FERNANDO PESSOA E O EFEITO BORBOLETA
" Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez da direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio do sono elaboro –
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente outro também.”
Fernando Pessoa ― Poesias de Álvaro de Campos
Quando eu tinha dezesseis anos apaixonei-me por uma colega de trabalho. Éramos ambos operários numa fábrica de máquinas de costura. Eu trabalhava na linha de produção, operando uma máquina de fazer roscas para parafusos, ela na linha de montagem, pregando etiquetas nas máquinas montadas.
Era a menina mais bonita da fábrica. Pelo menos eu achava que era. Tinha um rosto redondo e pálido como uma lua cheia. Pernas grossas e roliças como colunas de um templo coríntio. Narizinho arrebitado, cútis branquinhas, lábios grossos, feitos especialmente para um longo e suculento beijo.
Parecia uma boneca de porcelana. Nos anos sessenta meninas com essa aparência tinham muito Ibope. Lembravam princesas dos contos de fadas ou musas dos saudosos tempos das serestas.
Acho que essa minha primeira paixão durou cerca de um ano. Foi muito legal se sentir assim. Sentia no peito uma ansiedade incontrolável para que logo chegasse o dia seguinte e eu pudesse vê-la. Isso me fazia amar a fábrica e o trabalho como se fosse o único lugar que eu queria estar e a única coisa que eu gostaria de fazer na vida. Ah! que magnífica âncora é o amor, que transforma um barracão sujo, quente e barulhento num castelo encantado, e uma atividade maçante, repetitiva e embrutecedora, numa lúdica e prazerosa aventura!
Só havia um problema nisso tudo. Eu era exageradamente tímido. Sofria de uma timidez doentia que me fazia mudar de calçada para não passar em frente a um grupo de garotas. Morria de vergonha quando elas olhavam para mim e ficavam cochichando. Sempre me parecia que elas estavam debochando do meu jeito de andar ou das roupas que eu usava.
Por isso nunca falei com ela, nunca lhe confessei a minha louca paixão. Não tive coragem. Ela parecia tão inacessível, tão distante, tão bonita em contraste com o patinho feio que eu era, que jamais consegui romper o limite do “oi” diário que eu lhe dava e que ela sempre respondia com outro “oi”, que hoje eu sei, naquela linguagem não verbal que comunica muito mais que as palavras, era matreiro, convidativo e tão cheio de significados, mas que eu, nos meus dezesseis anos de inexperiência e imaturidade nunca soube interpretar.
Passei noites e noites planejando, sonhando, me torturando, buscando o meio de dizer para ela o que eu sentia. Mas, sem coragem para dar a cara para o tapa ― que na época tinha certeza que ia levar ―, imaginei um estratagema: escrever para ela um poema, dizendo o quanto a amava e pedir para o João, um amigo que trabalhava com ela no mesmo setor, entregar.
Dito e feito, o poema saiu mais ou menos assim.
“De que sonho você veio,
E esse sorriso, de onde trouxe?
Era você que se agitava
No mais profundo dos meus desejos?
Era você que eu pressentia,
Presença informe numa ausência,
Sempre real, nunca atingível?
Ah! Eu a sonhei em uma lenda
Onde tudo acontecia.
Eu fui cipreste na colina
Você singela flor silvestre.
A minha sombra a envolvia
O seu perfume me embriagava.
Você cresceu ante meus olhos
Como o pé de feijão da lenda.
Por um momento eu vislumbrei
Um convite nos seus olhos.
Mas tive medo do condor
E não ousei voar tão alto.
Agora estou aqui na terra
Aguardando o seu chamado.
Se você me convidar,
Eu então serei ousado,
Esteja você onde estiver
Estarei sempre do seu lado.”
Joãozinho
Joãozinho era o nome pelo qual todos me conheciam.
O poema não era lá essas coisas, mas eu tinha certeza que ela ia gostar. Afinal de contas, ela aparentava ter aquele jeitinho de menina que se derretia com alguns versos lidos ao pé do ouvido.
Pelo menos era o que me parecia. Ela me lembrava a Roxane, a musa do filósofo alquimista Cirano de Bergerac. E a nossa história não era muito diferente. Cirano não achava coragem para declarar seu amor por Roxane porque pensava ter nariz de mais. Eu não me declarava para a minha musa porque talvez temesse ter nariz de menos. Quem lê entenda. Eu tinha medo de ser insuficiente e quando chegasse a hora não conseguir dar conta do recado. Coisas de adolescente.
Bom, como já disse, eu tinha um amigo que também se chamava João. Ele trabalhava na linha de montagem, bem próximo dela. Nunca confessei para ele a paixão desesperada que eu sentia pela sua colega de trabalho. Na verdade, eu tinha vergonha de comentar sobre o assunto e talvez ele também sequer desconfiasse disso. Não sei bem o que era, mas o fato é que nunca me veio à baila falar disso com ele até o dia em que eu tomei coragem e lhe passei o poema para que ele o entregasse a ela.
Ele achou graça, riu, debochou de mim, mas sem ofender. Por fim, concordou gentilmente em entregar o poema para a menina. Fiquei aguardando ansiosamente para ver no que dava. Os dias se passaram e o jeito dela não mudou. Era o mesmo “oi” de sempre, mas pareceu-me que agora havia uma conotação diferente nele. Acho que ficou mais frio, mais distante, mais formal. Era um “oi” de pura educação, de mera cortesia. Não transmitia mais aquela impressão de convite, de faceirice, algo assim que me dizia, “ hei cara, quando é que você vai sair de cima desse muro?”, convite que eu, na minha exagerada timidez, não conseguia encarar.
Mas logo descobri o motivo do “oi” dela ter mudado. A danadinha tinha arrumado um namorado. Eu a vi chegar de mãos dadas com um cara. E o cara era justamente o meu amigo João.
Dois anos depois eles se casaram e eu fui no casamento deles. Afinal, o João era meu amigo. Ressignifiquei o fato. Reconheci que ele foi mais competente que eu e pronto. É claro que fiquei magoado um tempinho, afinal eu sou humano, mas depois relevei. Mágoas são fardos pesados demais para a gente carregar pela vida inteira.
O tempo passou, eles sumiram do meu mundo e eu do deles. Alguns anos depois eu também casei e a vida seguiu seu curso. O episódio foi arquivado numa das gavetas mais fundas da minha memória e eu já nem me lembrava de um dia ter vivido uma experiência dessas.
Algumas décadas mais tarde nós nos encontramos num sarau de poetas da cidade. Reconhecia-a logo pelo narizinho arrebitado e pelas pernas roliças. Eram inesquecíveis e inconfundíveis. O rosto também mudara muito pouco. Conservava ainda aquela aparência louçã que tanto me enlevara nos meus anos de adolescência. Nos olhos matreiros ainda uma linguagem não verbal muito pronunciada, mas agora bem reservada.
Não me enganei quando imaginei que ela gostasse de poesia. Só não pensei que também fosse do ramo. Foi uma agradável surpresa para mim. Ela agora era uma bonita e elegante senhora, simpática e culta, com belas e interessantes histórias para contar.
Não nos víamos há mais de trinta anos. Ela também me reconheceu. Lembramos os velhos tempos de operário. Falamos dos amigos daquela época, recuperamos a memória de alguns, rimos, recordamos.
Depois de um tempo perguntei pelo meu amigo João.
―Você não sabia? Respondeu ela ― Nós nos separamos já faz uns dez anos.
―Ah é? E o que foi feito dele?
―Anda por ai. Casou de novo. Está gordo como um capado. Você não o reconheceria.
―Você está muito bem― eu disse. E não estava sendo apenas gentil. Ela estava mesmo.
―Eu me cuido ― ela respondeu.
―Estou vendo ― respondi.
Rimos. Conversamos banalidades. Declamamos poesias, ela as dela, eu as minhas.
Lá pelas tantas eu puxei da minha pasta uns velhos versos e comecei a declamá-los.
“De que sonho você veio,
E esse sorriso de onde trouxe?”
(...)
― Hei, acho que eu conheço esses versos. Onde é que você os leu?― ela perguntou.
― Por acaso fui eu que os escrevi quando tinha uns dezesseis ou dezessete anos ―, respondi.
― Não acredito, então o Joãozinho era você?
― Era ― respondi, meio constrangido.
― Bem que eu desconfiava. O João nunca foi de escrever nada.
― Eu sei, mas vocês estavam tão apaixonados que eu não tive coragem de confessar.
― Meu Deus, podia ter sido tudo tão diferente ― disse ela.
***
“Uma borboleta batendo asas na Amazônia pode causar um tufão no Texas.”
Teoria do Caos - James Gluck
O efeito borboleta é uma ideia curiosa e o cara que teve essa intuição deve ter deixado muitos filósofos em dificuldades. A questão é a seguinte: Se você pudesse voltar no tempo e mudar as decisões que tomou, o que teria acontecido com o universo em que você vive? Com quantas pessoas você não mexeria, quanto desarranjo não provocaria com essa simples decisão pessoal?
Já pensou nisso? Todo o desenho do universo teria que ser mudado por causa de uma mera decisão sua.
Se uma única pessoa no mundo pudesse fazer isso, em que a sua vida e a minha seriam afetadas? E com a vida do resto da humanidade, o que aconteceria? Não é uma coisa maluca um negócio desses?
Naquela noite fui para casa pensando no que teria acontecido no universo se o Fernando Pessoa se voltasse para a direita ao invés de para a esquerda. Se tivesse dito sim em vez de não. Talvez eu nem tivesse nascido por conta disso. Pensei como estaríamos hoje se o coronel Joaquim Silvério dos Reis não fosse o “traira” que era e não tivesse denunciado os seus companheiros da Inconfidência Mineira. Se a Alemanha tivesse ganho a guerra e ao invés dos Estados Unidos fosse o Japão que tivesse produzido primeiro a bomba atômica. Pensei em como seria se eu não fosse reprovado naquela prova do Senai e tivesse me tornado torneiro-mecânico, como pretendia naquele tempo; Se o Jânio Quadros não tivesse renunciado ao cargo de presidente e o Getúlio Vargas não tivesse se suicidado; Se o Pelé, ao invés de ir para o Santos, tivesse ido parar no Corinthians; Se o escravo-gladiador Espártaco tivesse vencido a sua guerra contra os romanos; Se Napoleão não tivesse perdido a batalha de Waterloo. Se o Silvio Santos fosse o meu pai....
Ah! Essa inconcebível sabedoria do universo, que não nos permite calcular em que lugar do tempo e do espaço a incompreensível partícula de energia que somos poderá estar no momento seguinte! Nem qual será a nossa próxima interação e o que dela resultará.
Nem Karma nem Mak Tub, mas apenas a imprevisível e inescapável consequência das nossas escolhas!
O que teria acontecido se eu tivesse me declarado pessoalmente para aquela menina e ela tivesse me aceitado? Hoje, os filhos dela seriam os meus e os meus seriam de outro cara qualquer. Senti um arrepio na espinha.
Eu então seria algo diferente do que sou e você também seria algo diferente do que é só por causa disso. Isso é o que diz o efeito borboleta. Isso foi o que Fernando Pessoa intuiu naquela noite de angústia e desconsolo em que ele escreveu os versos desesperados que me inspiraram este texto.
“Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.”
Eu também relembro. Pensei que um drinque me cairia bem naquela hora, mas logo desisti. Eu poderia modificar a conformação estrutural do universo com esse ato. Se eu beber o futuro será de um jeito; se eu não beber ele ocorrerá de outro. Tenho que escolher. O meu desejo, satisfeito ou insatisfeito, poderia causar uma catástrofe em um lugar qualquer. Tive outro arrepio na espinha pensando na responsabilidade que estava sendo jogada nas minhas costas.
Sim. Se eu pudesse voltar ao passado e mudar uma única vírgula na história da minha vida, ou se você pudesse fazer isso, ou outra pessoa qualquer pudesse, tudo seria diferente para mim, para você e para o resto do mundo.
Einsten achava que viagens no tempo são possíveis porque o espaço é curvo e deve haver algum ponto no infinito em que ele se encontra consigo mesmo. O cosmo é como uma cobra mordendo o próprio rabo. Por isso os filósofos gnósticos e os alquimistas usavam o símbolo de uma serpente que morde o próprio rabo para representar o ciclo da energia universal que nunca se esgota porque se alimenta de si mesma.
Hawking também disse acreditar nessa possibilidade, mas sob certas condições. Ele diz que se pudéssemos voltar ao passado, nós não poderíamos interferir na História, por que ela é feita de atos que se despregam dos seus executores tão logo eles são realizados. Os personagens passam, a história fica. São algo assim como os quadros de um pintor, as estátuas de um escultor, os textos de um escritor. Pessoas e coisas são energia ― matéria sutil― que se condensam em formas sólidas. Isso quer dizer que as nossas ações são energia que são consumidas. Umas sobrevivem e passam para o momento seguinte como resultados. Outras não. Perdem-se no limbo do esquecimento.
É confortador saber que os nossos atos despregam-se de nós tão logo são produzidos. Seria extremamente difícil ter que carregar cada ato para o momento seguinte. Chegaria o dia em que o peso ficaria tão grande que não conseguiríamos dar um único passo adiante. Nossos atos são como os nossos filhos. Setas lançadas de um arco em direção a um alvo. Nem sempre os atingem, mas jamais voltam ao arco para serem lançadas novamente. Resta-nos apenas administrar as suas consequências. As pessoas desaparecem no limbo; suas ações repercutem no tempo, denunciando sua sensatez ou insensatez. Então nos vem a constatação: nós não temos importância alguma, os nossos atos sim.
O que está feito está feito, não pode ser mudado. Ainda bem que é assim, pois senão o universo continuaria sendo um eterno caos, e se bem me lembro, alguém me disse que Deus deu uma mente ao homem para que ele botasse ordem no caos.
Ordo ab Chaos. Foi por isso que Ele, o Grande Arquiteto do Universo, mandou Adão dar nome aos animais. O nome que Adão colocou em cada bicho, esse é o seu nome, diz a Bíblia. Cão, gato, macaco, cobra, elefante, urubu. Se não fosse Adão ter rotulado cada um deles, todos seriam a mesma coisa, embora com forma diferentes; vidas sem identidade a perambular por um mundo sem ordem nem finalidade.
Ele fez isso para que nada fosse aleatório, nada ficasse por conta do acaso. Por isso essa nossa mania de por rótulos em tudo. Inventamos o princípio da identidade para ter a ilusão de que vivemos num mundo coerente. Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Dessa forma separamos, identificamos, catalogamos. Damos um nome para todas as coisas e chamamos isso de lógica. Lógica é ciência, é razão, é sabedoria.
E se fosse possível, eu poderia voltar ao passado e matar o meu pai, porque inconscientemente eu o odeio e tenho ciúme dele pelo fato de ele estar dormindo com a minha mãe. É o que Freud dizia. E isso também é ciência, embora não seja nada racional.
Fiquei com pena do Fernando Pessoa. Não fez as escolhas certas na vida e por isso se sentia tão infeliz.
“ O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para o outro mundo o que esqueci de sonhar?”
Amargas conjecturas. Mas o que são escolhas certas e quem é que sempre as faz?
Mais um pouco e também começaria a sentir pena de mim mesmo. Pensei em todas as bobagens que fiz, nas perdas que contabilizei, no que deixei de ganhar, nas lutas que não lutei. Sonhos que sonhei e decidi que eram apenas sonhos. Por isso deixei que se diluíssem num oceano de quimeras, que é para onde vão todas essas águas da imaginação que não ousamos navegar na realidade.
“ Estes sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
“Enterro-os no meu coração para sempre para todo o tempo, para todos os universos.”
Pobre Fernando. Quanto a mim, confesso que sou menos sentimental. Odeio pensar que eu durmo com cadáveres. Por isso logo resolvi deixá-lo de lado e sai em busca de outro poeta, o Omar Kayan, que escreveu algo mais ou menos assim:
" O dedo que se move escreve; e tendo escrito, continua. Nem todo o seu entendimento, nem todo o seu arrependimento, pode fazer com que ele volte para apagar uma só linha do que já foi escrito."
O passado jamais voltará e o futuro é uma incógnita. Afinal, é muito bom que na composição estrutural do universo exista um princípio da incerteza. Nunca saberemos o que o momento seguinte nos reserva. Por outro lado, só poderemos voltar ao passado se um dia conseguirmos nos deslocar mais rápido do que a luz. Como essa é uma possibilidade matematicamente improvável, posso dormir tranquilo.
E não preciso temer o pesadelo de Nietzsche. O eterno retorno também é uma possibilidade inexequível porque as condições ambientais serão sempre diferentes em cada momento no tempo. Assim, quando a borboleta bater as asas de novo na floresta amazônica, as coisas no universo todo serão diferentes também e os mesmos efeitos que ela provocou com o rufar anterior não se repetirão. Essa ideia me conforta. O princípio da incerteza foi a melhor descoberta que os cientistas do átomo até hoje já fizeram. Nunca saberemos o que o futuro nos reserva porque jamais poderemos calcular em que lugar do tempo e do espaço estaremos no momento seguinte. Nós nos movemos junto com o universo e ele é como uma bola que uma criança chuta a esmo. Somos o que fazemos em cada momento. Por isso somos diferentes. O resto é só filosofia.
" Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez da direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio do sono elaboro –
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente outro também.”
Fernando Pessoa ― Poesias de Álvaro de Campos
Quando eu tinha dezesseis anos apaixonei-me por uma colega de trabalho. Éramos ambos operários numa fábrica de máquinas de costura. Eu trabalhava na linha de produção, operando uma máquina de fazer roscas para parafusos, ela na linha de montagem, pregando etiquetas nas máquinas montadas.
Era a menina mais bonita da fábrica. Pelo menos eu achava que era. Tinha um rosto redondo e pálido como uma lua cheia. Pernas grossas e roliças como colunas de um templo coríntio. Narizinho arrebitado, cútis branquinhas, lábios grossos, feitos especialmente para um longo e suculento beijo.
Parecia uma boneca de porcelana. Nos anos sessenta meninas com essa aparência tinham muito Ibope. Lembravam princesas dos contos de fadas ou musas dos saudosos tempos das serestas.
Acho que essa minha primeira paixão durou cerca de um ano. Foi muito legal se sentir assim. Sentia no peito uma ansiedade incontrolável para que logo chegasse o dia seguinte e eu pudesse vê-la. Isso me fazia amar a fábrica e o trabalho como se fosse o único lugar que eu queria estar e a única coisa que eu gostaria de fazer na vida. Ah! que magnífica âncora é o amor, que transforma um barracão sujo, quente e barulhento num castelo encantado, e uma atividade maçante, repetitiva e embrutecedora, numa lúdica e prazerosa aventura!
Só havia um problema nisso tudo. Eu era exageradamente tímido. Sofria de uma timidez doentia que me fazia mudar de calçada para não passar em frente a um grupo de garotas. Morria de vergonha quando elas olhavam para mim e ficavam cochichando. Sempre me parecia que elas estavam debochando do meu jeito de andar ou das roupas que eu usava.
Por isso nunca falei com ela, nunca lhe confessei a minha louca paixão. Não tive coragem. Ela parecia tão inacessível, tão distante, tão bonita em contraste com o patinho feio que eu era, que jamais consegui romper o limite do “oi” diário que eu lhe dava e que ela sempre respondia com outro “oi”, que hoje eu sei, naquela linguagem não verbal que comunica muito mais que as palavras, era matreiro, convidativo e tão cheio de significados, mas que eu, nos meus dezesseis anos de inexperiência e imaturidade nunca soube interpretar.
Passei noites e noites planejando, sonhando, me torturando, buscando o meio de dizer para ela o que eu sentia. Mas, sem coragem para dar a cara para o tapa ― que na época tinha certeza que ia levar ―, imaginei um estratagema: escrever para ela um poema, dizendo o quanto a amava e pedir para o João, um amigo que trabalhava com ela no mesmo setor, entregar.
Dito e feito, o poema saiu mais ou menos assim.
“De que sonho você veio,
E esse sorriso, de onde trouxe?
Era você que se agitava
No mais profundo dos meus desejos?
Era você que eu pressentia,
Presença informe numa ausência,
Sempre real, nunca atingível?
Ah! Eu a sonhei em uma lenda
Onde tudo acontecia.
Eu fui cipreste na colina
Você singela flor silvestre.
A minha sombra a envolvia
O seu perfume me embriagava.
Você cresceu ante meus olhos
Como o pé de feijão da lenda.
Por um momento eu vislumbrei
Um convite nos seus olhos.
Mas tive medo do condor
E não ousei voar tão alto.
Agora estou aqui na terra
Aguardando o seu chamado.
Se você me convidar,
Eu então serei ousado,
Esteja você onde estiver
Estarei sempre do seu lado.”
Joãozinho
Joãozinho era o nome pelo qual todos me conheciam.
O poema não era lá essas coisas, mas eu tinha certeza que ela ia gostar. Afinal de contas, ela aparentava ter aquele jeitinho de menina que se derretia com alguns versos lidos ao pé do ouvido.
Pelo menos era o que me parecia. Ela me lembrava a Roxane, a musa do filósofo alquimista Cirano de Bergerac. E a nossa história não era muito diferente. Cirano não achava coragem para declarar seu amor por Roxane porque pensava ter nariz de mais. Eu não me declarava para a minha musa porque talvez temesse ter nariz de menos. Quem lê entenda. Eu tinha medo de ser insuficiente e quando chegasse a hora não conseguir dar conta do recado. Coisas de adolescente.
Bom, como já disse, eu tinha um amigo que também se chamava João. Ele trabalhava na linha de montagem, bem próximo dela. Nunca confessei para ele a paixão desesperada que eu sentia pela sua colega de trabalho. Na verdade, eu tinha vergonha de comentar sobre o assunto e talvez ele também sequer desconfiasse disso. Não sei bem o que era, mas o fato é que nunca me veio à baila falar disso com ele até o dia em que eu tomei coragem e lhe passei o poema para que ele o entregasse a ela.
Ele achou graça, riu, debochou de mim, mas sem ofender. Por fim, concordou gentilmente em entregar o poema para a menina. Fiquei aguardando ansiosamente para ver no que dava. Os dias se passaram e o jeito dela não mudou. Era o mesmo “oi” de sempre, mas pareceu-me que agora havia uma conotação diferente nele. Acho que ficou mais frio, mais distante, mais formal. Era um “oi” de pura educação, de mera cortesia. Não transmitia mais aquela impressão de convite, de faceirice, algo assim que me dizia, “ hei cara, quando é que você vai sair de cima desse muro?”, convite que eu, na minha exagerada timidez, não conseguia encarar.
Mas logo descobri o motivo do “oi” dela ter mudado. A danadinha tinha arrumado um namorado. Eu a vi chegar de mãos dadas com um cara. E o cara era justamente o meu amigo João.
Dois anos depois eles se casaram e eu fui no casamento deles. Afinal, o João era meu amigo. Ressignifiquei o fato. Reconheci que ele foi mais competente que eu e pronto. É claro que fiquei magoado um tempinho, afinal eu sou humano, mas depois relevei. Mágoas são fardos pesados demais para a gente carregar pela vida inteira.
O tempo passou, eles sumiram do meu mundo e eu do deles. Alguns anos depois eu também casei e a vida seguiu seu curso. O episódio foi arquivado numa das gavetas mais fundas da minha memória e eu já nem me lembrava de um dia ter vivido uma experiência dessas.
Algumas décadas mais tarde nós nos encontramos num sarau de poetas da cidade. Reconhecia-a logo pelo narizinho arrebitado e pelas pernas roliças. Eram inesquecíveis e inconfundíveis. O rosto também mudara muito pouco. Conservava ainda aquela aparência louçã que tanto me enlevara nos meus anos de adolescência. Nos olhos matreiros ainda uma linguagem não verbal muito pronunciada, mas agora bem reservada.
Não me enganei quando imaginei que ela gostasse de poesia. Só não pensei que também fosse do ramo. Foi uma agradável surpresa para mim. Ela agora era uma bonita e elegante senhora, simpática e culta, com belas e interessantes histórias para contar.
Não nos víamos há mais de trinta anos. Ela também me reconheceu. Lembramos os velhos tempos de operário. Falamos dos amigos daquela época, recuperamos a memória de alguns, rimos, recordamos.
Depois de um tempo perguntei pelo meu amigo João.
―Você não sabia? Respondeu ela ― Nós nos separamos já faz uns dez anos.
―Ah é? E o que foi feito dele?
―Anda por ai. Casou de novo. Está gordo como um capado. Você não o reconheceria.
―Você está muito bem― eu disse. E não estava sendo apenas gentil. Ela estava mesmo.
―Eu me cuido ― ela respondeu.
―Estou vendo ― respondi.
Rimos. Conversamos banalidades. Declamamos poesias, ela as dela, eu as minhas.
Lá pelas tantas eu puxei da minha pasta uns velhos versos e comecei a declamá-los.
“De que sonho você veio,
E esse sorriso de onde trouxe?”
(...)
― Hei, acho que eu conheço esses versos. Onde é que você os leu?― ela perguntou.
― Por acaso fui eu que os escrevi quando tinha uns dezesseis ou dezessete anos ―, respondi.
― Não acredito, então o Joãozinho era você?
― Era ― respondi, meio constrangido.
― Bem que eu desconfiava. O João nunca foi de escrever nada.
― Eu sei, mas vocês estavam tão apaixonados que eu não tive coragem de confessar.
― Meu Deus, podia ter sido tudo tão diferente ― disse ela.
***
“Uma borboleta batendo asas na Amazônia pode causar um tufão no Texas.”
Teoria do Caos - James Gluck
O efeito borboleta é uma ideia curiosa e o cara que teve essa intuição deve ter deixado muitos filósofos em dificuldades. A questão é a seguinte: Se você pudesse voltar no tempo e mudar as decisões que tomou, o que teria acontecido com o universo em que você vive? Com quantas pessoas você não mexeria, quanto desarranjo não provocaria com essa simples decisão pessoal?
Já pensou nisso? Todo o desenho do universo teria que ser mudado por causa de uma mera decisão sua.
Se uma única pessoa no mundo pudesse fazer isso, em que a sua vida e a minha seriam afetadas? E com a vida do resto da humanidade, o que aconteceria? Não é uma coisa maluca um negócio desses?
Naquela noite fui para casa pensando no que teria acontecido no universo se o Fernando Pessoa se voltasse para a direita ao invés de para a esquerda. Se tivesse dito sim em vez de não. Talvez eu nem tivesse nascido por conta disso. Pensei como estaríamos hoje se o coronel Joaquim Silvério dos Reis não fosse o “traira” que era e não tivesse denunciado os seus companheiros da Inconfidência Mineira. Se a Alemanha tivesse ganho a guerra e ao invés dos Estados Unidos fosse o Japão que tivesse produzido primeiro a bomba atômica. Pensei em como seria se eu não fosse reprovado naquela prova do Senai e tivesse me tornado torneiro-mecânico, como pretendia naquele tempo; Se o Jânio Quadros não tivesse renunciado ao cargo de presidente e o Getúlio Vargas não tivesse se suicidado; Se o Pelé, ao invés de ir para o Santos, tivesse ido parar no Corinthians; Se o escravo-gladiador Espártaco tivesse vencido a sua guerra contra os romanos; Se Napoleão não tivesse perdido a batalha de Waterloo. Se o Silvio Santos fosse o meu pai....
Ah! Essa inconcebível sabedoria do universo, que não nos permite calcular em que lugar do tempo e do espaço a incompreensível partícula de energia que somos poderá estar no momento seguinte! Nem qual será a nossa próxima interação e o que dela resultará.
Nem Karma nem Mak Tub, mas apenas a imprevisível e inescapável consequência das nossas escolhas!
O que teria acontecido se eu tivesse me declarado pessoalmente para aquela menina e ela tivesse me aceitado? Hoje, os filhos dela seriam os meus e os meus seriam de outro cara qualquer. Senti um arrepio na espinha.
Eu então seria algo diferente do que sou e você também seria algo diferente do que é só por causa disso. Isso é o que diz o efeito borboleta. Isso foi o que Fernando Pessoa intuiu naquela noite de angústia e desconsolo em que ele escreveu os versos desesperados que me inspiraram este texto.
“Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.”
Eu também relembro. Pensei que um drinque me cairia bem naquela hora, mas logo desisti. Eu poderia modificar a conformação estrutural do universo com esse ato. Se eu beber o futuro será de um jeito; se eu não beber ele ocorrerá de outro. Tenho que escolher. O meu desejo, satisfeito ou insatisfeito, poderia causar uma catástrofe em um lugar qualquer. Tive outro arrepio na espinha pensando na responsabilidade que estava sendo jogada nas minhas costas.
Sim. Se eu pudesse voltar ao passado e mudar uma única vírgula na história da minha vida, ou se você pudesse fazer isso, ou outra pessoa qualquer pudesse, tudo seria diferente para mim, para você e para o resto do mundo.
Einsten achava que viagens no tempo são possíveis porque o espaço é curvo e deve haver algum ponto no infinito em que ele se encontra consigo mesmo. O cosmo é como uma cobra mordendo o próprio rabo. Por isso os filósofos gnósticos e os alquimistas usavam o símbolo de uma serpente que morde o próprio rabo para representar o ciclo da energia universal que nunca se esgota porque se alimenta de si mesma.
Hawking também disse acreditar nessa possibilidade, mas sob certas condições. Ele diz que se pudéssemos voltar ao passado, nós não poderíamos interferir na História, por que ela é feita de atos que se despregam dos seus executores tão logo eles são realizados. Os personagens passam, a história fica. São algo assim como os quadros de um pintor, as estátuas de um escultor, os textos de um escritor. Pessoas e coisas são energia ― matéria sutil― que se condensam em formas sólidas. Isso quer dizer que as nossas ações são energia que são consumidas. Umas sobrevivem e passam para o momento seguinte como resultados. Outras não. Perdem-se no limbo do esquecimento.
É confortador saber que os nossos atos despregam-se de nós tão logo são produzidos. Seria extremamente difícil ter que carregar cada ato para o momento seguinte. Chegaria o dia em que o peso ficaria tão grande que não conseguiríamos dar um único passo adiante. Nossos atos são como os nossos filhos. Setas lançadas de um arco em direção a um alvo. Nem sempre os atingem, mas jamais voltam ao arco para serem lançadas novamente. Resta-nos apenas administrar as suas consequências. As pessoas desaparecem no limbo; suas ações repercutem no tempo, denunciando sua sensatez ou insensatez. Então nos vem a constatação: nós não temos importância alguma, os nossos atos sim.
O que está feito está feito, não pode ser mudado. Ainda bem que é assim, pois senão o universo continuaria sendo um eterno caos, e se bem me lembro, alguém me disse que Deus deu uma mente ao homem para que ele botasse ordem no caos.
Ordo ab Chaos. Foi por isso que Ele, o Grande Arquiteto do Universo, mandou Adão dar nome aos animais. O nome que Adão colocou em cada bicho, esse é o seu nome, diz a Bíblia. Cão, gato, macaco, cobra, elefante, urubu. Se não fosse Adão ter rotulado cada um deles, todos seriam a mesma coisa, embora com forma diferentes; vidas sem identidade a perambular por um mundo sem ordem nem finalidade.
Ele fez isso para que nada fosse aleatório, nada ficasse por conta do acaso. Por isso essa nossa mania de por rótulos em tudo. Inventamos o princípio da identidade para ter a ilusão de que vivemos num mundo coerente. Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Dessa forma separamos, identificamos, catalogamos. Damos um nome para todas as coisas e chamamos isso de lógica. Lógica é ciência, é razão, é sabedoria.
E se fosse possível, eu poderia voltar ao passado e matar o meu pai, porque inconscientemente eu o odeio e tenho ciúme dele pelo fato de ele estar dormindo com a minha mãe. É o que Freud dizia. E isso também é ciência, embora não seja nada racional.
Fiquei com pena do Fernando Pessoa. Não fez as escolhas certas na vida e por isso se sentia tão infeliz.
“ O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para o outro mundo o que esqueci de sonhar?”
Amargas conjecturas. Mas o que são escolhas certas e quem é que sempre as faz?
Mais um pouco e também começaria a sentir pena de mim mesmo. Pensei em todas as bobagens que fiz, nas perdas que contabilizei, no que deixei de ganhar, nas lutas que não lutei. Sonhos que sonhei e decidi que eram apenas sonhos. Por isso deixei que se diluíssem num oceano de quimeras, que é para onde vão todas essas águas da imaginação que não ousamos navegar na realidade.
“ Estes sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
“Enterro-os no meu coração para sempre para todo o tempo, para todos os universos.”
Pobre Fernando. Quanto a mim, confesso que sou menos sentimental. Odeio pensar que eu durmo com cadáveres. Por isso logo resolvi deixá-lo de lado e sai em busca de outro poeta, o Omar Kayan, que escreveu algo mais ou menos assim:
" O dedo que se move escreve; e tendo escrito, continua. Nem todo o seu entendimento, nem todo o seu arrependimento, pode fazer com que ele volte para apagar uma só linha do que já foi escrito."
O passado jamais voltará e o futuro é uma incógnita. Afinal, é muito bom que na composição estrutural do universo exista um princípio da incerteza. Nunca saberemos o que o momento seguinte nos reserva. Por outro lado, só poderemos voltar ao passado se um dia conseguirmos nos deslocar mais rápido do que a luz. Como essa é uma possibilidade matematicamente improvável, posso dormir tranquilo.
E não preciso temer o pesadelo de Nietzsche. O eterno retorno também é uma possibilidade inexequível porque as condições ambientais serão sempre diferentes em cada momento no tempo. Assim, quando a borboleta bater as asas de novo na floresta amazônica, as coisas no universo todo serão diferentes também e os mesmos efeitos que ela provocou com o rufar anterior não se repetirão. Essa ideia me conforta. O princípio da incerteza foi a melhor descoberta que os cientistas do átomo até hoje já fizeram. Nunca saberemos o que o futuro nos reserva porque jamais poderemos calcular em que lugar do tempo e do espaço estaremos no momento seguinte. Nós nos movemos junto com o universo e ele é como uma bola que uma criança chuta a esmo. Somos o que fazemos em cada momento. Por isso somos diferentes. O resto é só filosofia.