Guardiã de ossos

I

O sol já se virava para o poente. Iolanda, encabulada, debruçada na janela observava a tudo e vagava-se entre as lembranças. A infância trouxera-lhe poucos prazeres. O pai, adoentado, arrastava-se ao trabalho na ânsia de proporcionar aos filhos vida melhor. A mãe, contrariamente, esquizofrênica, em épocas de crises mal sabia quem era. Iolanda com apenas dezesseis anos abraçara toda a administração da casa. Arrumara emprego numa mercearia distante de sua casa, mas, determinada, cumprira fielmente os horários e as tarefas outorgadas. Afastou-se dos amores, inibiu a libido, tratando-a como inoportuna e desnecessária. Em noites de frio intenso, quanta vez se deparou tocando-se, freneticamente. Apavorada, levantava-se, corria para o banho quente, dava uma sacudidela; preenchia-se com outros afazeres, ludibriando de vez a libido – autoflagelação.

Os pais de Iolanda se foram. Os irmãos rumaram-se em busca de seus anseios. Iolanda envelheceu. E a vida, por fim, parecia-lhe um vazio infinito, principalmente nos intensos dias de inverno. Resgatar o tempo perdido tornou-se bastante difícil: sozinha, 54 anos, entregue aos sombrios pensamentos. Dentre estes vinha frequentemente à sua memória: Haroldo. Amou-o loucamente em profundo silêncio. Entregara-se de corpo e alma a ele pouquíssimas vezes, atordoada sempre pelo sentimento de culpa, promovendo, com isso, o seu afastamento. E nunca mais o viu, sequer soube para onde ele se fora. Se o encontrasse, devaneava: - “daria uma volta em tudo, recuperaria a estupidez de outrora, e lançaria – convicta – de olhos fechados em seus braços.”

Iolanda, animada, fez uma varrição na monotonia e resolveu procurar Haroldo. Ninguém está fadado à solidão para sempre; tinha saúde e não se sentia tão velha ao ponto de aquietar-se. Mesmo que esta procura lhe trouxesse desprazeres. Queria a todo custo vê-lo, pelo menos. Naquela noite, deitou-se, persuadida de sua pretensão.

II

No outro dia, pela manhã bem cedo, viajou ao lugarejo onde nasceu. Indagaria dos moradores mais antigos sobre o paradeiro de Haroldo. Visitaria asilos, hospitais e até presídios, se necessário. Chegou e dirigiu-se à casa de uma antiga moradora, amiga inseparável de sua mãe.

- Olá Iolanda! Como você sumiu para aquelas bandas. Esqueceu-se de nós. – ponderou dona Amélia, metida num vestido escuro amassado, cheirando a suor, desfalecendo-se a olhos nus.

- A vida, dona Amélia, nos impulsiona a rumos os quais preferíamos evitar. Lá, a vida corre como um trem metropolitano; apenas vai – justificou Iolanda com certo pesar, olhando-a fixamente nos olhos. Naquele instante, Iolanda lembrou dona Amélia tão altiva, vívida, presente em todos os eventos locais. Primeira a chegar e a última a sair. O tempo, contudo, como faz com todos, não a poupara. Estava ali uma mulher sustentada pelos efeitos das drogas, quase sem perspectivas, imune aos sonhos, os quais lhe foram tão amigos. – Acho que os larguei mesmo, dona Amélia. Resgatarei isso de alguma forma. Afinal, minha solidão é o meu maior monstro; não a suporto mais. – ponderou Iolanda, convencida.

- Mas filha, você devia ter voltado para pedir-nos ajuda, quando as forças físicas ainda nos permitiam. – falou dona Amélia, apalpando o corpo de Iolanda, num gesto maternal.

- Não foi possível, dona Amélia! – expôs Iolanda após longo período de silêncio.

- Ajudei a pessoas desta localidade e de outras, você mesma presenciou. Aproveitei também todos os bons momentos da vida. Nunca me dei ao luxo de negar uma ajudinha qualquer. – dona Amélia explanava como se lembrasse de cada um a quem ajudou.

- Eu sinto muito, dona Amélia. Realmente me dei demais e quase morri, isolada, remoendo lembranças. – Iolanda tinha lágrimas nos olhos.

- Não choremos o leite derramado. Afinal, estamos ainda vivas e podemos consertar alguma coisa, não é? – dona Amélia encorajou-a com aquele ar de firmeza nos propósitos.

- Sim, dona Amélia. Mas necessito que a senhora ajude-me noutra tarefa. Preciso encontrar Haroldo. Sempre o amei e preciso pelo menos vê-lo, pelo menos. – Iolanda enxugava as lágrimas com o dorso da mão, enquanto com a voz embargada, falava.

Dona Amélia suspirou, firmou-se na mão de Iolanda, levantou, caminhou a passos lentos até a porta, virou-se e disse-lhe:

- Há de encontrar dele somente os ossos, minha filha! Num maldito inverno que apareceu por aqui ele não suportou a pneumonia. Voou como um pássaro com a asa ferida. Nenhuma droga o reergueu... – do leito para a cova.

Iolanda sentiu o sangue pulsar pelos poros do rosto. Chegara ao fim sua réstia de esperança. Perdera muito tempo de sua vida. O que importava agora retornar à cidade onde viveu mais da metade de sua vida ou permanecer por ali até seu último suspiro – nada, estava tudo perdido. Amar a quem e a quê? Queria muito Haroldo, ainda que tivesse que digladiar com as feras que porventura lhe barrassem o acesso a ele.

- Eu estava decidida em reencontrá-lo, dona Amélia. Queria-o como tudo na minha vida; complementar-me-ia. Levei meses, anos, analisando se o queria. E meu coração ao final concluiu: queria-o a todo custo. – Iolanda falava em tom desolador, como alguém que vê o sonho descendo na correnteza de um rio.

- Não fique assim filha! Tudo terá jeito, creia. – Tentou, sem êxito, dona Amélia.

Iolanda despediu-se e foi para a casa onde a mãe morara até a morte. Intacta. Cheirava a mofo. Abriu todas as janelas, portas, limpou zelosamente os cômodos. Ficaria por ali. Seria sua masmorra até o último suspiro. Não deixara nada na cidade que a fizesse retornar. Venderia o imóvel, alugaria ou outro que evitasse o seu retorno àquela cidade. Sofrera muito por aquelas bandas; solidão. Continuaria enfrentando-a, inevitavelmente, mas pelo menos conhecia a maioria das pessoas daquele lugarejo. Sentiu-se parcialmente aliviada com aquele pensamento. Parte ainda estava ressentida no propósito de rebuscar Haroldo.

III

Estabeleceu residência definitiva naquela casa que outrora a acolhera. Cuidaria dos animais domésticos, alguma planta, percorreria com certa frequência o quintal que seu pai, embora carente de vigor, o mantinha plantado. Teria cômodos suficientes para se acomodar e aos seus pertences. Avivar-se-ia naquele espaço sombrio. Contudo, incomparavelmente melhor que a cidade de onde vinha; solidão, agonia...

A vizinhança, hospitaleira, colocou-se à disposição para auxiliá-la no que fosse necessário. Embora fosse uma conterrânea que se esquecera por um tempo da terra natal, mas que voltara – aparentemente vigorosa – para o seio quase familiar; reerguendo-se. Com toda a acolhida, sentia ainda muitas saudades e estas a impulsionavam a uma solidão incontida. Seria prudente, portanto, afastar tudo que a incomodasse. Haroldo, sua maior busca, devia ser substituído por outro prazer.

Os meses foram se passando e Iolanda a qualquer custo afastando os seus fantasmas. Relacionava-se bem com a vizinhança, saia às vezes; não lhe faltava lugares para visitar, até os mais recônditos. Estava mesmo adaptada à nova vida. Sentia-se feliz.

IV

Monitorada pela vizinhança, Iolanda – viçosa, apesar de a idade avançar a olhos nus –, esbaldava-se nas andanças. Às quartas e sextas-feiras, banha-se e ao anoitecer saia. No outro dia, era vista cuidando dos afazeres, mas evitava comentar por onde estivera na noite anterior. Embora causasse estranheza tudo aquilo, nenhum vizinho ousava interrogá-la.

Numa quinta-feira, chuvosa, Iolanda não apareceu aos vizinhos. Portas e janelas da casa mantiveram-se fechadas durante todo o dia. Na sexta-feira à tarde, um grupo de vizinhos, preocupado, bateu na porta da casa de Iolanda; não obteve êxito.

No sábado pela manhã, o grupo acionou o chefe de polícia local e relatou-lhe toda a rotina de Iolanda. Embora misteriosa, Iolanda, era vista todos os dias zanzando pelo quintal ou assentada na varanda.

O chefe de polícia – experiente e com faro canino –, auxiliado por dois policiais, aproximou-se da porta de entrada da casa de Iolanda e percebeu que por detrás daquela quietude havia algo muito estranho; o pior talvez...

- Vamos arrombar! – Determinou aos policiais.

Com apenas um pontapé o policial escancarou a porta. O chefe de polícia com aparência cansada, entrou. Abriu as portas, olhou. No quarto próximo à sala estava Iolanda assentada, inerte, olhos entreabertos, agarrada a um fêmur sobre o colo, catalogado: Haroldo. Logo à sua frente, uma estante com vários fêmures organizados e catalogados.

Antes que os policiais vissem, o chefe de polícia ordenou-lhes:

- Chamem duas viaturas: uma para trasladar o corpo ao IML e a outra para devolver ao cemitério todos esses ossos – apontando para a estante.

E prosseguiu:

- Estou cansado demais e preciso o quanto antes providenciar minha aposentadoria. Já assisti a muita coisa durante todos esses anos de labor, mas isso a que estamos presenciando é suficiente até mesmo para eu acrescer ao provérbio: “ a carne é fraca...” – E os ossos também.