Ana e Cíntia

Naquela manhã de sábado, pensei em fazer algumas fotos do centro da cidade para testar a canon D40 que acabara de ganhar de meu filho. Peguei o metrô na estação Consolação em direção ao Paraíso onde faria a troca de linha e seguiria para a Sé. Meus pensamentos sobre a pontualidade e regularidade daquele meio de transporte, mesmo num sábado de manhã, foram interrompidos pelo carro que parou na plataforma à minha frente.

Bancos todos ocupados, amparei-me no guarda-corpo próximo a uma das portas. Foi quando notei Ana e Cíntia. Meu olhar encontrou primeiro Cíntia. Há cerca de um metro de mim, encostava-se na parede do vagão, logo ao lado da porta. Algo em sua aparência me confundiu: seus cabelos escuros, lisos e brilhantes, discretamente amarrados em rabo-de-cavalo, alguns fios soltos sobre a orelha e a testa, denotavam uma delicada cabeça feminina, os olhos – não os podia ver, ocultos por óculos escuros largos – cobriam-lhe boa parte da face, os lábios, sem sinal de batom, de um rosa pálido.

De pequena estatura, Cíntia vestia uma calça jeans escura e uma blusa preta de gola rolê com mangas compridas até o meio da palma da mão: corpo quase todo coberto. Encostada na parede, pernas esticadas, pés calçados por um all-stars e plantados no assoalho do vagão, como os garotos preferem fazer. Chamou-me a atenção a ausência de volumes corpóreos: seios imperceptíveis sob a grossa blusa, coxas retas, nenhuma saliência ventral: um corpo magro e liso. Em um relance poderia ser facilmente confundida com um menino.

Em ângulo com Cíntia, avistei Ana. Perna esquerda avançada em direção ao corpo recostado de Cíntia, braço esquerdo esticado segurando-se no guarda-corpo que compartilhávamos e o outro apoiado na parede do vagão. Sua posição cercava e ao mesmo tempo protegia a pequena Cíntia.

Aparentando ser alguns anos mais velha do que Cíntia, Ana parecia ser uma mulher madura; um pouco mais alta, cabelos igualmente pretos, não tão lisos e um pouco mais curtos, um toque avermelhado nos lábios, rosto arredondado, todo seu corpo era mais roliço, denunciando curvas e formas femininas. Também usava calça e blusa pretas. A roupa, no entanto, diferentemente de Cíntia, não ocultava; antes, realçava-lhe a silhueta, a blusa com generoso decote mostrava os contornos dos seios. Nenhum óculos escondiam-lhe os olhos que apresentavam uma expressão suave.

Continuei observando-as, pensando tratar-se, até esse momento, de duas amigas. Cheguei à estação Paraíso e concentrei-me em transferir-me para a linha azul que me levaria à Sé. Entrei no vagão e sentei-me no primeiro assento disponível; coincidentemente, ali estavam Ana e Cíntia, novamente alojadas no guarda-corpo próximo à porta e diante de mim.

Percebi agora um gesto carinhoso de Cíntia para Ana. Apenas um toque suave no peito da amiga respondido por um singelo sorriso. Cíntia parecia antecipar a separação que ocorreria minutos após o gesto carinhoso: encostou a cabeça no ombro de Ana e novamente sorriu. Ana passou-lhe a mão sobre o cabelo e sussurrou algo que não consegui ouvir. Quisera sacar da máquina fotográfica que trazia a tiracolo e fotografar o toque sutil, terno e discreto de Cíntia no peito de Ana; mais do que isso, quisera fotografar a aura daquele afeto transbordante flagrado sorrateiramente por mim. Senti-me como um ladrão que surrupia um momento íntimo de duas mulheres mas, a despeito da vergonha, persisti em meu olhar transgressor e obsceno.

Idéias passavam-me pela cabeça: Ana e Cíntia seriam amantes? Amigas, tão somente? Mãe e filha, apesar da pouca diferença de idade? Mãe e filho, a propósito de minha fantasia, agora descartada, de que Cíntia poderia se passar por um jovem? Ana, a mulher-que-contem e Cíntia, a criança-que-é-contida? Cada uma dessas imagens tocavam-me inevitavelmente, pois ali estava eu, transgressor, implicado em cada gesto, em cada imagem de ternura captada, em cada toque das mãos delicadas das duas mulheres, eu, observador tão inofensivo protegido pela discrição do olhar curioso. Nostálgico diante de uma manifestação de afeto em cena aberta.

O autofalante arrancou-me do devaneio, anunciando a próxima estação: Liberdade. Ana, mais uma vez, acariciou os cabelos de Cíntia e pela primeira vez pude entender suas palavras, numa leitura labial quase improvável. Penso ter vistouvido: “Já vou...”. A porta se abriu e Ana sumiu na multidão que se apinhava à entrada do vagão. Cíntia aproveitou um banco que vagara bem à minha frente e pude olhá-la por mais alguns minutos antes que chegasse a minha vez de desembarcar. Tirou os óculos escuros e então vi seus olhos sombreados por duas intensas olheiras. Coisa de quem passara a noite em claro. Teriam vindo, as duas amigas, da balada da noite de sexta-feira e ali se despedido? Teriam passado a noite entre os atos de amor e as discussões tão frequentes entre os amantes? Um tom soturno abateu-lhe ainda mais o semblante, algo indecifrável, doído, meio que sem esperança. Um ar de despedida e de um não saber até quando.

Keats
Enviado por Keats em 22/10/2010
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