Escrevendo
Nada mais clássico que a imagem de um escritor em seu escritório. Uma caneta cara, com bico de pena e uma poltrona confortável. Agradáveis fragrâncias pelo ar, salpicado pelo cheiro exalado de alguma bebida quente, chá ou café. Ao invés da bebida quente, talvez um vinho, suave, porém de gosto amargo, daqueles que exaltam as emoções, porém sem perturbar a paz do espírito narrativo.
Quando penso na imagem do escrito, lembro sempre, vividamente, da imagem de Balzac, em seu quarto nos subúrbios de Paris. O ranger dos tacos de madeira, de um sótão alugado, concentrado e compenetrado em seu trabalho, ignorando as multidões barulhentas da cidade. Observando por uma fresta ou janela a vida alheia, não como um tolo fofoqueiro, mas como um vívido observador, tomando material que exemplifique suas obras imortais.
Ah... tal romantismo porém não me pertence, embora apeteça por deveras. Minha cadeira, se é que assim posso chamá-la, é por demais desconfortável. A iluminação abundante prejudica meus olhos. Ruídos dos diversos aparelhos de televisão de meus vizinhos chegam de maneira desordenada aos meus ouvidos - Como se fosse uma caverna moderna, com eco, eco, eco, eco, co, co, co, co, o, o, o... Eu iria preferir o eco da caverna.
Nunca pensei em ser um escrito. Na verdade, eu não o sou. Minto em dizer que nunca pensei, afinal, não poderia ter uma imagem ideal tão forte em minha mente se nunca tivesse pensado. Pensar, eu pensei, mas talvez da mesma maneira como eu pudesse ter vindo a pensar em ser astronauta em minha infância - ainda que a imagem do quarto de Balzac me seja mais presente e familiar que a da cápsula de uma nave como a Apolo XI.
Ainda assim, posso pensar na Sputnik.
Tal lapso momentâneo em pensar e começar a escrever alguma coisa, surgiu em minha mente devido à um dos maiores gatilhos para que existe, para que o homem possa sair do seu estado de inércia em busca de um novo objetivo. Diferente do que nos diz a física, eu não acredito que todos os objetos tenham tendência a manter sua estado de movimento, exceto quando impulsionados por uma força externa. Mentira. Os objetos podem tender a isso, mas o homem não. O homem busca a paz, o sossego, a tranqüilidade. Quando em movimento, ele irá parar o mais breve possível. Fato. Há apenas uma coisa no mundo inteiro é capaz de fazer o homem abrir mão disso.
Essa coisa é o amor.
Lembro de Humberto Eco, quando o irmão William de Baskerville, diz que a vida seria mais segura, calma e tranqüila sem amor – ainda que esta se tornasse muito mais monótona. Outro fato. Minha vida seria muito mais calma, sem aqueles belos cachos ruivos, esvoaçante frente a minha face, deixando um suave aroma de romã no ar, dizendo qual belo e perfeito seria se eu fosse capaz de escrever algumas linhas como ele.
Ele.
Minto novamente em dizer que seus cachos eram ruivos. Não eram. Sequer eram cachos. O aroma também não era romã, porém a brutalidade de meu olfato não me permitiu distinguir qualquer diferença entre o cheiro deixado por uma romã, uma cerejeira, ou outra fragrância qualquer.
Os cientistas dizem que sob o nosso cérebro, humano e altamente desenvolvido, temos outro, frio e primitivo, herança de um pré histórico verme chamado Platelminto, de 6 milhões de anos atrás. Dizem eles que até hoje conservamos em nossa caixa craniana essa sobra, herança, quiçá resquício.
Complementando o que diz a ciência, acho que além do cérebro primitivo, guardei (ou herdei) o nariz, não de um platelminto, mas talvez de um Ramapithecus. Uma coisa bruta, sem janelas para as sutilizas do ser civilizado, de modo que qualquer cheiro elaborado não chega devidamente decodificado ao meu cérebro. Assim qualquer informação adicional, além de “bom” e “mau”, ou simplesmente “gosto” ou “não gosto”, se perde no meio do caminho.
Sei, porém que o “dela” está classificado como “gosto”.
Uma dicotomia tão simples, tão primitiva, que serviu de força, estímulo, o bastante para que eu desistisse do estado de calma e partisse rumo ao desafio. Isso mostra o quanto o ser humano precisa de pouco para viver. Cabras precisam de pouco para viver. Seres humanos e cabras, bípedes versus quadrúpedes. Gosto versus não gosto. Dinâmico versus estático.
Me perdi. Sou uma cabra, ou melhor, uma besta.
Horas se passam sem que nada que valha a pena ser lido nasça. Nascer, crescer, reproduzir e morrer. Acho que meu trabalho como escritor se resume a essa última etapa. Afinal, qual o por quê de passar pelos demais estágios? Qual a razão de insistir e gastar, recursos e esforços, quando o esforço é apenas um? Ah sábio monge! Monotonia! Monotonia! Largar a paz e a segurança. Abandonar a dicotomia primitiva de nosso cérebro animal, por um sentimento absurdo, com tênues variáveis, de muitas dúvidas e poucas certezas.
Gastarei mais horas. Talvez dias. Ao final, pode ser que meu trabalho não renda. Não saia. Não frutifique. Apenas nasça, e então morra, escondido, perdido para sempre em minhas anotações fúteis. Quando a certeza falta, a dúvida vem em abundância, porém nem ela é capaz de fazer que eu desista do movimento em que me pus por causa dela, a outra.
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