Angústias
Capítulo 1
O sol penetrou no quarto pela brecha da cortina. O pequeno raio colorido pousou sobre o rosto de Cristinne. Ela tentou afugentá-lo cobrindo-se com a colcha rosa que ganhou da mãe no último aniversário. A porta do quarto abriu-se lentamente e dona Célia entrou com a bandeja de café. Ela insistiu que a moça levantasse e que aquela não era mais hora de estar na cama. Cristinne tirou a colcha do rosto e contemplou a mulher que zanzava pelo quarto. Ela abria as janelas, arrumava as roupas que estavam jogadas aqui e ali e tagarelava sem parar.
Há anos trabalhava naquela casa, praticamente viu Cristinne crescer. A moça começou a rir do modo como ela falava. Tinha um sotaque nortista e gesticulava engraçado. Cristinne levantou-se e comeu um pedaço do bolo.
- Hum! Bom! Elogiou e provou mais um pedaço.
- Precisa se alimentar direito. Na minha terra...
Ela vai começar a falar tudo de novo! Pensou a moça e seguiu para o banheiro completando as frases da história que já sabia de cor: as moças comem aimpim, leite fresco, lá, lá, lá...
Cristinne entrou no Box e ligou o chuveiro, a água fria deslizou pelo seu corpo, fazendo-o arrepiar de frio. Ela terminou o banho, vestiu um roupão e voltou para a cama. Célia já havia terminado o serviço e levado a roupa suja. A moça olhou pela janela, mas não viu a beleza do dia, nem sentiu o calor do sol ou prestou atenção no canto dos pássaros. Todos os dias eram assim comuns, vazios e sem graça.
Olhou em volta, tudo estava no seu devido lugar, os perfumes na penteadeira sem espelho, os livros da faculdade amontoados num canto, algumas roupas fora do armário, quem se importa? Pensou. A bandeja ficou intacta até a hora do almoço, quando Célia voltou com outra, contendo arroz, feijão, um pedaço de carne e um copo de suco.
- Coma menina, por favor! Implorou a mulher.
Cristinne sorriu e remexeu no prato. Um pouco de suco amenizou a sede e confortou o estômago. Depois disto a moça acomodou-se na cama e dormiu. As lembranças do passado vieram atormentá-la de novo, uma confusão de gentes, vozes, rostos que apareciam e sorriam rostos que choravam e gritos, correria, sangue... Ela acordou assustada, gritando. A mãe veio em seu socorro. Abraçou a filha e consolou-a enquanto ela chorava e gritava:
- Eu não tive culpa! Eu não tive culpa!
A ferida no pescoço tentava cicatrizar, mas todas as vezes que tinha pesadelo, Cristinne enfiava a unha no pescoço e arranhava-o até o sangue escorrer pelo ombro, sujando toda a roupa. Irmã Vilma tentava segurar o braço da moça para impedi-la, gritava, chorava, mas não adiantava. Quando conseguiam domina-la já era tarde, a ferida aberta, exposta, pustemava e sangrando. Quando estava bem Cristinne colocava o cabelo cumprido na frente do pescoço, tentando esconder a ferida. Era ainda pior quando o cabelo grudava no ferimento e depois tinham que tentar tirá-lo.
- Ela parece que está se castigando! Disse Vilma ao marido, quando se preparava para dormir. A mãe não esconde seus sentimentos e chora. Uma dor no peito, uma angustia! “Até quando meu Deus, até quando...” Orou. As palavras se misturavam aos soluços. (...)
O pai saiu do quarto da filha, pegou a Bíblia e foi para o carro. Cristinne olhou da janela do quarto e viu a mãe entrar no carro com o pai. Moacyr fechou a porta do automóvel, deu a volta e sentou no volante. O portão automático abriu e eles saíram. Da onde estava podia ver o carro seguir pela estrada até que os galhos das árvores tapassem a visão. Ela fechou a janela e as cortinas, foi direto para o banheiro e procurou o frasco com os remédios que tencionava tomar. Ela trouxe o vidrinho para a cama e ficou alguns minutos passando-o de uma mão para outra.
Ela esperou até que Célia entrasse no quarto com um copo de leite e falasse sem para como sempre fazia. A bandeja ficou perto da cama, quando a empregada saiu. O pequeno gravador estava sobre a cama, mas havia um lençol sobre ele. A moça tinha ligado o aparelho algum tempo atrás, mas sem a intenção de ouvi-lo. Cristinne abriu o frasco de pegou algumas pílulas, ela levou a mão até a boca e com a outra o copo de leite morno.
- Crac!! A fita tinha terminado de passar e o aparelhou desligou automaticamente.
Ela se assustou com o barulho do gravador e algumas pílulas caíram sobre o lençol junto com umas gotas de leite. Cristinne limpou a boca ainda tentando segurar o restante dos comprimidos, remexeu o lençol e pegou o pequeno gravador. Ela ficou curiosa, colocou o fone no ouvido e religou o aparelho. Pensou em ouvi-lo enquanto os remédios faziam o efeito desejado.
No entanto, o que ouviu deixou Cristinne estarrecida. A moça deixou os comprimidos caírem sobre a cama e um mar de lágrimas caiu dos olhos.
- Jesus te ama de uma maneira que você não pode imaginar! Disse o jovem pregador iniciando a mensagem.
Cristinne deixou o copo escorregar de sua mão e o líquido sujou o chão e o tapete próximo a cama. Ela colocou a cabeça no travesseiro e ficou ouvindo o restante da mensagem. Não conseguia desgrudar do gravador. Ela chorava a cada instante que o pregador falava. “Ele e só ele pode mudar o rumo da tua vida, deixa Jesus entrar no teu coração...”
A moça virava-se de um lado para outro, encharcando de lágrimas a fronha do travesseiro. Quando a mensagem terminou, ela virou a fita e ouviu outra mensagem. Aquela voz insistia em falar com ela, dos seus medos, dos seus anseios, dos seus segredos. “Como poderia voltar a ser o que era?” perguntava em soluços. A voz respondia: “Jesus morreu na cruz pra te salvar, ele perdoa todos os teus pecados”. “Como pode amar alguém como eu” perguntava em seu coração. A voz dizia: “Você é preciosa para o Senhor, diga para ele, eu preciso de ti, eu preciso! Ele vai te ajudar!"
- “Eu preciso de ti, Senhor” Disse Cristinne mudando os rumos de sua vida.
(...)
Extraído do Romance: Cristinne de Marion Vaz
Livro protegido por direitos autorais.