A zero, de novo
Acordar a teu lado. Sair de um emaranhado quente de braços e pernas e ver, como um céu, que existes e me desejas. Ver que o nosso sexo também acordou como se saísse da morte para um ritual de força e vontade de viver. Vivamos. Deixa que te envolva e te abrace, que te tome como terra minha, que semeie em ti o trigo de amanhã e deixa que navegue no teu corpo, trincheira em que me salvo do nada para ser tudo, pedra, caminho, paraíso, voz do tempo, sol a pino... Queimemo-nos de novo. Tens sempre o gosto de aventura, forma de barco, quilha de navio mas o rumo é aquele que preciso para demandar a China sem sair da cama, como se o meu destino fosse uma onda da tua praia. Sigo-te pelo som rouco, pelo raspar dos murmúrios, pela força da maré. Tapo-te a boca com beijos e bebo-te como um licor que se derrama, pastoso, morno, recheio de campo e menta, de flor colhida perto de cascata, um doce de leite ou de nata. Assim.
Depois, volto ao zero, ao parado de horas que nunca mais terminam, ao trânsito onde ando como robot. Gestos, esgares, atitudes tudo em automatismo já gasto. A cabeça recusa esta porção do dia e faz de tudo para a não gravar. Chego a casa. Os cães chamam-me para o cumprimento. Levo a bolacha, divido as festas, sujo-me. Há coisa melhor que a nossa casa mesmo quando saibamos que vai continuar sem as obras, sem a prometida pintura, sem o sofá novo? É curta a verba e a melancolia nada tem a ver com isto. Acho que é do Outono, da voz profunda da terra a encolher-se sob as primeiras chuvadas, pressionada pelo frio. Há vento. Muitas vezes assobia nas portadas, na folga das janelas, na ramaria das árvores. Os pássaros vêm agora logo que a luz surge. Trazem fome e habituaram-se às sementes que ofereço, ao milho partido.
O que estarás fazendo a esta hora? Sinto que tens o banho tomado e já sais para o trabalho. Vestido verde sob o casaco cinzento? Lenço de seda e batom suave? Não importa. De qualquer maneira és bonita, sensual. Se ele te disser para ficares, fica. Se te disser que o trabalho exigirá o serão, aguenta e avisa-me. Se quiser mexer-te na mão, quase como sem querer, desconfia. São sempre assim, no começo da traição. Têm tudo, querem tudo, acham que merecem tudo o que não é seu só porque a propriedade alheia está limitada de poder. O pior disto é que não sei o que te possa aconselhar. A crise não propicia outro emprego com facilidade e ele, o Director, sabe disso. Mas gela, amor, arrepia-te, recusa a aproximação até que possas recusar sem ser descortês. Não resolve mas adia. Quem sabe se, por milagre, não surge uma alternativa a esse inferno?
Não imagino o que faria no teu lugar. Raras vezes me consigo imaginar a recusar alguém poderoso. Nunca ninguém assim me disse, Silva, traga a pasta dos projectos e prepare-se para uma noitada comigo. Baixe a luz central, coloque um CD de música clássica e fique aqui. Não tenha medo que não como ninguém. Uma mulher jamais actuaria assim…Se ele me pegasse na mão ficaria sem fôlego, sem reacção, sem palavras. Se me abraçasse, provavelmente responderia a murro e perderia o emprego. Poderia ainda dizer: fui posto na rua porque não aceitei o assédio do Director, porque não entro em minhoquices, porque sou muito macho. Bem sei que, quando não se gosta, ninguém se compatibiliza connosco e, portanto, na hora do abraço, também o podes agredir, bater a porta, sair. Sei que, os que o nosso corpo recusa, são anacrónicos, anti-naturais, gente de outro mundo. Até posso fazer um filho a alguém com quem, ao engano, me deite. Mas se o cheiro, o toque, o jeito de amar não me agradar, fica-me o bicho mole e encolhido, como uma coisa sem valor e sem préstimo. Já te contei isto? Acho que não. Se calhar nem valeria a pena. Acabas por saber tudo de mim. Pelo que te conto, pelo que adivinhas. O meu problema, na verdade, é o teu Director. O cabrão do homem poderia ser menos ousado, mais preso à educação, mas sei como todos perdem o verniz quando a coisa não lhes calha a contento.
Talvez seja eu a pôr-me a adivinhar nesta conversa contigo, imaginada, pois então! Logo, pontualmente, vais dizer-me que vens a caminho ou a pedir-me que vá ter contigo para o jantar. Iremos onde quiseres, como sempre. Mesa do canto, lugar discreto, comida boa, preço módico. Vais olhar-me como se quisesses gastar-me todo, assim de repente. Vais falar-me só o essencial. Ontem quase nem disseste nada mas foste doce, impressiva. Ainda sinto as tuas mãos nas minhas, o beijo que me queimou os dedos, o enlace quando saímos do carro e o resto que foi, excepcionalmente, bom. Para mim é sempre… Confesso que te achei diferente, como se algo de forte estivesse para acontecer e nem tu soubesses o quê. Nunca, antes, assim em clima de restaurante, me havias beijado as mãos. Isso era eu quem fazia, em qualquer lugar onde me apetecesse, onde se fizesse imperioso confirmar-te como única. Era uma espécie de confissão, de selo, de código. Depois disso garantia a nossa ligação para sempre, era como pensava, sabias?
Quase dez horas. Hoje não há jantar fora para ninguém. O trânsito flui normal e tu não chegas! Se ficaste para trabalhar à noite o combinado era teres dito qualquer coisa. Não disseste. Sempre tão cuidadosa com a minha tensão e, desta vez, não me poupas. Ah mulher, que te custava um aviso, um toque, ao menos uma mensagem minimal, daquelas que mandavas quando o teu Pai controlava até as vezes que respiravas? Sim, que te custava? Talvez as tuas tarefas não o permitam hoje. Nem entendo porque me altero. Confio em ti. Tu nunca me traíste…
A verdade é que passa das onze e qualquer serão termina antes para poupar as pessoas aos ditos do escritório. Mais meia hora e ligo eu, só para saber. Quem sabe se, com uma palavra tua me sereno, nem precisas dizer muito, hei-de sentir tudo logo que atendas. Conheço-te tão bem! Ainda não formulaste o pensamento e já eu te respondo, se for pergunta. É só por isso que me dói, que tenho medo de intrusos na nossa ligação, que mato quem se atravesse no nosso caminho… Vamos, liga, diz que estás bem e que me contas depois. Que vens a caminho, que estás quase a chegar.
Quando o telefone, por fim, tocou não era a tua voz. Pelo tom impessoal e quase solene das perguntas que me fizeram, senti que algo de muito pesado estaria a acontecer. Acidente, disseram. Ele morreu e tu ainda estavas no Bloco a lutar para viver. Havia poucas esperanças mas estavam a fazer o melhor. E o mundo ruiu na minha cabeça, agora bruscamente oca. O corpo rodou sem estabilidade e caí. Achei-me miseravelmente impotente, inconformado, ausente. E fiquei ali, sem rumo, sem solução, sem destino. Deste-me tudo. Como posso seguir sozinho?
As más notícias sucederam-se, em ritmo alucinante, depois disto. Ligaram do hospital, do teu Departamento, de casa de teus pais. O funeral passou sem que me desse conta da irreversibilidade desta despedida. Soube pela tua colega que trabalharam todos naquela noite e que, gentilmente, ofereceste boleia ao Director que, indisposto, não queria conduzir… O resto eu adivinho. Ele quis-te abraçar…
FIM