O ESTRANHO DESFECHO DE UM ROMANCE IMPOSSÍVEL
À procura da origem do Bairro São Pelegrino, em Caxias do Sul, para compor o caderno sobre o bairro no jornal O Polenteiro, caiu-me nas mãos, vindo da biblioteca da Universidade de Caxias do Sul (UCS), um livro com a história geral da cidade, o qual eu não pretendi copiar, mas usar como referência para minhas investigações.
De início encontrei no livro relatos sobre a família de Salvatore Sartori e Angela Zancaner, chegada da Itália em 20 de fevereiro de 1879. Dessa família o autor destaca a jovem Maria, nascida no dia 17 de dezembro de 1865, coincidentemente no mesmo dia e ano que eu nasci um século depois. O autor do livro dizia de Maria que era uma moça à frente de seu tempo, sendo muito alegre, descontraída, inteligente e dada com todos. Contou o autor também sobre João Paternoster, um jovem padeiro a quem identificou como bom vivam, muito moderno e livre, que era apaixonado pela Maria, que era desestimulada desse romance por causa da má fama que corria a respeito do pretendente. Ela acabou casando com o jovem João Daniel Von Schlabrendorff, um barão leopoldense, que comprou os Lotes 1 e 1A, na periferia da pequena cidade de Caxias do Sul, correspondendo então ao bairro São Pelegrino, desde a catedral, indo em direção ao leste, e da mesma igreja, indo em direção ao sul, até depois da estrada de ferro.
Muito triste com o casamento de Maria, João mudou-se para Santa Cruz do sul, onde foi trabalhar como padeiro, construindo depois sua própria padaria.
Enquanto isto, Daniel construiu sua casa nos arredores de onde muito depois seria construída a estação ferroviária, indo morar com a Maria lá. Todavia, em virtude de que ela se sentia muito triste isolada naquele cantão, ele construiu uma casa em uma chácara fronteira à sua casa para que ela pudesse estar próxim a sua irmã Amália, casada com Rafael Buratto. Mais tarde Daniel construiu uma grande cervejaria ao lado da casa do cunhado, a qual Rafael, que antes era tanoeiro onde hoje é o jardim do Hospital Pompéia, começa a administrar, fabricando gasosas (vários tipos de refrigerantes) e uma afamada cerveja.
Daniel construiu também um solar na subida da estrada do Rio Branco, após onde muito tempo depois foi construída a estrada de ferro. Nesse solar morava a baronesa, sua irmã, que, diziam, comentou o autor, tinha ficado louca, pelo que subia e descia a avenida sem parar.
Do casamento de Daniel e Maria nasceram dois filhos, que morreram já grandinhos vitimados por um surto de tifo preto. Por esse mesmo tempo, o irmão de Daniel morreu em Porto Alegre da mesma doença, que vitimou também o pai de ambos, levando por fim Daniel, que deixou a desfilhada Maria também viúva. Todos foram sepultados no mausoléu da família Schlabredorff, o terceiro à direita do portão principal do cemitério Cristo Rei, em São Leopoldo.
Sabedor de todas essas coisas, João vendeu a padaria em Santa Cruz do Sul e voltou para Caxias, casando-se então com Maria que finalmente o quis para marido. Para ela foi um recomeço completo e juntos tiveram filhos, empreendendo uma fábrica de gasosa, bem como de cerveja e construindo de madeira num de seus terrenos a primeira capelinha de São Pelegrino, como João muito queria, também na estrada do Rio Branco.
Entre outras coisas, construíram o hotel Paternoster, que viveu dias de muita glória, situado distante da cidade e de outras casas, logo após a primeira subida da estrada do Rio Branco, mais ou menos há uns trezentos metros de onde atualmente está a catedral de São Pelegrino. Vendo a foto do hotel com João, Maria e os filhos na varanda da frente num tempo em que as redondezas eram campos e araucárias, reconheci a casa, que, puxando pela memória, recordei ter visto já bem judiada entre prédios modernos num pequeno plano logo após o início da avenida Rio Branco. Procurei visualizar um nome que via escrito num muro, chamando o lugar de Conservatório Musical Johan Sebastiam Bach. Corri para o local pensando em fazer uma foto atual da história com a minha própria máquina. Trilhei o percurso entre a catedral e a linha do trem várias vezes, não conseguindo encontrar a velha casa, apenas um sítio com ar semelhante, onde havia então um edifício novinho em folha. Decepcionado, pensei que os moradores do edifício poderiam saber sobre a casa que estava naquele terreno. Ocorreu-me, porém, que eles não tinham porque saber, haja vista que tinham vindo somente após pronto o prédio. Entretanto, teimei em entrar e falar com o zelador. No painel eletrônico da porta do edifício, apertei no botão do zelador. Pelo interfone expliquei à pessoa no outro lado quem eu era e sobre o que se tratava minha visita. Contrariando minha expectativa pessimista, um senhor bem idoso abriu a porta e me convidou para entrar em seu apartamento, em cuja sala já tinha um outro senhor quase igual ao primeiro sentado num sofá. Após o primeiro assentar-se, comecei as explicações sobre o porque de tudo e qual o objetivo de minha investigação. À indagação de ambos, contei tudo o que tinha descoberto sobre Maria Sartori e João Paternoster. Em perfeito silêncio, eles ouviram a tudo o que eu dizia enquanto pensava o quanto era inútil tudo aquilo, pois certamente não saberiam de nada. Todavia, sempre gostei de compartilhar minhas descobertas a quem quisesse escutar.
Ao fim do relato, aquele primeiro senhor falou que o edifício fora construído no lugar onde estava antes a casa que fora o Hotel Paternoster. Tratava-se de uma propriedade que eles tinham herdado de um de seus pais, que tinha herdado dos pais dele. Eles tinham dado o terreno para a incorporadora em troca de apartamentos no edifício. Acrescento que eram netos da Maria Paternoster, mas que ficaram impressionados com a história que eu acabara de contar, pois eles não sabiam nada a respeito dela.
Esse relato continha também a morte de Maria, com quarenta anos, por volta de 1905, bem como o desejo de João de ver a construção de uma grande catedral em homenagem a São Pelegrino em um terreno doado por ele, o que vi em documento fotográfico, o qual trazia ele, em meio a uma grande multidão, lançando a pedra fundamental da construção nos anos quarenta.
Escrevi este texto da memória. Os assuntos aqui contidos estão mais exatos e melhor detalhados nas cópias originais do jornal O Polenteiro no Arquivo Municipal de Caxias do Sul.
Wilson do Amaral