Reencontro
Meus passos eram lentos, minha visibilidade estava quase nula por conta da forte chuva que caía sobre minha cabeça. Eu observava borrões apressados, debaixo de seus guarda-chuvas, lutando contra a brisa irritada e as lágrimas do céu. Buscava entender porque tanta pressa, ou por qual razão eu estava tão vagaroso.
Tinha um sobretudo encharcado, seu peso duplicado pela chuva, somado ao cansaço e a falta de forças para chegar na sacada do apartamento que dificultavam a caminhada. Nas mãos eu levava a nossa janta, sem nem saber que seria nossa.
Subi os três degraus, girei a chave na porta de ferro e estranhei dar apenas uma volta para abri-la, meu costume eram duas. Mais estranho ainda foi sentir o seu perfume no ar. Afinal, foram três anos sentindo apenas seu cheiro em outros corpos e não preenchendo minha sala de estar com a intensidade que meu inconsciente conhecia.
Suas malas estavam dispostas ao lado do sofá novo, verde limão para dar um contraste com o tom de laranja que eu pintara a parede. Local onde ficavam, antigamente, nossos quadros. Neste instante fiquei petrificado, sentindo minhas veias quase pularem de mim. Fechei os olhos e respirei fundo. Tentando controlar as batidas do meu coração. “Não é possível”, pensei.
Por um momento, a parede que eu observava ainda era de tijolos envernizados, num clima escuro, todavia sedutor e íntimo. Os quadros de nossos encontros e saídas estavam ali. Nossos olhos brilhantes e nossos sorrisos verdadeiros estavam estampados naquele milésimo de segundo congelado.
Lembro que olhei em teus olhos e vi o vácuo. O vazio provocado pelos acontecimentos mais vis de nossas vidas. Aquele olhar acertou meu peito com um punhal cheio do veneno da culpa e do arrependimento. Mesmo que, conscientes, nós soubéssemos que o resultado a que chegamos não havia sido apenas por conta de nossos atos impensados.
Você chorou, enquanto me via falecendo por dentro. Trancando meu coração num cubo de cristal e minha alma num casulo de prata. O chaveiro com a miniatura da Torre Eiffel tilintou, você o levou consigo sem dizer adeus ou qualquer que fosse a palavra adequada para o momento. E três longos anos se passaram.
Adentrei para o segundo cômodo, estava agora na cozinha, intacta e sem reformas desde que você se foi. E de lá ouvi do banheiro o som do chuveiro derramando água. Não quis ver a cena, e calmo deixei o yakissoba sobre a mesa. Sentei-me na cadeira, pus as mãos no queixo em posição de reza e rezei.
Linda como uma deusa, ninfa, ou musa grega você saiu num vestido florido que mesclava o branco, o rosa e alguns tons de verde de maneira impecável. A minha toalha enxugava seus cabelos loiros e seus olhos, sem nenhuma presença do vácuo que ficou registrado na minha memória, me fitaram.
- Você foi imprudente ao deixar a mesma fechadura por três anos.
- Eu tinha esperança que este momento chegasse – falei calmamente.
Olhei para a mesa e lá estava a mesma souvenir de torre que eu havia lhe entregue na nossa visita à Paris. Fitamos-nos e você sorriu. Aquele sorriso que evitava brigas e nos reconciliava sempre.
- Se eu fosse uma ladra teria levado tudo.
- Não faria muita diferença – vi uma careta desaprovadora.
- Como você está, Léo?
- Indo...
Seus olhos reviraram e uma gargalhada muda ecoou em mim.
- Três anos se passam e você me diz isso? "Indo..."?
- Ainda estou no mesmo emprego, reformei a sala e o quarto, terminei a faculdade, ainda solteiro e... Você sabe.
- Não, eu não sei – seus olhos me fitaram com duvidas falsas assim que eu hesitei.
- Com saudades – conclui.
Vi seu sorriso mais uma vez e o cansaço do meu peito foi substituído pela força que há anos eu não sentia.
- Como você sobreviveu àquilo?
- O começo foi difícil, mas logo eu recuperei a confiança deles e tudo voltou ao “normal”. – Seus dedos marcando aspas no céu me hipnotizaram.
- Que bom... Passei todo este tempo pensando ter destruído sua vida.
- E destruiu – foste tão séria que doeu – mas também destruí a sua, eu sei.
Nossos olhares se encontraram num sorriso esperançoso. Mas já não queríamos saber o que iria acontecer, nem nos comprometemos a dizer se tudo voltaria a ser como antigamente. Nem mesmo citamos o acontecido.
- Vai tomar banho – sua voz foi autoritária.
- Já vou, deixa eu só... – fui mexer nas sacolas.
- Eu preparo a mesa, vai tomar banho pra não se resfriar.
Assenti. Tomei banho. Fizemos amor. Jantamos à medida que contávamos como estava nossa vida. Dormimos. Quando acordei você tinha sumido, eu não quis verificar se tinha deixado suas coisas ou não. Me arrumei e fui trabalhar, pensando se tudo tinha sido um sonho ou não. Sem ter medo se iria te ver de novo ou não.