A Flor do Pântano

Abandonado na lassidão do sono, o teu rosto parece esculpido em cera. Sigo a linha doce da testa, a curva suave do nariz, a protuberância dos lábios carnudos e, ao correr do olhar, baixo o ângulo até ao lugar onde os teus peitos, belos pomos de um rosa lívido, arfam ao compasso manso da respiração. Bons sonhos te vestem esta noite e aposto que, na história que sonhas, tens asas como os anjos ou as aves.

Entraste na minha vida como um acidente ou um acaso. Na verdade, quando tudo se disputa e se arranca, quando o mundo fica, de repente e sem motivos aparentes, um lugar agressivo e inóspito,cada um funciona como se tivesse apenas um instinto de sobrevivência que se impõe a todas as normas, todas as razões, a toda a solidariedade. Fui sensível ao teu problema e tive pena, sentimento que a maioria expulsa para ganhar tempo e sobreviver. À raiva, ao ódio, à anarquia.

As pessoas seguiam, umas com as outras, apenas na trajectória comum. Comiam, bebiam ou copulavam segundo as conveniências do momento e bom seria que não se envolvessem outras razões de espírito, de afecto, ou até mesmo de pele a um nível mais profundo se o cenário fosse aquele, de uma guerra que envolvia raças, gerações, credos, localidades e políticos sem uma definição que as habilitasse a seguir um só sentido ou a optar por um ideal.

Eu disse ideal? Que estranho… há quantos meses esse vocábulo foi riscado da luta que ainda se trava aqui para garantir comida, água, defesa? Mata-se e morre-se, trai-se e mente-se sem que a consciência nos acuse de nada. Não fora isso e nunca um homem de cinquenta anos, fugitivo sem futuro, ousaria misturar-se com uma quase menina como eras quando a tua terra desapareceu sob o fogo dos morteiros e a mata ardeu sem deixar nada de pé ou com vida.

Tinhas medo das fardas, corrias para o escuro para te esconderes dos guerrilheiros e recordo que foi porque homens maduros, como eu, não pertenciam aos grupos agressores que correste para mim a implorar ajuda. Estavas ferida, faminta, confusa, com o rosto coberto de pó e lágrimas. Parecias um animal acuado, com baba, ranho e sujidade. Gritavas um choro raspado e rouco, abraçada às minhas pernas. Sangravas. Cuidei de ti. Roubava a comida para os dois e, tal como agora, vigiei o teu descanso para que pudesses recuperar das feridas do corpo e da alma.

Nunca contaste e nunca te perguntei o que aconteceu depois da tua fuga. Não precisava. Trazias no corpo e na roupa a história, espécie de narrativa de violentações e fome, de perseguições e medo. Muito medo. E eu fui a tua trincheira, o teu porto de abrigo, a tua terra lavrada, o teu ninho. A princípio evitei-te. Mal te tocava para fugir às tentações mas tu, já livre também de questões de pudor, de honra ou de fé, oferecias-te como se fosses uma moeda que me deveria pagar esforços e boa vontade.

Numa noite particularmente dramática, sob a chuva dos morteiros, o ruído rasgado das metralhadoras e a fúria das imprecações nas pausas das armas, repetidas vezes me procuraste correndo para a minha cama onde acabaste por ficar, colada ao meu corpo magro, até que um silêncio pesado nos mostrou a inutilidade da razão quando todos, até a natureza, se rebelavam em uníssono naquele inferno.

Fundimo-nos um no outro como se quiséssemos fugir para um reduto, ambos miseráveis e frágeis, doentes. Como pode um par de náufragos ter esperança de salvação quando a morte lhe dá a mão a todas as horas do dia? O que se pode esperar da sanha assassina de chefes e subalternos quando a política é a de terra queimada, da violência e da fome? Exímios nas manhas, na invenção, na representação, sobrevivíamos em arriscados jogos e negociatas. Trocávamos diamantes em bruto por tranquilidade e alimentos em permutas imorais com quem fosse possível.

Vivíamos com pavor de que te descobrissem, te levassem à força, te usassem como a tantas que não sobreviveram para contar a odisseia. Era muito pesado para todos mas particularmente atroz para uma menina como tu que nem acabara de crescer. Recordo que desististe de falar, de rir, de chorar. O teu mundo passou a ser isolado do meu. Nem afecto nem simpatia e, sempre, uma máscara de absoluta indiferença perante o que se desenrolava ao redor.

Era como se as lágrimas tivessem secado e o teu coração, revestido a aço, já não se comovesse perante a vida ou a morte, o amor, o sofrimento ou a violência gratuita, tão frequente naquela guerra. Só o instinto vital te defendia. Até à tua ida, naquela viatura, sem dizeres as intenções que te levaram a abandonar-me como algo já inútil. Entre as incertezas que te oferecia e a segurança de uma unidade hospitalar ainda funcional, não hesitaste. Deixavas de ter um protector e passavas a contar com uma equipa inteira. Não te impedi. Nunca o faria. Chorei por dentro a solidão, o medo e o desespero de me saber num mundo implacável. Acabara de perder o único motivo que me mantinha humano e lucidamente ponderado.

Passou tanto tempo depois que nos perdemos que receei já não me lembrar da cor dos teus olhos, do teu riso aberto, da suavidade com que usas os dedos a sinalizar percursos imaginários na palma da mão. Muitas vezes me pergunto se duas pessoas, que ficam juntas para resistir ao tempo, à guerra e á vida, têm compromisso uma com a outra. Já me questionava a esse respeito quando, sem aviso prévio, sem levares nada, subiste para a carroçaria da viatura do hospital e desapareceste. Não olhaste para trás, não acenaste. Fiquei, por isso mesmo, seguro de que não. Tu nem com o presente te comprometias!

Não valerá a pena dizer-te do que passei nos meses seguintes quando arrisquei tudo para me refugiar aqui, nesta imensa roça de café com todos os acessos minados. Vim pelo leito quase seco da ribeira, talvez o único lugar em que os riscos de voar em pedaços se reduziam. Depois, eu próprio o minei para impedir que alguém usasse o mesmo trajecto para roubar mantimentos, roupa ou até procurar o conforto da casa que os colonos abandonaram intacta. Havia de tudo em excesso na loja que abastecia o pessoal e até as aves de capoeira apareciam para fazer ninho e por ovos, tudo sem interferências humanas. Acreditei-me feliz só por poder desfrutar de abundância e descanso. Estava preso numa gaiola gigante mas sentia-me livre, solto e tranquilo pela primeira vez em muito tempo.

As trocas eram feitas indirectamente numa área de grande visibilidade no terreiro da secagem do grão. Quando chegavam com o que tinham para a permuta, eu via-os de muito longe, para cá do campo minado. Quando se retiravam recolhia o produto , deixava o valor do pagamento e nova mensagem. Sem mais nada para me ocupar, o tempo passou a medir-se pelas horas de vigília, pela visita às armadilhas, pelas tarefas que se impunham para preservar os excedentes e manter abertos os canais de contacto com os que a guerra acantonara à periferia da fazenda.

Combustíveis, óleo de palma, açúcar, farinha, peixe seco, café, leite enlatado e em pó valiam diamantes, sexo, pessoas. Só por isso te recuperei. De tão desfigurada e doente, valias pouco e eu ofereci bastante sem mesmo saber que se tratava de ti. Falavam numa branca e achei que tinha a obrigação de ajudar, talvez a pensar amenizar a solidão que me apoquentava. Comprei-te. És minha. És?

No hospital, enquanto mandaram os portugueses, foste bem tratada e o trabalho, embora pesado, não matava. Depois, na nova administração, já com angolanos e cubanos ao leme do edifício, o trabalho redobrou e as cirurgias sucediam-se em clima de grande anarquia e tensão. Precisavam de gente forte para ajudar e não de mais uma boca sem préstimo. Era preciso ter força, coragem e capacidade para as tarefas que iam da recolha de lixos e limpeza dos blocos operatórios, à alimentação dos doentes e sua higiene quando isso se fazia imperioso. Não havia horários de trabalho regulares. Dormia-se quando os olhos se fechavam em qualquer lugar das enfermarias ou dos alpendres. A vida tornou-se um pesadelo. Aos primeiros enjoos e depois de confirmada a tua gravidez, mandaram-te embora.

Disto contaste pouco e eu adivinhei o muito que faltava. Mas estavas diferente, mais madura, conformada com o que te acontecia, mas também mais dependente. O tempo de gestação chegava ao fim e, a menos que alguma mudança radical acontecesse, era só comigo que contavas. Se eu sabia fazer um parto? Claro que sim, disse, para te tranquilizar enquanto um verdadeiro pavor me gelava ante a ideia do que, a seguir, teria de enfrentar.

E… o dia chegou. Rebentaram as águas, mas o verdadeiro trabalho de parto não acontecia. Senti-te ainda mais fraca, com leves dores que se agigantavam até ficares exausta, suada, trémula. O medo, o desespero, a força e a perda de sangue não prognosticavam nada de bom. Sentiste que poderias não sair viva daquela experiência e, só por isso, com um esforço já notório, gemeste: se a criança for branca é tua. E, se não for, mulher, é minha também, respondi-te olhando-te bem no fundo dos olhos. Dei dinheiro pelas duas, tenho amor para a criar.

E, logo a seguir, como fim do pesadelo e espécie de sinal de esperança, um menino nasceu.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 27/11/2010
Reeditado em 28/11/2010
Código do texto: T2640661
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