávamos, sem vergonha, todos os meios para acrescentar calor e força a este caso empolgante.

Guardo a carta que relia e rasgo o envelope da última missiva. Dizes-me o que pensam os Administradores da Fábrica sobre mim, que sou excessivamente mole para o cargo, demasiado suave para o que se impunha na sucursal. Que vão fazer-me regressar em breve, dar-me um pelouro sem intervenção directa na laboração mas a necessitar da minha sensibilidade demonstrada nos progressos alcançados aqui. A seguir traças as etapas das decisões e ensinas-me os meios para reverter o jogo e acabar, naquele xadrez de corruptos, como um vencedor. Adiantas que, aparentemente, ninguém pensa que nos entendemos afectivamente e chegam ao ponto de pedir a tua conivência para me fazer aceitar as mudanças.

Lendo-te, estranho o tom meramente profissional. Tudo se passa como se nada houvesse entre nós. Como se nunca nos tivéssemos conhecido. Na verdade, penso, nunca tive ninguém tão vincadamente capaz de separar os assuntos, de se alhear das emoções como tu. Metes-me medo. Um homem como eu apavorado ante a perspectiva de te perder como parceira de devaneios e, mais do que isso, com receio de vir a ganhar um adversário de peso se o vento mudar.

Ficou claro que a mistura de corpos não impõe a ligação de almas e que, nas questões espirituais, estávamos nos antípodas um do outro. Servias-me até que isso te desse dividendos; partilhavas a cama enquanto fosse intenso o prazer que retiravas comigo e abandonar-me-ias logo que, feitas as contas, estivesses em desvantagem em qualquer das vertentes presentes na nossa ligação. Amor? Nunca falaste nisso. Nem eu, era verdade. Mas…depois de tanto tempo a dividir tudo, corpo, pensamentos, opiniões, cumplicidades não era previsível que gostasses de mim de maneira especial, que me sentisses como um companheiro para a vida?

A carta seguinte chegou uma semana depois. Aceitavas ir para a sede da Empresa como Secretária de Administração, uma promoção e um salário que achavas merecidos e que não poderias recusar. Querias, antes da partida para Londres, um último encontro. Para soltar as velas do abandono, para recuperar as ausências, para me poderes registar a fogo na tua pele, dizias. Sem querer saber da minha disponibilidade marcavas tu o local, a data, a hora. Tinhas a certeza de que eu não faltaria. Afinal, sugerias, eu nunca abdicaria de uma nova orgia, de uma promessa de perversidade ampliada, de um somatório de sensações que não saberia quando seria possível repetir. Eu iria, tinhas a certeza. Tinhas a certeza de me ter nas mãos tantos eram os segredos, os liames e os atropelos às regras.

Claro que fui. Procurei alhear-me da decepção e fazer as honras à bela mulher que és. Queria tirar o máximo partido deste encontro, matar saudades, rever conceitos, repetir situações que tanta satisfação nos davam e deixar-te claro que eu era o homem da tua vida. Pela primeira vez quis definir o nosso futuro, acreditei que poderia fazer mudar as tuas decisões e tentei, desesperadamente, impor-me como teu destino.

Fria e calculista, recusaste abordar o assunto. De mim só querias o físico, como de costume. Apenas o físico, repetias uma e outra vez. Ainda nos despimos mas foi uma despedida infeliz. Daquela vez eu estava inteiro e o meu espírito, ao recusar a tua vulgaridade, inibiu-me o corpo. O nosso caso acabou ali.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 02/01/2011
Código do texto: T2705490
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