O ódio é o amor ao espelho
A Luz definia-te o dorso, a curva doce das costas, a opulência das nádegas, a trajectória dos pelos no sulco que se escondia entre as sombras do lençol amarrotado. Estavas na oblíqua de um espaço, o nosso campo de lutas eróticas, nosso antigo lugar de sonos e de sonhos. No segundo plano a cortina de renda, o azul do reposteiro pesado, o reflexo da claridade no espelho. Dormias. Sem agressividade eras uma mulher interessante, diria que mesmo muito bonita. A maturidade atenuou a firmeza das linhas mas deu-te a doçura das curvas em novos moldes, mais doces e ainda empolgantes.
Uma vontade quase dolorosa de te possuir tomou conta de todo o meu corpo. Sentia, por ondas de calor, o ingurgitar do sexo, o rubor do rosto em fogo, a secura da boca. De relações cortadas contigo e sem nenhuma vontade de me humilhar mais uma vez, deitei-me na beira da cama e fiquei a olhar o vazio com todos os sentidos despertos para o registo das oscilações mínimas da tua respiração, para o acentuar do calor nas proximidades do teu corpo, para os ruídos breves, quase raspados, da tua boca a viver as calmarias de uma planície lisa onde talvez voasse a tua nudez livre de obstáculos. Talvez estivesses a representar o anjo de melenas soltas na brisa que atenuava o calor intenso ou talvez estivesses quase a tocar com os dedos, não as estrelas mas o sexo de outro alguém sem asas, robustamente apostado em exibir-te os acessórios que te atraiam para a lascívia com que te torcias agora e com que gemias de prazer.
Afastei-me o que pude mas, a seguir, deixei que te aproximasses e te encaixasses junto ao meu ventre, ainda mais sensual se isso fosse possível. Suportei, imóvel, as tuas carícias, os teus dedos a pressionarem as minhas coxas e a subirem para o sexo em riste. O que sucedeu a seguir teve lugar numa sombria sonolência, quase como se a cópula mais não fosse que o voo manso ao jeito do tal anjo sem asas mas disponível para a união que te acalmava a sede, a raiva e todos os movimentos bruscos. Acordaste numa altura em que já não era possível qualquer recusa e empurravas-te contra mim com uma força desesperada. Todos os nossos músculos se contraíram em espasmos e percebi que o teu anjo devasso acabara de vestir a minha pele e amava como eu, ávido e desesperado.
Exaustos, lavados em suor, os nossos corpos abandonavam-se a uma lassidão que não consentia nem gestos nem palavras. Estávamos em doce catalepsia, uma quase morte onde só o pensamento se mantinha desperto e a vida se percebia na respiração ofegante. Mas…durou pouco esta pausa. Logo depois, com efeito, os teus punhos fechados batiam-me no peito e a tua boca, passou a gritar as palavras obscenas com que traduzias o asco e o ódio. De anjo serenamente disponível, eu transformava-me no monstro da tua história, um violador sem escrúpulos, uma aproveitador barato das carências que tinhas exteriorizado sem hipótese de defesa. Não retorqui. Há muito tempo que tinha desistido de te contestar. Comprava com o silêncio um pouco de tranquilidade e encolhia-me para que a serenidade te chegasse mais rapidamente.
Levantei-me, então, e fui para o quarto de hóspedes. Regressava ao limbo, a uma certa forma de não existir que se traduzia em absoluta reserva. De palavras, de sons, de presença. Mas, desta vez, jurei a mim próprio que seria diferente. Poderias vir com todo o arsenal de truques amorosos, de pedidos indirectos, ou de sugestões que eu estaria frio e fechado a qualquer aproximação. Evitaria o nosso quarto, chegaria a casa quando já estivesses recolhida.
Aprendi contigo, finalmente, a construir desertos, a deslizar pelos silêncios, a esconder-me nos roteiros menos frequentados da casa. Só não aprendi o ódio, a aversão, a vontade de te eliminar fisicamente tão visível em ti a meu respeito. Em mim continuavas a existir como meu prolongamento, como a complementaridade em que deveria expressar-me para existir como homem adulto, pronto para a luta da vida e para o amor. Era pelo amor que tolerava os teus impulsos suicidas, o teu culto idiota pelo corpo, a tua vontade de, aos quarenta e sete anos, ainda achares que poderias desfilar como o belo modelo que foste aos vinte. Pelo teu amor desisti dos filhos que nunca quiseste para que o peito não caísse e o corpo se não deformasse. Por amor, aceitei a falta de naturalidade em todas as nossas manifestações de afecto. Um abraço ou um beijo estiveram, sempre, condicionados pela seda do vestido, pela maquilhagem, pelo cabelo arranjado… Mas agora estou cansado e farto. Já não tolero mais uma mulher boneca, caprichosa e insensível. Vou pedir o divórcio e vou sair, sem destino, para onde não seja possível voltar a ver-te. Fugir é a única solução que vejo para te arrancar de mim. Levo as mágoas comigo, a tristeza de te saber irremediavelmente longe.
E fui. Em África rodei pelos anteriores lugares onde fomos felizes, onde nos conhecemos e começámos a fazer vida em comum. Não querias casar para não alterar a tua carreira e vivias a maior parte do tempo em viagens intercontinentais. Aqueles lugares e aquela gente, porém, já não eram os mesmos. Com amor, os olhos vêem coisas bem diferentes. Agora sentia a desorganização dos espaços, a degradação das estruturas e a miséria das pessoas socialmente excluídas. Faltava-lhes tudo e tornavam-se anti-sociais. A África como paradigma da violência e da frustração. Não havia lugar para mim naquele inferno e, só por isso, voltei ao fim de pouco mais de um ano. A nossa separação fora, entretanto, decretada e, agora, era uma questão de dias para o divórcio ser declarado. Evitei pensar nisso. Voltei a ocupar o meu lugar na firma de exportação e retomei o rumo manso dos dias vazios. Passei a ser um exemplo de desamor e solidão.
Sabia que continuavas doente, deprimida, que continuavas a viver com os teus pais, que ainda tinhas atitudes de menina e, que, por isso mesmo se riam de ti. Ninguém te explicou que fazias um papel patético e ridículo. Nem os teus familiares mais próximos iam além do desdém e do encolher de ombros. As empresas que contratavam modelos começaram e recusar receber-te e devolviam-te a correspondência sem abrir. O mundo da moda é para gente jovem, bonita, treinada. Tu pertencias a outra geração, aos conceitos e cânones anteriores e ninguém tinha tempo para te receber e para te explicar o que achavam que sabias.
Mas, um dia, finalmente, desististe de tentar, de fazer o tempo regredir, de voltar às glórias do passado. Percebeste que a tua juventude já se fora. Sentias os calores da menopausa, os achaques nervosos, a depressão a bater fundo na tua vida. E dessa forma de estar no mundo não gostavas. Foi por isso que te fechaste também, que o teu espírito se refugiou numa espécie de loucura e que tiveram de te internar numa casa de repouso para doentes mentais. A notícia do nosso divórcio já te achou alheada da realidade, dizem que bem mais feliz…
Fui visitar-te. Já não sabias quem eu era. O meu rosto ou o meu nome já não te enfureciam. Rapidamente senti que preferia a tua raiva à indiferença mas aceitava-te de qualquer maneira. A verdade é que já não sabias quem era ninguém. Com o passar das semanas, como o teu estado se tivesse estabilizado e ali não obtivesses mais melhoras, pensaram em dar-te alta mas a tua família não te quis e os teus pais estavam velhos demais para assumir mais essa responsabilidade. Assim, resolvi que teríamos de voltar para a nossa casa e ficarmos juntos. Eu cuidarei de ti até que a razão volte ao teu cérebro. Farei o que me for possível para que recuperes a memória mas sei que, se esse dia chegar, voltarás a expulsar-me sob uma chuva de gritos e palavrões. Se isso acontecer, terei de te cuidar de longe porque não irei embora outra vez. Aprendi que, num amor como este, não valem separações ou divórcios. Afinal não consigo que saias da minha pele. Vais morar sempre no meu coração e eu fingirei ser o teu anjo perverso sempre que te apeteçam voos de paixão.
FIM