O Sonho

Lá estava eu, flutuando na escuridão. Sonhos assim são muito bons, sozinha e sem rumo, sem preocupações nem pressa. Geralmente estes são os mais tranquilos e mais curtos, mas havia algo diferente, inusitado. Ao longe, em meio à escuridão havia uma figura colorida se muito sentido, e quanto mais eu me aproximava mais nítido ficava. Em pouco tempo pude compreender. Era um quadro lindo, mas seu formato era estranho, era oval e podia ter o tamanho de um espelho de corpo inteiro, a pintura não tinha moldura e a tinta da borda se espalhava suavemente pelo ar, como se fosse pintada diretamente ali. A figura, que parecia se feita de tinta a óleo, era um pouco embaçada, mas eu pude perceber que o quadro retratava algumas pessoas que andavam ao redor do que me parecia uma praça ou um bosque, não sei bem. As pessoas se vestiam muito bem, talvez suas roupas fossem do fim do século XVII ou início do século XVIII. As mulheres usavam coques altos e bem presos, até as mais jovens, e chapéus muito elegantes. Seus vestidos tinham mangas compridas e bem coladas ao corpo, suas golas eram quase todas altas e as cores dos vestidos eram sempre uma cor neutra ou suave, com detalhes muito leves e discretos. A julgar pelas roupas eram todas mulheres de respeito.

Eu ainda flutuava em direção ao quadro e não conseguia parar, eu ia bater nele e nem se quer podia mudar de direção, era como se eu estivesse sendo sugada para ele, até que percebi que o quadro ganhara vida, as pessoas estavam se mexendo e aos poucos fui me sentindo mais leve, em pouco tempo eu estava entrando no quadro. Eu sobrevoava a cabeça de umas velhinhas até estar de frente com uma garota que estava na fundo do quadro, sem destaque algum e antes mesmo de perceber mergulhei, entrei na cabeça dela por entre seus cabelos castanhos, brilhando e muito sedosos. Por alguns instantes tudo ficou escuro e muito quieto e então, de repente, senti tudo o que ela sentia, escutava cada pensamento que ela tinha.

Aquela não era uma garota feliz. Sua vida era normal e ela pensava que jamais seria notada. Era uma garota fechada e solitária, não tinha amigos e não sei de seus pais. Era muito insegura, o que me fez lembrar de mim mesma, estava sempre lendo e sempre quieta, ouvia as senhoras conversando e comentando que pessoa estranha ela era, sempre só. Em sua mente sempre surgiam pensamentos ruins, ela achava que não tinha importância para ninguém, outra coisa, que na época, me fez lembrar de mim. Mas naquele momento ela estava preocupada com outra coisa, parecia que todos estavam, mas tentavam ignorar, estava havendo alguns desaparecimentos na cidadezinha, a maioria de mulheres, por isso muitas estavam tão apreensivas.

Foi em meio de tatos pensamentos um tanto confusos que ela o viu pela primeira vez. Ele era uma figura muito misteriosa, usava um sobretudo preto e pesado que chegava quase aos seus pés, calçava sapatos pretos e luvas brancas, em sua cabeça havia uma cartola preta muito bonita cuja aba cobria parte dos olhos, por estar com a cabeça levemente curvada. Seu rosto era bem claro, quase pálido, podia ser por causa do contraste com a cor de suas roupas e o cabelo, o qual o comprimento ia até mais ou menos a nuca e era bem escuro, mas não chegava a ser preto. Por mais que eu tente, não consigo me lembrar do rosto dele.

Num breve momento me esqueci que estava dentro da mente da garota e tentei continuar olhando-o, mas ela virou o rosto novamente e continuou a andar, estava indo para casa, já estava ficando tarde para uma garota sozinha andar por aí, ainda mais com os desaparecimentos. Chegando em casa, ela se ajeitou, deitou e dormiu. Dormiu pensando naquele misterioso homem que vira mais cedo.

Aquela cidade era muito pequena, tive a impressão de estar na Inglaterra, mas não sei, mesmo assim sempre fui apaixonada por lá, principalmente por aquelas ruas feitas de paralelepípedos grandes, pelo estilo arcaico das casas, tudo.

Mais um dia se passou e lá ia ela para a praça ler um livro sentada no banco,não sei se era de pedra ou madeira. Enquanto percorria seu caminho alguém se juntou a ela em sua caminhada, bem sem graça olhou para o lado para desejar boa tarde,Mas não conseguiu concluir seus pensamentos, viu quem ela pensara a noite inteira. Ele era jovem, bonito, forte e não muito mais alto que ela. Ele puxava conversas e mais conversas e ela ria, sorris e tão inocentemente o ouvia que antes do anoitecer havia sido conquistada, mas não percebera isso de cara, eu que percebi, e assim como ela, só pensava nele.

Os dias passavam depressa e os pensamentos dela (e meus também) resumiam-se apenas nas tardes conversando com seu querido amigo. O único que tinha. Quando passeava com e ainda podia ouvir as senhoras, que nunca tinham o que fazer, dizendo que ela era estranha e falava apenas com aquele moço, mas aquele tipo de comentário não entrava mais em seus pensamentos.

Uma certa tarde quando foram se encontrar ele tinha algo para dizer, recebeu-a sorrindo como sempre, na verdade parecia que era apenas com ela que ele sorria. O que ele tinha a dizer não disse, mas deu a ela um presente. Mostrou cordialmente uma caixinha retangular e comprida de veludo preto, logo abriu-a e dentro havia uma linda pulseira que era feita de esmeraldas e a corrente que prendia as pedra podia ser de prata ou ouro branco, não sei ao certo. Ela ficou muito emocionada, não era muito acostumada a ganhar presentes, ou talvez ficara tão feliz por ter ganho dele. Foi naquele momento que ela teve consciência de seus sentimentos por ele, ela queria falar, mas as palavras não saíam de sua boca, não as que ela queria que saíssem, apenas agradeceu-lhe baixando um pouco o rosto por estar envergonhada e extremamente feliz. Algum tempo depois estávamos em casa prontas para dormir, pensando apenas nele, e logo que ela decidiu se declarar a ele, adormecemos.

A garota estava se arrumando em frente ao espelho oval de seu guarda-roupas de madeira escura, no outro dia. Pelo espelho podia se ver o resto daquele cômodo, não morava numa casa grande, parecia ser apenas quarto-sala, cozinha e banheiro, o guarda-roupas era ao lado da porta e à frente dele, rente a parede, havia uma cômoda da mesma cor que a cama, no fundo, pendurado na parede havia um crucifixo escuro e muito bonito. Ela arrumava o vestido amarelo claro e em seguida amarrava o cabelo num rabo de cavalo alto, deixando as pontas de seus cabelos caírem sobre seu ombro, então saiu.

Não consigo me lembrar o que ela foi fazer e nem de mais nada daquele dia, só consigo me lembrar de acordar no meio da noite com mulheres e homens gritando na rua, podia ver algumas pessoas correndo acompanhadas de luzes, que podiam ser tochas acesas. Acordamos sem entender nada e continuamos deitadas, mas logo um sorriso se abriu prontamente nos lábios dela, ele passara pela janela. Estava tudo tão escuro. Ele abriu a porta e parou olhando-a deitada e sorrindo, ela perguntou o que estava acontecendo, mas ele não respondeu, ele simplesmente correu até ela na cama e se debruçou para abraçá-la, deu um beijo em sua cabeça e sussurrou em seu ouvido com uma voz trêmula e triste:

- Me desculpe...

Nem ela e nem eu entendemos aquilo, foi quando senti ele pressionar o pulso dela contra a cama e senti também a dor fina da pulseira contra a pele dela e então veio a maior dor, dor que nunca senti na vida, nem acordada e muito menos dormindo. Senti a dor aguda e forte de um punhal cortando a pele e até mesmo perfurando o pulmão. Entendi o pedido de desculpas, mas faltava ar para que ela conseguisse dizer as palavras que berravam em sua mente:

- Eu te perdôo, meu amor! – mas as palavras não saíam.

As coisas ficavam claras em minha mente enquanto o observava sair da casa levando aquela pulseira. Ele olhou para ela mais uma vez e correu. Ele deveria ser o culpado pelos desaparecimentos, mas isso não importava. Ela estava bem, eu estava bem e toda a correria ia ficando embaçada, os olhos dela foram se fechando e um tempo depois ela morreu. Foi quando eu abri os olhos e me vi na mesma posição que estava no sonho, mas no meu quarto. Tudo estava claro e eu havia acordado apaixonada por um sonho.