= Memória de um adicto= 7 e 8

=Esclarecimento=

Eu quero esclarecer aos meus amigos leitores, que também passei pelo crivo do alcoolismo, mas esta hitória não é da minha vida. Padeci muito com este mal. Depois de recuperar, comecei uma nova etapa, quis eu, ou talvez Deus, que eu continuasse na batalha, repassando de graça, aquilo que de graça recebi, isto é: atravez da mensagem ajudar aqueles que sofrem deste mesmo mal. Esta história é fruto da experiencia de mais de 25 anos de paralização. Se voce conhece alguem que tem este problema, por favor, faça que este livreto chegue até ele. Obrigado amigos.

CAPÍTULO 7

Formei-me médico. Comecei a trabalhar como residente num dos melhores hospitais de Berlim. O tempo correu... Fazia parte da equipe efetiva daquele grande hospital. Que mudança de vida! Eu consegui muito mais que merecia. Certo dia, fui convidado pelo diretor a participar de um congresso.

Estaria lá uma convidada especial, palestrante ilustre. Era uma doutora formada na Itália, especialista em doenças degenerativas. Fui meio insatisfeito, pois eu não estava a fim. Chegando, encontrei vários ex-colegas de faculdade.

Quando ela se apresentou, fiquei sem fôlego. O mundo caiu sobre a minha cabeça. Era ela! Ela mesma! Fora minha única paixão e namorada. Por sinal, eu a engravidara na adolescência. Estava ainda mais bela! Fiquei a ouvi-la, admirando a sua beleza e capacidade. Eu não acreditava que tudo aquilo estivesse acontecendo. Meu coração estava em chamas. Batia tão forte, que senti medo.

O que acontecia é que, agora, a vida realmente estava me pregando uma peça, e que bela peça! Ao terminar suas narrativas, suas experiências e teorias, ela foi aplaudida de pé. Eu a seguia com os olhos. Não sei bem o que eu queria, estava atordoado pela emoção. Ao sair grupos de jornalistas procuravam se aproximar dela para colher, pelo menos, algumas informações. Os seguranças impediam-nos de se aproximar. Corri atrás dela, queria vê-la de perto e conversar. Novamente, os seguranças obstaram-me o intento. Aos poucos, vi o meu sonho se perder na multidão.

Corri muito para alcançá-la, mas, quando cheguei à rua, tinha ela acabado de entrar no carro que arrancou imediatamente. Sentei-me na calçada. Um grande nó apertava-me a garganta. Era como se eu tivesse voltado ao passado não resolvido. Voltei para casa, sentido, derrotado. Será que a vida é tão cruel, que tira, pela segunda vez, a minha maior paixão? Tudo se passava em minha cabeça, desde um reencontro apaixonado, até a uma ferida desilusão. Tudo era possível.

Com certeza, ela se casou e é muito feliz, pensei. Sentia feliz de tê-la visto, e agoniado pelo tipo de vida ou com quem estaria vivendo. Cheguei a casa mal humorado, querendo um canto para coordenar minhas idéias. Minha amiga inseparável, conhecedora de todos os meus sentimentos, perguntou-me se queria conversar sobre o ocorrido. Não! Respondi-lhe rispidamente. Ela, sabiamente, sacudiu os ombros e saiu.

Passados alguns minutos, fui ao encontro dela, pedi-lhe desculpas e comecei a falar. Contei-lhe tudo que havia acontecido e o quanto o presente agitou-me o passado. Minha amiga, maravilhosa como sempre, mostrou-me que aquilo não era o fim, que poderia ser o começo de uma nova vida. Ponderei tudo, entendi que ela me cobriu de razões, porque minha amada ali, tão perto de mim e, verdadeiramente, o futuro se descortinava promissor à minha frente.

CAPITULO 8

Alguns dias após, eu ainda dormia, quando o telefone tocara insistentemente. Minha madrinha o atendeu e, correndo, chamou-me. Contou-me que o hospital ligara, solicitando minha presença com urgência. Havia acontecido um acidente aéreo. Muitas pessoas mortas, e outras tantas lotando os hospitais da cidade.

O avião, com cento e oitenta passageiros, proveniente da Suíça, caiu na cabeceira da pista. Fui correndo para o hospital. A cena lembrava uma guerra, com tantas pessoas pedindo ajuda. Meus colegas trabalhavam com rapidez, não sabiam nem a quem deveriam atender primeiro. Atroz luta sagaz contra a morte. Eu entrei em ação. Não havia tempo para sentir pena de ninguém.

Naquele dia, nem um café me foi possível tomar. O centro cirúrgico ficou repleto de acidentados.

Em um dado momento, ouvi alguém que me chamava desesperadamente: -Doutor! Doutor!... Fui ao encontro da ambulância que acabava de chegar. Dela desceram alguém na maca: um rapaz, ainda muito jovem, estava sem pulso; o coração estava muito fraco. Tinha ele uma perfuração nas costas e sangrava muito na cabeça. O caso era crítico. Mandei que o levassem rápido ao centro cirúrgico.

Meu coração entrou em desespero. Vi que aquele jovem, forte e bonito, estava morrendo. Não apresentava mais que vinte anos. Com certeza, cheio de sonhos. Minha decisão foi operá-lo, apesar de colegas não concordarem, achando que, no seu estado, seria perda de tempo.

Eu não quis aceitar isto, ele era tão jovem com direito à vida e não à morte. Eu o operei. Naquela noite, ele teve três paradas cardíacas, mas graças à sua juventude e à sua vontade de viver, ele sobreviveu, pelo menos, ao dia subseqüente.

Pernoitei a seu lado. Chorei de pena dele e o sentia, como se fosse o meu próprio filho que as minhas drogas solaparam de mim. Como seria ele? Será que é feliz? Meu Deus, quando passar isso, vou revirar o que ficou pendente no meu passado, e, talvez, isto, que está acontecendo, tenha sido uma mensagem de Deus. Olhei outra vez para ele. Examinei-o. Constatei que o seu estado continuava crítico, mas estável. Fiquei até às quatro da tarde ao seu lado. Meu superior me abraçou e falou-me que era hora de descansar, porque “saco vazio não pára em pé”. voltei à minha casa, fiz uma boa refeição e fui dormir. A imagem no entanto, daquele jovem invadia a tela das recordações minhas. Minha amiga sentou-se à beira da minha cama. Conversamos um pouquinho. Falei-lhe do estado do jovem. Logo que ela saiu, tomei um sedativo e apaguei. Dormi o resto do dia e a noite toda. Quando acordei, olhei o relógio e me assustei. Jamais na vida havia dormido tanto. Tomara um banho, escovara os dentes, bebera café com minha amiga e falamos sobre um pouquinho de cada coisa e do que passava no hospital.

Saí logo para o meu trabalho. Estava ansioso para rever aquele paciente. Ao chegar, alegrei-me por vê-lo com uma ligeira melhora. O diretor chamou-me à parte, parabenizou-me por meu trabalho e dedicação frente àquela tragédia. Considerou um milagre o que eu fizera para salvar a vida daquele jovem, e que o amor e a dedicação me nortearam as atitudes médicas.

Saí dali confiante, com a auto-estima em alta. Fui até o CTI dei uma olhada no garoto e fui ver outros pacientes, pois eu era o plantonista diurno. Estava atendendo a uma senhora idosa, quando uma enfermeira veio chamar-me. Disse-me que alguém da família do rapaz estava ali e queria conversar com o médico que o atendera. Dirigindo-me ao consultório, pedi-lhe que entrasse. Era uma senhora simpática, dizendo ser tia-avó do rapaz. Mostrava-se nervosa, bem aflita. Tentei acalmá-la e, aos poucos, aquietou-se. Informou-me que a mãe do garoto estava vindo para cá. Voltava para a Itália, quando ouviu notícias sobre o acidente. De lá, soube que o filho estava a bordo da aeronave acidentada. Muito angustiada, tomou o primeiro vôo de volta e deveria chegar a qualquer momento. Inteirou-se do estado do rapaz bem instável e delicado. Eu a levei até ele. Chorou muito ao vê-lo, ele estava muito inchado, com uma faixa envolvendo-lhe a cabeça. Depois saiu, ficou no saguão do hospital à espera de alguém.

Trabalhei o dia todo. Sempre que podia, visitava o garoto, pegava-lhe a mão. Tocava-lhe o rosto e murmurava baixinho: “força, campeão, você é um vencedor! Vamos, cara, reaja! Quero conversar o seguinte com você: -Eu tenho um filho que deve ter a sua idade. Em minhas férias, irei conhecê-lo, beijá-lo, abraçá-lo e dizer-lhe que, posto não o conheça, eu o amo.

Algo estranho: sentia tanto carinho por aquele garoto, que achei estivesse ficando louco: a cada minuto, eu me afeiçoava mais a ele. O dia passou rapidamente. Chegou a hora de regressar à casa. Fui ao quarto dele, prescrevi-lhe alguns medicamentos e saí. Soube que a mãe dele havia chegado, mas não a vi. Incrível entender o fato de o garoto não sair do meu pensamento. Naquela noite, não consegui dormir direito, desejando estar ao seu lado. O rapaz aguçara meu lado paternal.

No dia seguinte, cheguei cedo ao hospital; visitei meus pacientes; olhei a agenda do dia e fui ao CTI para examinar o meu paciente. Examinando-o, constatei-o estável. Eu atendi a outros do mesmo setor.

Pouco depois, a enfermeira chamou-me, afirmando que o meu jovem paciente passava por enorme agitação, como se fosse, uma convulsão. Não corri, voei ao CTI. Ele se contorcia, chamando o pai, num desespero que fazia pena. Peguei-lhe a mão entre as minhas, pus sua cabeça no meu peito como quem, mecanicamente, dissesse: “o papai está aqui! Não tenha medo, filho! Reaja! Volte, filho, precisamos de você!” Osculei seu rosto, e devagar, sem medicamentos, ele se acalmou, até que, tranqüilamente, adormeceu.

Eu não havia percebido a presença de uma médica junto ao nosso diretor. Eles observavam emocionados aquele quadro. Ela, antes que eu me virasse, falou-me: disse “obrigada, doutor, pelo carinho e devotamento médicos a meu filho! Grata sou-lhe por ter salvo a vida dele! Deus o abençoe sempre!” Quando virei para respondê-la, levamos mutuamente um grande choque, dizendo-nos ao mesmo tempo: “Você!” Tamanho o susto pelo qual fomos tomados! Eu me refiz aos poucos; ela, no entanto, tornou-se lívida de alto a baixo, como se fosse moldada na forma das ceras mortuárias. Quedamo-nos mudos. Entre nós, havia um espaço aproximado de

dezessete a vinte anos que nos apartamos. O diretor, sem entender nada, ficou mudo à espera de uma explicação.

Aos poucos, as coisas foram tomando forma. Caminhei na direção dela, estendi-lhe a minha mão e disse: “tudo bem com você?” Minha vontade era de abraçar e beijar aquela que ainda era minha doce paixão.

O diretor nos cobrou uma satisfação, queria saber se já nos conhecíamos. De pronto, difícil uma resposta adequada.

Ela tomou a iniciativa. Disse que sim e que, na verdade, eu era o pai de seu filho. Eu não me contive: senti-me mal e tive que ser amparado, para que não tombasse inerte. Aos poucos, fui recobrando as forças.

Eu estava cuidando de meu próprio filho. Fomos levados para o escritório administrativo, e lá contamos a nossa história para o diretor que, igualmente, se associou a nós dois, tomado de lágrimas. Ele saiu dali para que pudéssemos conversar à vontade. Falamos um longo tempo... Contei a ela tudo que me havia acontecido. Ao fundo do poço, chegara eu, quando fui preso. Falei também da senhora que se fez a minha protetora e madrinha, e que, até hoje eu era membro atuante dos “Alcoólicos Anônimos”.

Ela, por sua vez, também me contou toda sua trajetória: fora internada para livrar-se da adicção e que, também, fazia parte de “Narcóticos Anônimos”; encontrara a felicidade, de viver limpa ou sóbria e que conseguira muito mais que almejava. Indaguei-lhe o porquê de nosso filho estar naquele avião e ela me disse que ele estudava na Suíça, e viera a Berlim atrás de seu sonho, mas que este, só a ele cabia desvendá-lo.

Saímos dali e fomos ao quarto de nosso filho. Meu coração batia na garganta. Só eu sei o tamanho da minha emoção. Eu a deixei lá e fui cumprir com meu trabalho diário. Os dias se passaram... Continuávamos juntos. Íamos às reuniões de “AA e NA;” ao cinema, teatro e ópera, ou a qualquer lugar. Só queríamos estar juntos.

Era como que revivêssemos a nossa adolescência. Vieram os carinhos, os beijos e, também, a chama ardente daquele amor juvenil e puro, que fora cortado, abruptamente, pela força do vício.

É manhã.

A vida nos convida,

Naquele instante,

Às carícias derradeiras.

Você se vai

Eu vazio

Criança assustada.

Esvai a coragem.

Agonia funesta.

Busco lenitivo pra vida,

Como um bêbado

Em fim de festa.

Dia infindo

Palavras balbuciadas

Perdem-se.

Da vida quimera.

Desentoa a existência

Entre o tudo e o nada,

O talvez.

A brisa tardia

O grande lençol negro desata.

É noite.

Do reencontro

Novas fantasias.

São sonhos derradeiros

De um amor alucinado.

Juntos

Palavras, sentimentos,

Gestos e desejos

Se fundem

Vida amiga

De eterna

Cumplicidade.

Dia vinte e quatro de maio, chegando ao hospital, pude ver meu filho com os olhos abertos, curioso com tudo que lhe acontecia. Sua mãe era só felicidade. Contou-lhe que eu salvara vida dele, e quem salva uma vida é responsável por ela, como o pai cuida dos filhos.

Ele me olhou carinhosamente, agradeceu-me por salvá-lo. Disse que estava muito feliz, mas, pai, ele tinha só um, e, com certeza, ainda o encontraria. Considerar-me-ia como seu herói, mas pai, só o biológico, aquele, sim, era o seu sonho de infância reencontrá-lo.

Meus olhos choravam, mas meu coração pulava e sorria de alegria. A mãe o abraçou e, entre lágrimas, disse que eu, o seu médico, era, realmente, seu pai biológico. Por razões que só o “Grande Mestre” poderia responder, Ele promovera, de forma surpreendente e milagrosa, aquele íntimo colóquio entre pais e filho. Foi lindo assistir ao renascimento do meu filho e maravilhoso dizer-lhe com orgulho de homem de bem: SEU PAI ESTÁ AQUI!

Num instante, nossos corpos se uniram em abraços cálidos, num êxtase de altíssima emoção que a tudo extrapola a razão da humana gente. Era a concretização de um sonho, há tempos desejado. Médicos, enfermeiras e pacientes entoaram conosco cantos e aplausos, quando pai, mãe e filho, pródigos entre si, agora atados pelos laços familiares, ali, e, para sempre, bebíamos, na taça da felicidade, enleados pelo amor, o néctar e eterno do mesmo amor.

=========FIM=========

Comentário

Pois bem, meu amigo(a), eu gostaria de exterminar, de vez, com esta prisão sem grades; Com labirintos sem muros, com “as drogas” que trituram e exterminam todos os nossos sonhos, mas sei que é impossível. São labirintos e prisões particulares e singulares, que nós mesmos criamos. Provavelmente, estarão sujeitos a se encrencarem os que, ainda que cheios de boas intenções, tentarem invadi-los. Os guardiões fiéis destes sinistros lugares são: o orgulho, a vaidade, a prepotência, a timidez, a arrogância e mais uma série de defeitos de caráter que se tornam peculiares aos adictos. Os únicos antídotos contra todos estes males são: a fé e a humildade. São muitas as armadilhas que nos atraem. Não começamos como dependentes. Muitas vezes, somos aliciados (involuntariamente), desde crianças. Quando assistimos aos nossos pais fazendo uso e apologia às bebidas alcoólicas. Ao vê-los, com seus amigos, bebendo, jogando, rindo ou cantando, achamos tudo isso o máximo. Daí pensarmos: quando eu crescer, farei como eles. O que as pessoas ignoram é que o alcoolismo é uma doença de difícil diagnóstico e quase todos a escondem. A única e objetiva maneira, de evitá-la é não beber. Nós, alcoólatras, começamos em casa, nas festinhas, fins de semanas, ou em ocasiões especiais, nas passagens de ano, festas familiares, carnaval. Quantos bons rapazes de famílias abastadas ou de modestas, estudantes das melhores escolas se diluíram pela vida, perdendo-a ou ficando mutilados por acidentes automobilísticos; matando pessoas, por causa de bebedeiras e brigas, separação de famílias e tantos outros males. A palavra “álcool” significa “coisa sutil,” e, realmente, faz jus ao nome. Dificilmente aceitamos nossa falta de condição para dirigir, porque perdemos o senso de responsabilidade. Nunca aceitamos o fato de que bebemos em demasia. Muitos não terão problemas com bebida. Meus avós, por exemplo, tomaram vinho e cerveja em pequenas quantidades, ao longo de suas existências e nunca se embriagaram. O que nos difere dos outros bebedores é o descontrole emocional; bebemos uma dose e despertamos um monstro insaciável. Aí, pensamos que somos melhores motoristas; procuramos ser o foco das atenções; contadores de piadas; fazemos-nos o centro das atenções. Desinibidos e desbocados, capacitamo-nos até para falar em público. Esta ilusão vai aumentando gradativamente. À medida que o tempo corre, de bebida precisamos de mais e mais, até que percebemos ou não que passamos do limite. Não é apenas o álcool, mas as drogas em geral. A busca por momentos de prazer, às vezes, nos leva as conseqüências das mais indesejáveis. Alcoólatra é como marido traído: é sempre o último a saber. Se você tem este problema, não se acanhe! Procure ajuda nas religiões, medicina, nas salas “Alcoólicos Anônimos” ou dos “Narcóticos Anônimos.” Para nós, o melhor seria que procurassem ajuda em todos estes lugares. Alcoolismo é uma doença, física, mental, emocional e espiritual. É irreversível e, se não for cuidada, conduz o usuário a fins fatais. Qualquer alcoólico pode evitar o primeiro gole, mas, depois do primeiro, advirão as conseqüências, mais adversas, solapando-lhes a vida e preparando-lhes, mais cedo, um “aqui jaz...” Pense nisso!

Tonho Tavares

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 08/12/2010
Código do texto: T2659981