Antônio & Antônia
Leia, abaixo, o conto ANTÔNIO & ANTÔNIA, vencedor do concurso literário de contos promovido pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES (SBD).
NOTÍCIAS SOBRE O CONCURSO E A FESTA DE COMEMORAÇÃO DOS 40 ANOS DA Sociedade Brasileira de Diabetes no site abaixo:
http://www.diabetes.org.br/component/content/article/44-ultimas-noticias/1526-concurso-de-contos-da-sociedade-brasileira-de-diabetes
ANTÔNIO & ANTÔNIA
Com a cabeça apoiada num travesseiro alto, Antônia pediu um copo de leite ao marido e indagou-lhe as horas. Devia tomar o medicamento as oito e sentiu-se imediatamente incomodada ao tatear a mesa-de-cabeceira em busca do despertador.
Sobre o criado encontrou apenas o velho porta-retratos e um copo d'água.
Então aguçou os ouvidos no objetivo de identificar de que ponto do quarto lhe estaria chegando os tique-taques do relógio.
Nos últimos dias bastava uma pequena contrariedade para fazer com que se sentisse impaciente e irritada. Mesmo carregando consigo a sensação de serem as suas atuais reações um efeito direto da doença sobre o seu comportamento, não conseguira descobrir uma maneira eficaz de se controlar.
Antônia deixou-se estar quieta, esforçando-se por trazer à memória qualquer lembrança que lhe indicasse ter sido ela própria quem houvera mudado o relógio de lugar.
"Não, decerto que não!"
Em seguida chamou o marido num tom que denotava a mesma irritação que a havia dominado um momento antes.
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Antônio - que já se encontrava no meio do caminho entre o quarto do casal e a cozinha - mal ouvira a voz da esposa. Antes de deixar o quarto, porém, dirigira-se à janela e abrira-a, permitindo que o fraco Sol de maio refletisse sobre as pernas de Antônia.
(Junto com o Sol, aproveitando-se da corrente de ar provocada pela movimentação da janela, uma pequena mosca se insinuara no quarto e voejava em círculos que se amiudavam na medida em que descia ao chão...)
Antônia permaneceu quieta. Durante um momento sua atenção fora desviada de seus próprios pensamentos para os ruídos que começavam a invadir o ambiente.
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O casal morava na casa há trinta anos. Em determinada época, Antônia se vira necessitada a prestar mais e mais atenção em cada um dos sons provenientes da casa e da agitação na rua e na vida ao seu redor: o gotejar da chuva nos telhados, o ranger de portões, o latido preventivo dos cães.
Sentada numa banqueta diante da máquina de costuras - amparando entre os dedos um bastidor de madeira - não foram poucas as ocasiões em que Antônia dera por si ouvindo conversas das pessoas que transitavam na calçada.
Muitas vezes ela se distraíra remendando na imaginação certas frases que lhe chegavam vazias de sentido. As palavras então ganhavam novos arranjos de significados quando conjugadas no tempo e no espaço da memória.
Havia ainda os rumores no interior da velha casa. O som do vaivém do pêndulo no antigo relógio de parede, o ligar e o desligar mecânico da geladeira, o gotejar de uma torneira semi-aberta e o inquieto brincar das crianças no passeio público.
(Antônia aos poucos fora percebendo ser a vida mais prenhe e repleta de ruídos do que jamais imaginara um dia!)
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No dia anterior chovera o suficiente para que se tomasse difícil o percurso do casal até o hospital. E a ausência momentânea do filho obrigara-os a tomar um táxi e a caminhar alguns metros.
(Sempre que ia à rua, Antônio dobrava o braço num arco formando um ângulo de noventa graus. Antônia se apoiava no cotovelo do companheiro ou trançava o próprio braço no dele num gesto aparentemente romântico. Assim, os movimentos do marido davam à mulher a orientação de que necessitava para ir em frente ou virar para um lado ou outro. Em certos momentos Antônio a alertava sobre a presença de saliências ou degraus no passeio. Ela então diminuía a marcha e alterava o traçado do próprio trajeto.)
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O médico marcara o retomo ao consultório no terceiro e no sexto dias após o início do tratamento. De posse da nova radiografia que a mulher lhe trouxera, o doutor garantira ter havido significativa melhora no estado geral dela. Lembrara-a, porém, acerca da necessidade de continuar tomando os remédios até o término do tratamento.
Diante do olhar espantado do marido, o doutor justificou-se afirmando que muitos pacientes paravam de tomar a medicação assim que se sentiam melhor ou quando alguns sintomas mais evidentes da doença desapareciam. E como o caso de Antônia a princípio se lhe afigurara um tanto grave devido ao diabetes e à idade da paciente...
Em seguida, voltando-se para Antônia, alertou sobre a necessidade da ingestão de líquidos:
- O importante não é beber uma grande quantidade de água de uma só vez, mas tomar um gole a cada momento. Deixe um copo por perto e vá bebericando devagarzinho...
Com mau humor, Antônia afirmou estar bebendo o que ela considerava ser uma “enorme quantidade dos mais variados líquidos”. E contou que o marido não podia vê-la quieta que logo lhe apresentava um copo de chá ou um suco de laranja.
- Outro ponto essencial na recuperação é o descanso, continuara o médico. A senhora deve evitar os gastos inúteis de energia. Não sei se já reparou na sabedoria que os animais demonstram quando doentes: um cão, por exemplo, isola-se e permanece encolhido até que esteja melhor...
Ao final da consulta o doutor recordou-lhes a influência que uma alimentação saudável teria para saúde da paciente naquele momento, ainda que soubesse da sua atual fase de inapetência.
Em verdade a chapa revelara ainda uma pequena mancha no pulmão esquerdo de Antônia, mas o médico assegurou-lhe ser aquilo perfeitamente normal. O interessante no caso era o fato de que a mancha se mantivera estável entre as datas em que uma e outra radiografia haviam sido tiradas. Assim – excetuando-se as vias aéreas ainda um pouco obstruídas – nada mais havia a fazer. A febre desaparecera, sinal de que o medicamento estava surtindo o efeito desejado.
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No momento em que Antônia se preparava para chamar o esposo, ouviu seus passos no corredor. Antônio se aproximou trazendo um copo de leite morno.
A respiração ainda um pouco cansada da mulher fez renascer no marido um sentimento semelhante ao que ele experimentara na época em que surgira em Antônia os primeiros sinais do diabetes...
(Antônio completara setenta e cinco e Antônia setenta e nove anos de idade em junho passado. Por uma feliz sincronia do destino os conjugues haviam nascido nas proximidades do dia do santo casamenteiro. Por isso haviam recebido aquele nome.
Fora devido a essas mesmas coincidências - o dia do nascimento e a escolha semelhante dos respectivos prenomes - que eles haviam se conhecido décadas atrás. Eram então muito jovens e o acaso de uma festa e a apresentação recíproca por um amigo comum tomara possível o encontro e o inicio de uma afeição que se transtomaria em amor e compromisso.
Tempos depois - após o nascimento do filho - Antônia começara a se queixar da saúde: apesar de ingerir grande quantidade de água e outros líquidos, desidratava-se freqüentemente e costumava sentir muita sede.
Naquela ocasião submetera-se a um tratamento médico para o controle da doença diagnosticada. Com o passar dos anos, porém, acabara perdendo a visão.
Assim - diante das dificuldades que a maternidade naturalmente imporia à mulher - Antônia e Antônio decidiram se limitar àquele único filho...)
Antônio tocou nas mãos da esposa apresentando-lhe o copo de leite e duas pílulas:
- Demorei?
- É... Já deve ser mais de oito horas! Você sabe como eu fico ansiosa quando vai se aproximando o horário dos remédios...
O homem percorreu com os olhos o espaço existente entre o criado mudo e a cadeira-de-balanço e reconheceu ter feito algo que deixaria Antônia muito mal humorada em boa parte daquela manhã: tirara o relógio-despertador da mesa-de-cabeceira e transferira-o para o assento da cadeira.
(Aquele fora um dos arranjos e compromissos que marido e mulher tiveram que combinar entre si: jamais tirar um objeto do lugar sem que fosse dada a imediata ciência à mulher. Outras “convenções” e “acertos” vieram posteriormente a partir da experiência de ambos no dia-a-dia...)
Antônio observou a esposa levantar-se da cama, caminhar até a cadeira e apanhar o despertador, depositando-o no seu lugar de origem. Antes, porém, pressionou um pequeno botão na lateral do aparelho e ouviu uma voz metálica apregoar oito horas e dois minutos.
Em seguida ela voltou até a cadeira, acomodou-se, fechou os olhos e adormeceu.
*
O Sol iluminava todo o corpo de Antônia, proporcionando-lhe agradável sensação de bem-estar e prazer. O dia aquecia-se lentamente.
Pareado ao tique-taque do despertador, ouviu-se no quarto o zumbido de uma mosca. Antônio acompanhou o voejar do inseto até o braço de Antônia. Junto a este – e sobre o criado mudo - o homem avistou o porta-retratos onde uma Antônia vistosa e cheia de rendas sorria numa antiga cena de casamento...
Por um momento Antônio dispôs as duas mulheres diante de si, a Antônia real e a jovem da fotografia. Acima das visíveis diferenças, tivera o homem a nítida impressão de que as duas “Antônias” em muito se assemelhavam: ainda que as mãos daquela se enchessem de vida na pose da câmera fotográfica e que os ombros da outra aparentassem pura imobilidade; mesmo que o cabelo desta houvesse se esbranquiçado aos poucos - um fio aqui, uma mecha mais vasta logo além - com a cabeça por fim toda se enfeitando de neve; e – finalmente! – apesar dos olhos de uma se encontrarem atualmente turvos, um dia se mostraram acessíveis e ternos como no porta-retratos.
Ainda assim, algo permanecera. E esse “algo” - e era ai que o homem já não saberia explicar ao certo o quê - resistira ao passar dos anos. Antônio deteve-se por mais algum tempo observando a figura da esposa: os olhos fechados, as mãos bem feitas de dedos longos...
(Desde mocinha, Antônia tivera os braços roliços... E os ombros, então! Como eram atraentes! E a Antônio chamara inicialmente a atenção os ombros e os olhos da mulher, olhos da cor de amêndoas, que a tudo seguiam com obstinação e desejo...)
Naquele momento, porém, os olhos da mulher não insinuavam desejo nem obstinação: mantinham-se fechados de um jeito tão estranho que acabaram atraindo o olhar do marido. Era como se além de impossibilitados naturalmente para as visões da vida e das cenas ao seu redor, estivessem igualmente em silêncio e envoltos numa névoa de solidão e impossível contato...
(e então – enquanto Antônio avaliava interiormente a expressão silenciosa da esposa - sentiu avantajar-se em si uma terrível percepção: Antônia estava por demais quieta em sua cadeira e ...
...e subitamente parecera ao homem que um misterioso silêncio se escapara dos olhos da mulher e preenchera todo o quarto até se tornar excessivo e difícil demais de suportar. Os olhos da mulher se mantinham inertes e o seu rosto surgira rígido como as faces de alguém que adormecera por excesso de cansaço. Era como se o rosto de Antônia houvesse se tornado vago e misterioso e se tivesse feito de pedra, cera, gesso ou argila. Antônio não conseguia captar ali nada que lhe denunciasse a vida...
...e então – aquela ausência de movimentos e a rigidez do rosto da mulher e o completo silêncio que se estabelecera no quarto – tudo aquilo fizera brotar nele um sentimento de perda...)
Era possível que Antônia estivesse dormindo. Mas se esse fosse o caso deveria estar percebendo ao menos alguma agitação no peito da esposa; e até aonde os seus sentidos conseguiam captar, não havia ali nenhum som ou movimento.
(O único ponto móvel perceptível era ainda a presença do pequeno inseto no braço de Antônia. Ele remexia as patinhas como se as esfregasse higienicamente com aquilo que o homem acreditava ser uma espécie de língua...)
Durante algum tempo Antônio se sentiu frágil e indeciso. E quando já se encontrava a ponto de se levantar e caminhar na direção da esposa, percebeu nela um leve movimento do braço...
(Com o movimento, a mosca se assustara e voltara a voejar pelo quarto. Num vôo súbito, ultrapassou o limite da janela, alcançou a rua e desapareceu. Assim como o inseto, Antônio também se assustara terrivelmente e agora suspirava aliviado como se também ele tivesse conseguido ultrapassar o estreito limite de uma janela...)
- Ah! – disse-lhe a mulher despertando – ainda está por aí?! Estive sonhando. Um sonho tão bom, da época em que nos conhecemos. Lembra-se daquele sujeito que nos apresentou na festa de Santo Antônio, no baile da Polícia Militar? Olhe que eu nem me recordava mais dele e não é que o homem acabou de aparecer no meu sonho!?
Antônio movimentou o rosto afirmativamente. Ocorreu-lhe, porém, que Antônia não percebera o seu gesto.
- O Gomes? Lembro-me bem dele! Usava umas roupas estranhas, respondeu olhando nos olhos da mulher...
Em seguida ajeitou a cabeça no travesseiro e tentou encontrar uma posição na qual também se sentisse menos incomodado...