SONHOS DE SOMBRAS DE MENINA EM ROSA

Convidou-o então para dentro da sua casinha toda de madeira em verniz, num canto obliquo do quarto cor de rosa. Chovia lá fora dessas chuvas longas que parecem querer se estender por todo o dia, fina, espalhada. Deu a mãozinha pequenina e gorduchinha para o barqueiro, e embarcou, segurando a sombrinha em forma de pétalas cor de rosa sobre a cabeça. A imaginação. A nevoa irrisória enchia a atmosfera e logo se viu tão pequenina, pequenininha, mas dentro desta miniatura tudo coube no tamanho ideal, normal, em seu vestidinho cor de rosa, sentada a caminha feita de caixa de fósforos de palitos longos, com criado mudo também. Apareceu um abajur retangular, e logo uma mão que o acendeu puxando a cordinha; seus olhinhos foram para aquela mão.

_Vinicius – disse fazendo um biquinho momo no rosto de balãozinho inflável. Aqueles cabelos louros caindo sobre o rosto em desalinho; a camisa preta com uma caveira sinistra estampada. Azedo!, o que você está fazendo aqui? Você me quer Duchinha, você me convidou para eu entrar, disse crispando os lábios com aquele ar de bocó.

_Sai, sai – virou-se, apertando os olhinhos faiscantes, afogueada – sai seu azedo, nojento, feioso, branquelo, mocorongo. Eu te odeio!!! Eu quero o Vinicius!

Pader sentou-se ao lado da Duchinha, na caminha feita de caixa de fósforos de palitos longos, apoiou o rosto entre as duas mãos espalmadas de braços cotovelos fincados nos joelhos.

_Ducha você me quer, você me quer; me chama de nojento, de azedo, mas me quer.

Não, não, socava o colchão de colcha cor de rosa, Que merda de imaginação!, estava ofegante, suada, quase descabelada. Mas não achava Vinicius tão bonito, meu Deus!, moreno, aqueles cabelos cacheados, corpo atlético, sempre de bermuda florida, surfista, adora uma prancha, ondas, “swell é tudo biquinho de mafagafo”, violão tentando levar Jack Johnson, Jota Quest, Ah, Vinicius, até as axilas dele é perfumada, parece que esfrega flores naqueles sovacos, e riu, Mas então por que desgraça este horroroso branquelo do Pader, cabeludo, roqueiro tem que entrar na sua imaginação, em sua casinha de bonecas que ela resgatou lá daquele galpão de velharias?

Esfregou o rosto se olhando no espelho oval de moldura cor de rosa, pregado a parede. Uma careta contrafeita.

_Será possível que... que – e esticou os beiços num bico, chateada – Não, não, definitivamente não. A chuva lá fora, pela janela, olhando para baixo via os sapinhos de gesso encharcados, mas ainda conservando aquelas caras descontraídas de quem curte um lindo dia de sol. Deitava-se e a imaginação, era só fechar os olhinhos e Pader aparecia com a camisa preta do Slipknot, Azedo!, sai, sai, Ah, Vinicius sentado na areia da praia, a prancha descansando enterrada na areia fofa e úmida ao seu lado; braços cruzados sobre os joelhos, de sungão branco, Que nuvem e a aquela vindo por detrás daqueles morros verdes veludados, avançando, avançando, cobrindo o sol?, o frio de repente (encolheu-se, apertando os bracinhos no corpo), o vento, o mar de azul ficando cinza-chumbo, e cadê, cadê Vinicius?, o pescocinho mínimo para lá e para cá no meio de uma duna; sentiu a mordida fria daqueles dentes, sentiu os cabelos dele resvalando pelas suas costas, Lobo, Lobo! Mordendo a Chapeuzinho cor de rosa, e voou o chapeuzinho de palha com fitinha com de rosa entrelaçado, foi voando, voando e ganhou o mar revolto, plúmbeo, e aqueles braços a apertando, virou-se ofegante, aquele rosto branco, macerado?, Olhos de um verde doido, de testa vincada, lábios abertos expondo os dentes em garras de lobo, Sou um lobo, rosnou com os cabelos desgrenhados pelo rosto tornado-se vermelho de ódio, Ah gemeu a Duchinha sem conseguir correr, sentindo os pés enterrados na areia fofa, as garras daquelas mãos branquíssimas de punhos com pulseiras de couro crivada de espinhos de metal, Ai, ai, sufocava-se se entregando languida para o beijo-mordida quase lhe ao ombro debaixo daquele céu denso e cinza escuro de tempestade, o mar revolto cor de asfalto quase sobre seus pezinhos, Ah, ah, Pader!, Que Pader!, Não, não, berrava alvoroçando os cabelos tão bem penteadinhos pela manhã. Acudiu para colocar no som um Chopin, Andréia dizendo, Desafinado!, o biquinho que diz “ignorante”, hum desafinado, musica clássica se ouve com a alma, mas se cansava e lascava a ouvir Christina Aguilera, Beyoncê misturado a Linkin Park. Bailarina, ainda tentava na pontinha dos pés, mas louca por bombons, docinhos, hum, qualquer deprê atacava uma caixa de bombons com sofreguidão. Os bombons mais gordinhos, cheio de recheio. Levando a boquinha de Vinicius, ah aquela tarde ensolaradissima, ele tocando violão à varanda, sem camisa exibindo aquele peito liso, moreno, definido, ficava com o rostinho de balãozinho em brasa, mas sempre vem o sem-graça com piadas, Bobo! Olha-se no espelho oval. Passou, será?

_ Eu não acredito – dizia para sua imagem refletida no espelho – Não acredito sua burra, que você gosta daquele azedo . E todo affair quando o Vinicius aparece?, todo cheiroso que ele é, Vinicius. Aquele azedo do Pader fede! – fez uma careta contrita no rostinho de balão inflável – aquela juba loura, horrorosa, branquelo, desengonçado, mocorongo. Vinicius me salve, salve sua Mafagafinha –e desprendeu do bico uma risada tremula.

A Dona Ana com seu enorme pescoço de peru mandava as meninas suspenderem as pernas sobre as barras, e a Duchinha com a sua perninha curta, no seus saiote crepe rosa, atarantada. Ela aproximava-se num meneio de cabeça em gesto de censura.

_ Precisa emagrecer Dasha. Suas perninhas são muito curtas – dizia com as mãos magrelas de dedos longos num gesto que se assemelhava aos seus cílios enormes.

A menina rodopiava então na ponta dos pés, as mãos fechando em arco no alto da cabeça.

_Mas eu sei rodopiar, professora, olha, na ponta dos pés –e terminava caia estabanada causando risadas as outras, fechava o bico enfezada, triste, o mais agudo era a gargalhada de Letícia, magrelissima, pernas longas, pescoço comprido, Negra!, tinha vontade de lhe gritar na fuça, mas não podia, chamá-la-iam de racista, mas anarquizavam-na por ser gordinha, achatadinha. A verdade é que Letícia era linda!, magrelissima e comprida como ela desejava ser.

Atacava uma caixa de bombons. Queria o piano. Piano negro igual ao da foto que o vovô mostrara. Dona Ana a dava aulas. Progredia. Sentia-se mais orgulhosa. A casa da professora com tantas corujas de gesso espalhadas pelos moveis, mas ela tinha medo das duas carrancas logo de entrada, para que aquilo meu Deus?, dentro de casa. Coisa de velha solteirona, era o que ouvira Letícia dizer.

_Dasha vem descer para almoçar – a voz da mãe ao pé da escada. Em casa hoje a dentista recém formada?, trabalhando quase todo dia, Quero me matar de trabalhar, mostrar que sou útil Rodolfo, Mas Alessandra o que eu ganho no escritório somado a nossa loja de motos dá para viver bem, era papai querendo-a em casa, cuidando dos filhos, Negativo Rodolfo, trabalhar, progredir, me formei para que hem, mamãe cuida da casa e das crianças.

Danilo estava sentado a cabeceira da mesa, papai ficara pelo escritório (raramente vinha para casa almoçar dia de semana), afrouxou o nó da gravata, Dasha olhou-o com despeito, Metido está achando que é homem só por que esta tomando conta da loja, gravata sem paletó, É chique, lindo!, exclamava vovó mastigando e bebericando um pouco de gim com Tonica, Muito lindo meu neto. Dasha olhava-a ressentida, Eu sou a achatadinha, pensava dolorida, com o bico enfezado, olhando a comida já um pouco refugada no prato, sedenta pela sobremesa, aquele mousse de maracujá, hum delicia!, flan de chocolate, delicia! Chocolates, para que preciso ser tão bonita se tudo na vida que eu preciso mais é chocolate, chocolate, Ah, chocolate, suspirava, Pensando no Pader?, gargalhou Danilo debochado ao vê-la suspirar de olhinhos fechados. A gorduchinha enrubesceu, De onde ele tirou isto?, cismou, mas fechou o bico enfezada, quem é Pader? Ham-ham, fez Danilo mexendo no nó de sua gravata, os ombros um pouco úmidos por causa da chuva que levara na vinda de moto, apenas com capa, passou o guardanapo na ponta dos lábios, rindo, os cabelos negros caindo aos ombros, levantando-se empertigado, Pensa que não sei, “Quero um marido louro, um marido louro”, remedou-a causando risadas na avó e na mãe, Era para a boneca seu burro!, disse em brasas o rostinho inflado de ódio, o biquinho tremulo, e aquelas lagrimas de ódio denunciando. Levantou-se da mesa, precipitou a escada e trancou-se no quarto, aflita, olhando pela janela aberta, o céu se abrindo, a chuva acabou-se, ficaram aqueles pinga-pingas das calhas, a água escorrendo para as sarjetas nas calçadas, ali a grama molhadinha, de repente o sol ousando aparecer foi brilhando tudo, irisando o pátio encharcado. Frescor, sorriu abrindo o rostinho rechonchudo para a janela; o gato apareceu um pouco molhado ao batente, de um salto.

_Lowe onde você esteve meu neguinho?, se molhou – afagou-o, ele espargiu o excesso de água no pelo num espargir dos pelos, a menina deu um salto para trás assustada e rindo; atentou o ouvido para o ronco da moto. Danilo voltava para a loja. A capa não precisaria usar mais. O dia estava aberto! Metido!, pedira tanto a papai, O piano papai, preciso treinar, a Dona Ana disse que faço progressos, Bah, mas urgente era a moto, moto!, piano difícil, difícil piano hem, mas do que caro é difícil, Piano negro, esta Ducha, dizia papai assim conferindo os extratos de contas em pé junto à mesa da sala de jantar, uma mão no bolso da calça. O carro, dois, mas a moto, tirava onda, ficavam excitados com os olhares admirados e de inveja dos vizinhos pelas janelas de suas casas, pelo portão, espiando, “Essa família progride”, diziam, e vovó puxava conversa no portão, Dasha cismou que quer um piano agora, um piano, ver se pode?, Daqui a pouco quer violoncelo, essas crianças, e a voz esganiçada da vizinha com quem ela conversava, Nossa que criança chique!, hoje em dia criança só quer celular, notebook, ipod..., A Ducha é eruditissima, se fosse magrela poderia ser uma boa bailarina. Que ódio!, levantava o vestidinho até as coxas, conferia suas perninhas curtas, gordinhas, Ah, que inveja das pernas de Letícia que ela jogava lá no alto da cabeça, Nega besta, Linda!, o Pader iria preferir ela a mim, deu de ombros, Que Pader faça bom proveito, azedo! O Vinicius sim vale um mês sem bombons para ficar um pouco mais magra, e correndo para o espelho oval, tirou-o do prego, colocou-o no chão escorado a parede, se analisando apenas de calcinha e blusinha curta, Não sou gorda, gorda, sou fofinha, talvez um pouco achatadinha. Puxou com o dedinho o fio minúsculo da calcinha cor de rosa no bumbunzinho pequenininho e rechonchudo, e sim pequenininho, riu tornando-se escarlate. Rosa desmaiado. Rosa bebê.

RODNEY ARAGÃO