Sob a luz da lua

Marina, após as missas nos domingos passeia pela praça em frente à igreja. Não tem pressa de voltar para casa. Nem mesmo a companhia dos filhos consegue preencher o imenso vazio deixado pela morte do marido. Eles não percebem o seu sofrimento. O mais velho é bacharel em direito e cuida do patrimônio da família. O menor é secundarista.

Senta-se no banco da praça para observar as pessoas que passam. Sente inveja dos casais de braços dados, com ares de felicidade. Sem perceber, está olhando fixamente para as pessoas, o que pode ser considerado uma indiscrição. Um casal se aproxima, ela imagina que esteja irritado com a insistência do seu olhar,. Envergonhada e temendo que viesse cobrar explicações, lança mão de um jornal esquecido no banco e começa a ler os classificados. O casal acomoda-se ao seu lado, foi só um susto.

Recompõe-se com elegância, como se nada tivesse acontecido, e continua a ler o jornal. No meio de tantos anúncios um chama sua atenção, o de um rico fazendeiro querendo vender o seu escravo. Em destaque as qualidades do negro: 22 anos. Melhor trabalhador de raça que se pode desejar. e “Bonita figura”. Marina repete as palavras umas três vezes. Pouco depois Rodolfo, o filho mais velho, chega para buscá-la. Sobem no coche e fazem o caminho de volta para casa em absoluto silêncio. De vez em quando Marina abre o jornal e confere o anúncio e repete para si as qualidades do escravo.

Marina tem trinta e oito anos e a pele branca como a neve. Os olhos, negros como a noite, parecem esconder todos os mistérios do mundo. Os cabelos longos, bem cuidados, lhe davam o toque jovial, faziam-na parecer não os trinta e oito, mas apenas trinta. Marina havia casado aos dezesseis anos com o futuro político de oposição ao seu pai, o coronel Firmino. A união selou a paz na cidade e rendeu ao coronel a tão sonhada vaga no senado. Quanto ao marido, abandonou a política de vez para ser um marido exemplar, coisas inconciliáveis.

Numa de suas idas à Corte para tratar de negócios, o doutor João Batista, marido de Marina, sofre um acidente. Uma cobra assusta um dos cavalos de seu coche e a carruagem tomba num penhasco. Segundo o legista da cidade, ele teve morte instantânea, como se isso fosse consolo para a família.

Sentada na varanda com o jornal na mão, Marina via a possibilidade de ter aquele escravo. O serviço estava ficando muito pesado para os que trabalhavam na casa. Dois haviam sido alforriados, a casa já não estava tão limpa como sempre esteve, e não podia exigir muito dos demais. Leu novamente o anúncio e se levantou decidida a comprar o serviçal. Encaminhou-se até o endereço do anúncio e pediu para ver a mercadoria. O capataz voltou trazendo um bela espécime da raça negra. Ela mirava dos pés a cabeça, como se avaliasse uma mercadoria como outra qualquer, sabia que estava fazendo uma excelente aquisição, aquele era o melhor negro que já vira em toda a sua vida, e também o mais bonito.

Rodolfo estranhou quando viu Marina chegando em casa acompanhada de um novo escravo, afirmava ser uma extravagância comprar outro negro, com tantos escravos que possuíam , não necessitavam de mais nenhum do sexo masculino, afinal perderam duas mulheres, mas ela não deu continuidade à conversa, cuidou de encaminhar o escravo até a cozinha e mandou Rosinha lhe mostrar os seus afazeres dentro de casa.Rosinha passava os dias agradecendo não ser preciso mais fazer o serviço pesado.

- Sinhá Marina puxou a bondade do sinhozinho Joaquim, ô gente boa pra tratar nóis! – comentava. Ela viu Mariana nascer e sabe que naquela família os escravos são bem tratados. Não passava um dia sem que Marina o seguisse com os olhos. Bento, esse era o nome dele. Com seu jeito humilde e submisso, esmerava-se em fazer bem feito todos os serviços que lhe ordenavam. Apesar de ser jovem também, era bastante observador e já sentia os olhos que o acompanhavam queimar o seu corpo.

Rodolfo também sente admiração pelo novo escravo, pois além de ele fazer de tudo um pouco, às vezes o acompanhava nas idas à corte, À noite todos se reuniam na varanda para ouvir as histórias que Bento costumava contar do seu povo e das assombrações que rondavam as senzalas. Essa aproximação fez com que Rodolfo percebesse que sua família necessitava mais de sua atenção do que do “seu” dinheiro. Romão, o caçula, sempre ficava com medo, o que gerava alguns gracejos dos outros meninos. Nessa hora Rodolfo sempre estava por perto para colocar ordem e controlar a situação.

Marina sente que muita coisa mudou desde a chegada de Bento à sua casa. Não sabe explicar que espécie de encantamento possui aquele simples escravo que facilmente conquistara todos. Ela quase não consegue mais disfarçar o desejo que sente por ele. Não pensa em se casar novamente, essa idéia é inaceitável à sua família, mas continua viva, quer sentir-se amada novamente...

À noite, sem conseguir dormir, tomada que está por suas fantasias, Marina caminha dentro do próprio quarto. Sente um calor imenso brotar do seu interior, não consegue dominar seus desejos. Pega um leque e sai sem rumo pelos arredores da fazenda. Ela pára junto ao estábulo para contemplar melhor a lua cheia que ilumina todo o horizonte. Num ímpeto de liberdade total, deixa-se cair de costas na relva macia e abre os braços como se esperasse um grande abraço:

-Bento! .... Bento! – gritou para a lua

Um vulto sai do interior de uma das baias e lhe dá um tremendo susto. É Bento.

-Ouvi a senhora me chamar, estava cuidando do seu alazão preferido.

Marina ri, aliviada, olha para a lua como se agradecesse um presente recebido, estende-lhe a mão e o convida para ficar ao seu lado. Quando ele ia pronunciar algo, ela o cala com um demorado beijo. Naquele momento gestos falam mais que quaisquer palavras e são reciprocamente compreendidos. Sob a luz do luar realizou –se o desejo.

Luciana Netto
Enviado por Luciana Netto em 24/10/2010
Código do texto: T2576269
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