Eu, semente, vinho

Cansada, deitada na cama após o ato do amor, relaxada, feliz, pensando,
nas conseqüências, o sabor que teve e que nunca imaginou que um dia o tivesse.
O homem que tanto sonhara, ali, agora ao seu lado deitado, dormindo em um profundo prazer, provindo dos atos por ela proporcionados.
Que doce momento, e apenas digo que tive lá a minha participação; em sua mente agi deixando-a calma, calculista e excitado, para que este desejo fosse realizado, apenas fiz o que deveria ser feito: a troca.
Sim, isso mesmo, uma troca!
Hoje sou quem sou; vivi por ela uma atitude que ela tomou...
Lá atrás algo aconteceu e teve ela sua participação.
Graças a ela vivi, cresci, até me transformar no que sou neste exato momento; agora deixo de viver, pois meu ciclo aqui se encerrou, mas não posso deixar de contar...

Um dia, essa mulher que sempre morou na cidade grande, foi para uma pequena cidade do interior.
Lá, seu pai acabara de comprar um sitio: um lugar lindo, belas montanhas, um rio, árvores por todos os lados e também muita terra. Isso mesmo... terra sem nada plantado.
Seu pai comprara aquele sitio apenas para descansar, pois já trabalhara muito e queria ali viver o restante de sua vida; deixava entender que dali em diante nada mais faria.
Ela, sua filha, se pôs à frente e pediu que deixasse direcionar qual caminho aquele sitio seguiria, na questão do que ali plantar.
Foi dado a ela, pelo seu pai, o destino daquele lugar.
Precisavam ver o sorriso estampado em seu rosto, no momento da decisão!
Mas, o que plantar?
Não passava pela sua mente a questão do retorno financeiro, mas sim o prazer pelo que estaria fazendo.
Não faria nenhum tipo de pesquisa, nem perguntaria à ninguém; deixaria acontecer, pois muitas vezes, quando estabelecemos planos nada acontece, então, apenas deixou...
Aproveitou as férias, perambulou por toda a redondeza e viu uma variedade muito grande de plantações desde arroz, cana de açúcar até morangos, e nada em seu coração a tocara.
Voltara ao sitio e ali, nas noites, conversava com as estrelas...
Certa vez havia lido algo sobre isso (hoje lhe direi o que sei sobre as estrelas), e a partir dai passou a conversar com elas.
Contudo a resposta que procurara não viera de tão alto...
Bem, sim, do alto, mas nem tanto...
Certo dia, ao olhar para uma árvore viu a briga desesperada de um pássaro que em um de seus galhos se debatia e não entendendo muito bem, aproximou-se e percebeu que esta briga era pela necessidade de se alimentar.
Com a sua aproximação ele foi embora, mas deixou ali o que tanto queria: EU!
Sim, EU mesmo; uma semente, proveniente de uma bela uva, daquelas bem avermelhadas, cor de uva mesmo...
Pegou-me e disse:
- "Aqui está o que tanto estive procurando".
Sem nem mesmo saber o que seria aquela semente, levou-a e jogou no terreno do sitio.
Vocês podem não entender muito este meu mundo, mas, quando desde pequeninos somos aceitos com carinho por alguém, fazemos de tudo para que seus sonhos sejam realizados, e a partir daquele momento passei a me alimentar de tudo que ali caía para poder crescer rápido e forte, no intuito de satisfazer todos os sonhos daquela mulher.
Ela voltou para a cidade e só vinha a cada dois meses, ou nas férias.
Eu?
Aprofundei-me na terra e de lá comecei a crescer, espalhar-me pelo terreno.
De inicio, galhos e folhas: queria que tudo acontecesse o mais rápido possível, pois no seu primeiro retorno queria lhe fazer uma surpresa. Ela não comunicava-se com seu pai, pois ao mudar-se para o sítio, seu pai cortara todo tipo de contato com a cidade e ela só saberia o que eu realmente seria ,quando ali voltasse.
Lembro-me como se fosse ontem; ela vindo com seu carro lá no fundo, na estrada de terra, levantando poeira a toda velocidade, como se estivesse em uma competição e acho que estava...
Competia com sua ansiedade...
Ao chegar desceu do carro e um enorme sorriso se abriu, acompanhado de pulos de alegria!
Corria para lá e para cá; nenhum ponto de terra se via, apenas folhas e mais folhas.
Num determinado momento, uma interrogação caíra sobre ela: o que seria isso?
EU, é claro!
Chegou perto, acariciou-me e depois olhou firmemente e viu que ali estava um bago de uva!
Fiquei vermelhinho de vergonha, de alegria...
Não sabia onde colocar minha cara e, ali, naquele momento, uma troca, mas de olhares...
Eu, semente, fui o inicio de tudo neste pequeno espaço do sitio; a amplitude que havia naquele local era algo mágico, pois a minha vontade em torná-la feliz fez com que, ali, uma enorme plantação de uvas crescesse.
Voltando aos seus sentimentos; ela até esqueceu-se de ir ao seu pai, para um cumprimento e ficou todo aquele dia de sua chegada ao meu lado.
Sentia-me sua filha e ela minha mãe.
Que delicia aquele sentimento!
Nesses dias, que passara no sitio, fiquei muito a observar seus movimentos e atitudes e aos poucos fui conhecendo-a melhor.
Sabe, a percepção das uvas é muito rápida e o que se levaria anos para Vocês, para nós apenas dias e, para mim, já considerava aquela mulher como um livro.
Acho que a amava , amor de filho; notara, que as vezes ficara sentada em frente à parreira, horas e horas, dias e noites, feliz e muitas vezes triste...
Nesses momentos, sentia, que algo lhe faltava e sentia a necessidade de ajudá-la; sabia que um dia faria, mas não naquele momento.
O tempo passava e sua vida era de idas e vindas ao sitio , até que um dia apareceu na companhia de um homem, que acabara de conhecer.
Os dois conversavam de forma profissional,mas da parte dela percebi um certo brilho no olhar, que dirigia a este homem.
Ele não percebera o olhar; a conversa fluía e só depois notei que o assunto eram as uvas...
Algo estranho dentro de mim se fez presente; um misto de medo e alegria, mas fiquei tranqüilo pois nós, uvas, temos um ciclo curto de vida e o retorno entre nos é uma coisa certa.
A única diferença entre nós e os humanos é a lembrança de nossas vidas anteriores.
Não falarei delas, porque agora apenas quero contar desta vida; um outro dia vos conto.
Recolhidas, colocadas em caixas e levadas para uma caminhonete, que só chegaria no dia seguinte; ela acompanhando tudo, passo a passo, deixando transparecer no olhar, algo de alegria e dor, que não conseguia entender...
Deixou o terreno preparado para as novas uvas que viriam, e lá fomos para uma nova etapa.
Olhei para trás e dei um "adeus", o qual foi retribuído, por ela, ao acenar para a caminhonete já longe...
O homem, como que sabendo que seu "adeus", de certa forma era para mim, em momento algum virou-se, para retribuir seu aceno.
Durante o percurso comecei a observar esse homem e senti o quanto ele era bom, pela forma como olhava para as plantações que passavam; percebi também, que era um homem só, mas, que apenas pensava em sua situação econômica, esquecendo de outros sentimentos,que poderiam fazê-lo feliz.
Finalmente chegamos ao lugar, onde começaríamos(nós, os bagos de uvas) a ser descarregados. Iniciou-se um processo complicado, que não vem ao caso contar agora , mas sei que passei a viajar muito, andei de navio dias e dias até chegar à França.
Muitas coisas aconteceram, vi ate uns padres pisando em minha cabeça , e, num piscar de olhos lá estava eu em forma de líquido.
Algo de muito estranho, durante esse processo, havia acontecido, pois minha sensibilidade aumentara em mil trezentas e quarenta e sete vezes mais que o normal. Esse número não era ao acaso, mas, sim, o número exato de uvas concentradas naquele lugar.
Quando juntas, nossos pensamentos tornaram-se um só!
E, assim, já em forma de líquido, nos engarrafaram e ali ficamos por um certo tempo(tempo este que não posso dizer corretamente , pois meu tempo é diferente).
Passado um certo tempo, senti que estávamos navegando...Sim, voltávamos ao Brasil!!
E, aqui chegando, colocaram-me em um lugar "chique" e todos que ali estavam eram produtos de procedência européia: era uma casa de importados.
Fiquei ali mais algum tempo, e da vitrine podia observar as pessoas, que andavam pelas ruas; notara que também eu era observado, com prazer, como que num encantamento, sentia que fascinava essas pessoas.
Certo dia, notei um rapaz de olhar sério e meio tímido, caminhando pela calçada, porém como que embriagado pela beleza da minha cor, esquecendo um pouco sua timidez, armou-se de certa audácia e lançou um olhar carinhoso, para uma linda mulher, que caminhava pela mesma calçada...
Sei, apenas, que dias depois os vi caminhando juntos; sorridentes e enamorados.
Contou-me, certa dia, uma vodka que estava ao meu lado, que eles haviam se casado.
Os vinhos, têm a capacidade de ver, apenas o que acontece de perto, já as vodkas têm a sensibilidade de saber o que acontece ao longe; estranho não?
E, assim, o tempo passou, e num dia de muita chuva quem que eu vejo passando em frente à loja?
Sim, ela, toda molhada em passos lentos e cabisbaixa, de olhar triste...
Tal tristeza, inumdou-me de tal forma a alma, que senti a necessidade de fazer algo.
E, unindo todas as minhas forças fiz com que uma grande ventania viesse e levasse a chuva. Em segundos, um sol suave, como aquele que presenciamos nos fins de tarde, acariciou se rosto e um doce sorriso iluminou sua face, pois sua alma serena, interpretara aquele sinal, como um aviso de que algo bom estava para acontecer, e continuou seu caminhar.
Dia sim, dia não, ela passava em frente à loja (sei que este caminho era o mais longo para seu trabalho), e podia perceber sua felicidade ao admirar-me.
Certo dia, um homem entrara na loja olhando cada garrafa, apreciando seu conteúdo, e nesse momento senti um medo terrível de ser escolhido por ele, pois tinha a esperança, de que seria ela a entrar pela porta e levar-me...
E, nesse instante, meu medo fez com que eu exalasse um aroma inebriante, espalhando-se por toda aloja.
O fato de ele ser um especialista em vinhos, fez com que viesse em minha direção, pegou-me, fixou seus olhos em mim e disse:
_ Aqui esta o vinho que tanto procuro!
Meu medo foi tão grande, que outros vinhos viram-se na obrigação de me ajudar; e o aroma foi tanto e de tal forma tão embriagante, que inexplicavelmente o homem ficou alcoolizado, sem conseguir manter-se em pé, creio até, que tenha ido parar no hospital.
Algum tempo depois, quando eu já não estava mais lá, soube que ele estava muito bem, aliás, tornou-se um grande freguês da adega, e por sua causa, muitos daqueles vinhos que lá estavam, despediram-se desta vida...
Mas, voltando aquele momento, a ajuda daqueles amigos havia sido tão grande, que o aroma saiu pela loja, expandindo-se por toda a rua, pelo bairro, chegando até aos pensamentos daquela bela mulher.
Guiada por uma lembrança, minutos depois ela adentra a loja e caminhando em minha direção escolhe a garrafa, me segura em suas mãos, como que apreciando minha cor e aroma, dirige-se ao caixa e sai caminhando.
Seguia por uma direção que nunca seguira antes.
Não entendia porque, mas continuava a seguir...
De repente para em frente a uma linda casa com uma bela varanda e sem saber, fica a olhar, por horas sentindo-se bem estando ali.
Já altas horas da noite, lá no fim da rua, um barulho, barulho de caminhonete subindo a rua com esforço, aproxima-se dela ela vê que é aquele homem, que há tanto tempo comprara-lhe as uvas!
Ele para em frente à casa, abre a garagem e entra.
Ainda era o mesmo homem só, que ele havia conhecido.
E envolto em seus pensamentos, não notara a presença da mulher parada em frente à sua casa.
Enquanto isso, lá fora, a garrafa próxima ao chão é aberta e em pequenos goles, vou entrando através dela aos poucos...
Sorvido por seus lábios, sua boca, percorro os caminhos do seu estômago, penetro no seu sangue, e de lá, direto ao seu coração - lindo coração -lugar aconchegante, com desejo louco de ali permanecer, mas sei que não é ali o meu lugar e continuo meu percurso até seus pensamentos.
Digo a ela:
_ Não tenha medo vá; bata à porta, pois sem o saber, ele a está esperando.
Vá ,vá , vá!
E ela o fez.
Bateu à sua porta, e ele, então, abriu e ao vê-la, um lindo sorriso a ela foi dado, fazendo-lhe um convite para entrar.
E em poucos minutos estavam os dois na sala, olhando-se.
Foi estranho, pois julgava-se ser difícil, para ele, esse primeiro encontro, mas depois percebi que ele não agira sozinho...
Ao olhar para a cozinha, lá no fundo, notei, em cima da mesa, uma garrafa de vinho; vinho branco, cuja semente também tinha sua história.
Bom, o que ali, naquela noite acontecera, só eles poderão contar, sei tão somente, que foi uma deliciosa noite de amor e sei também, que casaram-se e foram felizes.
Aqui encerra-se meu ciclo, estou indo embora, mas voltarei como sempre volto: semente.
E, caso um passarinho me coma, contarei a história desse pássaro, mas se ao contrário, a semente caia na terra fértil, contarei uma nova história de amor.