A sereno de Nego

"Tive que sair, não sou agoniada, sou uma senhora determinada, ainda hoje tenho coragem. Agradeço todo dia, obrigada, Jesus, três vezes."

Finalmente consegui desenterrar meu marido. Trinta anos no cemitério da fazenda. Queria

Ele na cidade perto de mim. Onde pudesse visitá-lo. Mudar um corpo de lugar não é fácil. Agora meu espirito se acalma. Não consegui ver o transporte. Não quero machucar o retrato de Nego. No novo túmulo, apenas ele. Somente ele.

Quando Nego morreu, pensei que a coragem tinha acabado no mundo.

Homem bom demais. Mas Deus levou. Lembro que era bem cedo, acordei e fiz o café. Gostava de tomar café

Enquanto afiava a enxada. Trabalhava nas lavouras de Seu Tecilo, bicho ruim desgraçado!. Nunca pagou

O que me devia. Desdete foi quem mais sofreu. Gostava demais de Nego. Nunca passava direto na estrada.

- Neeeego, já chegou? – esse grito era o anuncio do final do dia.

Era como relógio que se acertava com a resposta de meu Nego. Lá eles ficavam sentado no toco, falando bobagens e dando risada. Os meninos gostavam de escutar. Depois me trazia muitas perguntas que eu não sabia responder.

Se existe algum paraíso pra mim, ficou preso nesse tempo. Depois tudo acabou. Era um farturão, tanto feijão, milho, farinha. No final de semana era tanta gente em casa. As coisas não cabiam no peito. Nem apreciava direito, de tanto medo que tinha de acabar. Talvez tenha acabado por isso. Depois foi uma luta. Criar filhos, sem trabalho, sem nada. As coisas que Nego deixou só deu pra um ano. O desgraçado de Tecilo nem se preocupou. Nego nasceu e morreu nessa fazenda. Meus filhos tinham direitos. Criou tudo jogado, sem pai e sem escola. O único continuo estudar foi Zé. Parecido com o pai, Naquela epoca o único homem de Mangerona que sabia escrever.

Lembro que no final de semana era tanta gente pedindo escrita. Querendo cartas. Ele gostava. Sabia da vida de todo mundo e guardava tudo como um segredo. Na cabeceira da cama tinha um livro, que ele estava sempre escrevendo.

Eu me sentia diferente das mulheres de lá. Não ligava pra festas. Gostava de ficar em casa cuidando de meus filhos. Não sabia de nada e nem precisava saber. Nego cuidava de tudo. Tudo estava no lugar. Dava atenção pros meninos, ajudava na escola, ouvia minhas queixas

E ficavamos muitas vezes até os barulhos dos galos começar . Ele me contava de quando criança ou da roça.

- Nego, seu nariz tá preto.

- É do candeeiro!

Ele nem prestava atenção e continuava conversando. Olhava suas mãos sobre a mesa. A unha preta. Os dedos e as mãos cheios de calos e os olhos brilhando. Esquecia dele e me escapava para o fogo dançando em seus olhos. E via toda cozinha atras deles.

- Nego, quando você tá na roça fica pensando em mim?

- Cada coisa no seu canto, Garrincha! Tá tão bonita a roça. Esse ano choveu muito. Dá gosto!

Depois que ele se foi nunca casei. Não consegui me interessar por ninguém, até apareceu alguns. Nego ainda vive dentro de mim. Não preciso de homem nenhum. Não posso perder o Nego. Suas lembranças são vivas, mas tão dançantes. Parece instáveis. Nada justifica isso. Parecem incompletas. Pede olho e nariz. E cada vez que minha memória me assombra conheço um pouco mais dele. De vez em quando os meninos vem e diz coisas que eu não sabia, ou que estava ali e eu de tanto amor não percebia.

Morreu com 28 anos. Deveria ser proibido alguém morrer tão cedo, com tanto mistério ainda dentro dele. Parar a vida assim, desse jeito. Nem parece respeito. Tenho saudades.

Na semana que a cobra pegou ele a gente foi tomar banho na mula assada. Dentro do rio

com a boca beirando a água.

- Nego, você gosta de mim?

- Que pergunta, Garrincha. Gosto muito de você. A mãe dos meus filhos!

- Assim não, Nego. Parece que é obrigação desse jeito.

- Não precisa duvidar não... To aqui nessa água te olhando como já faço há dez anos.

Nessa hora meu coração ficou tão mole. Deveria ser despedida. Na beira do rio, ele sentado, enxuguei seu cabelo e penteei. Ficou parado com os olhos fechado enquanto eu ajeitava seus cabelos com minhas mãos. Abriu os olhos e me olhou de um jeito tão diferente

Não volta eu fui controlando o cavalo. Ele atrás,quieto.

- O que você tá pensando, Nego?

- Só tô olhando as terras. De vez em quando me dá umas vontades... Aqui parece tão pequeno.

- Ir pra onde, Nego? Nossa vida sempre foi aqui.

- Eu sei disso, Garrincha. Mas acho que por isso que dá vontade. Tem tanta coisa prá lá!

- Nego, posso te perguntar uma coisa?

- O que?

- O que tanto você escreve naquele livro?

Ele nem respondeu. Mudou de assunto. Guardava tudo que escrevia no baú. Não era trancado. Mas eu não mexia. Tinha medo dele descobrir. Não queria trair sua confiança. Mania com esse livro!

- Vai levar o livro prá roça?

- Sim

- Não dá tempo, Nego. Deixa pra escrever quando chegar?

- Dá sim!. Depois do almoço gosto de rabiscar umas coisas.

-

Dez anos com esse livro no final das noites. Era como uma segunda esposa , que eu aceitava. Só queria saber o que ele falava com ela.....

Na hora de fechar o caixão, Deusdete colocou o livro enrolado na mortalha, sob as sua mãos.

Ele foi embora abraçado a única coisa do mundo que me separava dele...

Agora com seu livro em mão sei o segredo de meu Nego. Ele sabia eu que amava, também,

O mundo que se esparramava alem do horizonte.