Legítima Defesa - Primeira Parte
Legitima Defesa:
PRIMEIRA PARTE
O Inesperado:
Vinte e três horas e trinta e cinco minutos. Chovia, parecia que a natureza chorava! Sofia já impaciente olhava o relógio, muito preocupada. Estava na sala com o olhar fixo no portão da garagem esperando seu marido entrar a qualquer momento... Todos os sábados eram assim. Mas este tinha algo que Sofia achava diferente. Há minutos antes seu marido havia ligado dando desculpas, pedindo que ela não se preocupasse. Mais uma vez o telefone tocou, quebrando o silencio da noite. Atenderam no quarto, onde jogavam vídeo-game suas duas filhas com um de seus primos, o filho mais velho de sua irmã Laura, o Amon.
- Mamãe, mamãe! Atende? É pra senhora, é o tio Estevam.
Ela atende. Era o irmão mais novo de seu marido. Não era comum ligarem para ela quando ele, seu esposo, não estava em casa. Lembrou-se que ele havia dito que iria falar com o irmão. Seu cunhado indagou, muito ansioso:
- Sofia, o João esta em casa?
- Não, eu já estou preocupada, porque ele ainda não chegou. Sem que ela terminasse de falar ele interveio:
- Ele anda bebendo? Você sabe dizer?
- Não, ele me disse que anda trabalhando.
- Venha para o hospital! Venha para o hospital!
Seu cunhado, apressado, falava e repetia a mesma coisa como um louco.
Sofia repetia a pergunta dele.
- Para o hospital?! Para o hospital?!
O choque passado por ela é análogo àquele que sentimos ao levar uma pancada e o cérebro só consegue distribuir a dor e não sabe onde está doendo. Enfim ela pergunta o que houve, demonstrando muito medo em sua voz. Seu cunhado diz que não sabe de nada, e acrescenta:
- Venha para a assistência municipal. Desligou.
Sofia levanta-se do sofá com as duas mãos na cabeça como se quisesse ajudar o cérebro a pensar; olhando para cima, como se procurasse Deus, gritando: - João?... O que você estava fazendo? Meu Deus... O João no hospital? Pela voz assustada do irmão, é muito sério o que houve com ele, Sofia concluía...
O pânico se apoderou de Sofia, descontrolando-a totalmente... Ela escuta uns gritos, eram suas filhas e seu sobrinho, trazendo-a à realidade:
- Mamãe? Mamãe? Tia? Tia? O que houve? Sofia baixa a cabeça e ver as três crianças apavoradas. Ela entende que precisa se controlar porque as crianças não vão entender o que está acontecendo, resolve pegá-las em suas mãos e levá-las para o quarto onde poderia acomodá-las melhor para, assim, explicar o que ela acabara de ouvir do seu cunhado, mas antes pediu que rezassem um pai nosso. As crianças, com as mãos dadas, rezaram em círculo... Sofia explica que o pai delas está no hospital, que irá trazê-lo para casa, na tentativa de acalmá-los. A filha mais nova pergunta:
- Mamãe o carro virou?
Sofia responde passando calma e segurança para a filha:
- Não sei. O tio de vocês não sabe o que houve. Ele pediu que eu fosse para o hospital. Vamos ficar calmos. Eu vou saber como ele está e logo vou ligar para vocês.
“Os meninos eram crianças. A mais velha, doze anos; a mais nova, dez anos; e o meu sobrinho, onze anos”
Aquele pai nosso foi como um bálsamo, eles pararam de chorar e cuidaram de me ajudar, ligando para o táxi.
Fomos para a calçada aguardar que o táxi chegasse, sentindo apenas o vento frio batendo em nossos rostos. A rua estava deserta, já passava da zero hora do dia vinte de dezembro de mil novecentos e noventa e sete. Olhavá-mos as casas vizinhas a nossa e para os poucos carros que passavam. Era tudo tão triste, uma sensação de falsa calma, era como a calma da guerra: os entrincheirados que aguardavam o pior.
Sofia sentia uma vontade de fugir... Ela queria ir embora. Sempre fora assim. Detestava hospitais, aniversários, casamentos, funerais, tudo que exigisse formalidades e satisfações - a sociedade formadora ou geradora destes grupos que geralmente são gerenciados por maiorias falsas, superficiais, sem nada de verdadeiro e original, enfim, a liberdade não é padronizada; pensava ela.
Suas filhas e seu sobrinho pareciam múmias enrolados em lençóis, parados, calados e pálidos. Sua tia brigando porque o táxi demorava muito. Até que um carro pára, era o táxi que haviam pedido. Sofia entra no carro dando a mão para eles como se pedisse calma.Eles ficaram olhando o carro sair até dobrar a esquina. O motorista pergunta qual seria o destino. Ela, com certeza, não estava certa para onde iria, pois qual das Assistências Municipais? Eram muitas na cidade, seu cunhado não disse qual era, e além do mais o dinheiro que Sofia tinha era pouco, todas eram muito distantes de onde Sofia se encontrava, o motorista insiste:
- Para onde senhora? Sofia pede que ele pare. Ela tenta rearranjar as ideias, lembra-se de uma irmã de seu marido, que mora mais próximo do que qualquer uma das Assistências. “É melhor ir para a casa dela”, pensou, e assim falou para o motorista que já se encontrava impaciente.
Seguia o motorista pelo percurso ensinado por Sofia, aquelas ruas pareciam um túnel do tempo, fazendo com que ela revivesse em sua mente os últimos trinta anos vividos – como se o seu cérebro quisesse resgatar os seus erros, estando ele deitado no divã de um psiquiatra a procura de si mesmo, encontrando-se e reconhecendo a sua insignificância; comprovando que só os sábios não andam contra a correnteza dos rios.
Sua Infância:
O carro deslizava no asfalto e ela nas suas lembranças se refugiava, tentando suavizar a sua dor no reflexo revelador das águas de um monólogo.
Até completar quinze anos, eu vivia no paraíso. Nasci num sitio distante, a seis quilômetros do centro de uma cidadezinha. Primeira filha de um casal pobre, simples e dignos. Desta união nasceram mais quatro filhos, duas meninas e os gêmeos. Um dos gêmeos morreu.
Morávamos numa casa grande, limpa, com alpendre, arrumada: cadeiras de vime na sala, piso de cimento encerado, quartos grande, camas e cortinas, guarda-roupas embutidos sem porta e tapetes confeccionados pela minha mãe ao pé da cama. Crista leiras na sala de jantar social que minha mãe só usava para visitas. Na sala de jantar da diária um filtro, quartinhas e mesa. Na cozinha social um fogão a gás butano e pia. Na cozinha da diária um enorme fogão a lenha, pilão de pedra, prensa de fazer queijo e banquinhos de madeira. Um banheiro com sanitário branco dentro de casa e outro fora no terreiro.
Minha mãe era uma pessoa muito esclarecida; sabia ler escrever muito bem. Meu pai era analfabeto. Minha mãe nos ensinou as primeiras letras inclusive meu pai aprendeu a ler e escrever com as lições dela. Minha tia a irmã mais velha de minha mãe, que não casou-se, ficando assim morando conosco desde quando nasci, muito tempo, já, não sou tão jovem, hoje em mil novecentos e noventa e sete, ela, minha tia mora comigo desde mil novecentos e cinqüenta e dois e ela nasceu em 1914, é tempo! Todos os dias lia para mim um livro muito volumoso com letras grandes e amarelas na capa dura escrito “NOVA SELETA” e também a Bíblia.
As arvores, os animais e os pássaros eram nossos companheiros preferidos. O riacho que passava por detrás da casa, os pés de algodão, milho, a oiticica. Foi nesta oiticica que passei minha infância. Lá era o meu playground: balanços altos, balanços baixos, o espalha brasa e o avião. Naquele avião eu viajava para todos os locais, aqueles lugares que eu sonhava que existia. O mundo não se resumia só ali. Eu ficava triste quando pensava que o mundo era muito grande: se fosse só aqui o mundo?! Eu sou tão feliz! Mas que nada, de algum lugar eu vim e foi para alguma coisa fazer, e ser. Nada é por acaso, isto eu tenho certeza...
Meus primos quando iam nos visitar, falavam das coisas que existiam na cidade grande. Riam de mim quando eu os convidava para conhecer os brinquedos da minha oiticica, dizendo:
- Minha prima, você precisa conhecer um brinquedo de verdade. - Eu pensava: brinquedos de verdade? Certamente sejam objetos feitos pelo homem onde destroem alguma coisa da natureza, provocando retornos irreversíveis, não sabia explicar, sentia algo que repugnava, pois nada poderia ser melhor do que a minha oiticica.
Cresci naquele ambiente, vendo minha mãe cuidar da casa, criando galinhas, capotes, patos, perus. Bordando, fazendo flores e costurando nossas roupas. Meu pai plantando algodão, feijão, mandioca, milho e cuidando da criação de animais: as vacas, as abelhas e as ovelhas. Havia muitas arvores frutífera. Era muita fartura. Pela manhã cedinho eu e meus irmãos ficávamos na porteira do curral aguardando o leite mugido.
Ate meus doze anos, tínhamos o básico, éramos felizes. Falávamos pouco em dinheiro.Passaram pouco a importância dele, ou eu não captei por não sentir falta dele. Só depois que me matricularam naquele colégio é que passei a observar as diferenças sociais. Para mim que tinha apenas doze anos era difícil discerni injustiça social, porem senti na pele que algo estava errado comigo, isto eu sentia, pois, de cara entendi que o dinheiro não é apenas para ser usado nas necessidades e sim as necessidades impõe o limite do preço de cada um. O valor de cada um depende do que tem em dinheiro. Complicou, pois ser só gente não importa muito não. Meu pai não ia poder pagar aquele colégio, procurei mostrar que ia estudar ate o fim. Como? Tirando notas boas, conseguindo uma bolsa, pois, caí na simpatia de uma das feiras que sempre arranjavam uma sala de aula de crianças para eu ajudá-la, assim fui mostrando para mim mesma que eu valia mais do que o dinheiro.
Um dia estava à aula terminando, levantei e olhei pela janela. A freira que estava dando aula, pára e pergunta:
- Sofia, esta olhando se seu pai já chegou no jumento para te buscar? - Observei que todos riram.
A escola é a continuação do lar. É o segundo lar do individuo. No primeiro lar, passaram para mim respeito uns pelos outros, só porque éramos seres humanos, minha mãe nos humanizou fundamentada nos valores morais, cristãos, na ética da cidadania, para sermos cidadãos do futuro teríamos que ser honestos, dignos e trabalhadores. Nunca querer nada de ninguém, só o que ganhássemos com suor do rosto. Se ninguém aprendeu, não é problema dela, pois ela fez a sua parte.
No meu segundo lar, passaram para mim que o respeito era conquistado pelo ter. O ser humano fez confusão em tudo, “confundiu o Garibaldi com o balde do gari”, a “oração com a pomba do frei Damião”, o livre-arbítrio que Deus deu, uma das maiores provas do amor de Deus por nos, com libertinagem e prostituição, enfim, conscientizar que ser e ter não tem nada a ver, é difícil, vamos ter que nascer muitas vezes para ser o que Deus quer que sejamos.
Sofia fugia da realidade. Ela não queria pensar no João, pelo menos ate chegar no hospital.
Lembrei de mais um acontecimento engraçado daqueles tempos de colégio. Voltávamos do recreio quando uma loira arrogante e bonita estava aos gritos pedindo para a freira mandar olhar as mochilas, porque haviam roubado seu material. A freira mandou fazer a fila para revistar as bolsas. Peguei minha bolsa e fui para fila. Quando chegou na minha vez a freira pegou a minha bolsa e encontrou uma parte do material da loira dentro. Fiquei envergonhada, as meninas riam, outras, diziam que iam pedir para me tirar de perto delas. Eu sabia que era inocente, como ia provar? A freira mandou-me para direção. A diretora era uma freira grande e inteligente. Mulherão da fala grossa e muito moralista. Ela disse:
- Não se preocupe, vou colocar um espião secreto e descobrir quem está mentindo. Se você está falando a verdade ela vai brincar com você novamente, colocando o material na sua mochila, se você estiver mentindo, não irá acontecer mais, pois você sabe que ela descobriu, que é você que mexe no material das alunas, então você não irá com certeza mexer em nada, é obvio, vá para a sua sala de aula. Passaram-se uns quinze dias, o ambiente na sala ficou muito hostil, quase insuportável, mas não deixei de assistir minhas aulas, apenas uma menina ficou do meu lado, dando-me total apoio; ela foi amiga mesma. Quando voltávamos do recreio, lá estava a loira arrogante com a mesma conversa. Aconteceu tudo outra vez. No exato momento, a diretora entra e ordena:
- Sentem-se, todas. Você?! - apontando para a loira arrogante e disse: Venha comigo.
A classe toda ficou perplexa, a própria loira pôs seu material na minha bolsa para mim incriminar. Era constante a perseguição dela. Sempre procurava me ridicularizar, me humilhar, na fila que fazíamos quando vínhamos para sala, ou quando íamos para o recreio, ela pisava no meu calcanhar até rasgar minha meias, ou sujava um absorvente com mertiolate vermelho e jogava nas minhas pernas, etc. Até que um dia, eu não me encontrava muito bem e reagi, neste dia ela me agrediu com palavras; falou, falou, e eu calada, acho que era isso que fazia ela ficar tão irada. Falou na minha mãe, assim de graça, eu pedi apenas que ela repetisse e ela prontamente repetiu, eu aberturei-a, segurando-a pela gravata (a farda era uma blusa branca com uma gravata azul e a saia de preguinhas também azul), ate deixá-la só de sutiã tipo uma combinação, a blusa eu rasguei com os dentes, não sobrou nada. Fui suspensa por três dias e ela? O pai ia deixar e pegar e a mãe ficava no colégio como um cão de guarda. Eu gostei, se soubesse que só assim resolvia o problema não tinha dado oportunidade para ela. Infelizmente a violência domina. Eu não aceito usar de violência para dar moral. Moral é respeito. Violência gera violência.
Primeiro Encontro:
Sofia lembra do primeiro encontro com João: havia terminado as aulas, por volta das onze horas, ainda no mês de março do ano de mil novecentos e sessenta e sete, (eu apenas com quinze anos), quando descia as escadas vi aquele rapaz encostado no carro. Aproximei, queria vê-lo de frente, pois ate então via suas costas, era alto, blusa enrolada, amassada pela posição do banco do carro. Dei a volta e olhei bem para o seu rosto, tinha olhos verdes, era moreno, gostei, não sei bem o que senti, nunca havia me interessado por ninguém. Fiquei aguardando sua passagem no portão da saída, queria vê-lo mais uma vez. Achei que ele nem olhou para mim.
Iniciei minha caminhada, eu vinha e voltava a pé para o colégio, já havia caminhado uns dois quilômetros, por aquela estrada asfaltada, quente e cheia de buracos em seu acostamento, por onde os carros forçavam a gente ter que andar ou parar enquanto que eles passavam quase que por cima da gente. Parou um carro, olhei, era ele, oferecendo carona. Fiquei ali parada, e eu que pensei que ele nem olhou para mim, emocionada sem saber o que dizer. A surpresa foi muito grande. Pensei: como ele sabia onde eu morava? Sem dizer nada abri a porta do carro e entrei.
A paquera começou. Todos os dias ele ia deixar as irmãs e voltava para me buscar. Era apenas um olhar e um agradecimento na margem do rio. Quando ele não vinha eu já sentia falta; era um sentimento esquisito, como se já gostasse dele.
Um dia, eu estava na quadra do colégio jogando vôlei; fazia parte do time oficial do colégio, ganhei medalhas de melhor saque nos campeonatos na Bahia, Recife e Piauí. Uma prima dele que fazia parte do time diz:
- Sofia, o João pediu para eu te levar lá pra casa neste fim de semana, ele quer falar contigo. Topa? – Eu disse pra ela que ia falar com minha mãe. Saí da quadra e fui para o banheiro pensando naquele jeito dele; calado, batia a porta do carro com muita força, corria muito, colocava musica com volume alto, parecia uma pessoa rude, grosseira, mas quando lembrava do seu olhar o meu coração se enchia de emoção, ternura, carinho, ele tinha um jeito de olhar, uma expressão de comunicar, que não havíamos ainda conversado nada e parecia que tudo já havia sido dito, era uma cumplicidade quando nos olhávamos que as palavras perdiam totalmente o sentido.
Cheguei em casa, falei sobre o convite da Flavia e mamãe deixou.
No sábado a noite nos arrumamos e fomos para a principal avenida. Lá era o ponto de encontro dos jovens da cidade. As meninas ficavam circulando e os meninos parados observando-as. Próximo da avenida tinha uma amplificadora, onde os meninos colocavam mensagens para as meninas que eles queriam namorar. Muitos namoros e até casamentos se concretizaram por este meio.
Foi neste sábado que nos encontramos. Era já nos meados do mês de setembro de mil novecentos e sessenta e sete, ele tinha dezenove anos e eu quinze, até que enfim íamos conversar, acredito eu. Lembro até da roupa que ele vestia. Uma calça preta e a blusa verde escuro, mangas cumpridas e a gola rolê. Um charme... Eu estava com um vestido estampado tipo Gabriela cravo e canela de Jorge amado. Caía bem para mim. Eu era muito esbelta, pernas grossas, alta e de uns olhos alegres e lindos (é chato falar de si mesmo).
Ficamos os três ali parados calados. Flavia observou que estava sobrando, dizendo:
- Eu não vou ficar segurando vela - riu e despediu-se.
Ficamos olhando um para o outro, para mim já estava de bom tamanho, era muito bom olhar para ele. Pensei, e o nome dele? E o meu, será que ele sabe. Ele mim convida para irmos ao grêmio, era um lugar mais calmo e podíamos dançar. Eu disse:
- Meu nome é Sofia e o seu?
- Me chamam por um apelido, mas meu nome é João.
Assim que entramos, ele foi logo pedindo para dançarmos. Foi o primeiro contato mais próximo, depois de quase seis meses que havíamos nos conhecido. Apenas dançamos. Depois nos sentamos. Ele timidamente perguntou se eu queria namorá-lo. Eu respondi que queria. Ficamos ali pertinho um do outro só olhando as pessoas dançando. Ele me convidou para irmos passar o domingo em uma bica, dizendo que o banho lá era muito bom.
No domingo fomos para o banho na bica. O cenário encantava e seduzia até aqueles que não gostavam de natureza, os urbanos radicais. Foi inesquecível. Estávamos apaixonados, tenho certeza. Eu sentia vontade de abraçá-lo e beijá-lo. Não tinha coragem de tomar iniciativa, sentia vergonha e temia, minha criação foi daquelas que a mulher que fizesse isto, tomasse a iniciativa, não tinha valor, o homem não queria para um relacionamento sério. Eu via no seu olhar o desejo... Corremos atrás um do outro, empurramo-nos dentro d’água, ele me molhou, eu tirei a blusa dele e em cada movimento feito, que deslizasse um toque um no outro era como uma descarga elétrica, que passava de um para o outro. Não saiu o beijo tão esperado.
A perseguição:
Passamos o ano de mil novecentos e sessenta e sete e sessenta e oito, assim; ele me dando carona do colégio para a margem do rio, nos fins de semana um por mês minha mãe deixava eu ir para a casa da Flavia. Lembro do primeiro beijo, quando pôs a mão no meu ombro, pegou na minha mão, ele fazia as coisas com tanto respeito que eu me sentia tão segura que ele me amava, era uma sensação tão gostosa, um prazer tão grande por uma atitude tão pequena, e o beijo dele? Ele começava apenas com um roçar de lábios, tinha um hálito tão gostoso, enfim, foram muitas emoções. “Não importa se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi” (Roberto Carlos).
Uns dias depois, a Flavia chegou para mim muito assustada e disse:
- Sofia, a mãe do João descobriu o namoro de vocês. Ela deu um castigo horrível a ele. Trancou todas as roupas dele no cofre e mudou o segredo. Deixou o coitado só de calção e descalço. Ela disse que é para ele te esquecer e o castigo vai durar ate ele não se lembrar mais de ti.
Eu fiquei arrasada. E agora? Eu era a única responsável pelo sofrimento do rapaz. A Flavia continuou; - Deixa eu terminar o que eu ouvi daquela minha tia doida. Ela disse que não criou ele para se enrabichar por uma pobretona “molambenta” como tu.
Meus pais souberam da proibição e disseram:
- Eles não são melhores do que nós, porque tudo isto? Nós também não queremos este namoro – Fiquei sendo vigiada como se fosse uma criminosa, nunca pensei que amar fosse crime. Meus pais não queriam que eu fosse humilhada.
Chegaram as férias. Fiquei em casa sem poder ir à cidade. Iniciaram as aulas, março de mil novecentos e sessenta e nove, ao chegar no colégio vi que ele estava com suas irmãs, cheguei perto dele e chamei-o, ele veio falar comigo perguntando se eu tinha recebido o bilhete dele, eu respondi que não. Ele admirando-se disse:
- Você não soube do que aconteceu comigo?
- Não.
- Você passou todos esses meses sem me procurar? Não sentiu saudades? – perguntou João surpreso. Eu não podia continuar conversando, ia perder minha aula, entrei as pressas sem dar mais tempo para nada. Não estava na sala de aula, só o corpo, pois a cabeça estava no João, queria saber o que tinha acontecido.
Depois da aula quando saí, procurei-o no pátio, vi o carro, fui ate lá, não era ele, era a mãe dele que estava ali, ao me ver foi logo dizendo:
- Decepcionada? Você deixe meu filho em paz, ele não é para seu bico, conheça seu lugar: molambenta...
Eu me retirei, sem conter as lágrimas. Fui caminhando para casa com a cabeça nas nuvens. Quando eu ia chegando na margem do rio, já para atravessá-lo, escuto um barulho de carro, olho para trás e vejo o João. Havia parado o carro e vinha a pé, eu paro e fico esperando. Quando ele chega, me abraça, me beija e diz:
- Eu não agüentava mais de tanta saudade.Só pensei:”eu também não sabia o que fazer pois a saudade era muito maior, do que a raiva que acabara de sentir, ao ouvir as agressões da velha mãe dele”. Ele disse:
- Vá para a casa da Flavia, vamos ficar bem juntinhos, dançar a noite toda.
No outro dia, vou para a casa da Flavia, saímos, estávamos sentados na avenida, quando a mãe dele pára o jipe, e o chama aos gritos dando um escândalo. O João levanta-se, entra no carro e vai embora...
Flavia me contou que sua tia comprou passagens para o João ir embora, ela assustada dizia:
- Sofia só viajando ele vai passar três dias, é muito longe para onde ele vai. – afirmava Flavia preocupada. Um ano se passou. Eu passei todo pensando no João.
Março de mil novecentos e setenta, João me fez uma surpresa, quando cheguei na margem do rio ele estava me esperando, mais forte, um ano que nós não nos víamos. Estava muito cansada daquela situação de disse me disse, dele ficar neste sofrimento, as irmãs intrigadas com ele, a mãe pressionando, eu estava decidida a tomar outro rumo em minha vida, assim eu, com certeza iria me sentir mais feliz e ia vê-lo mais livre. Ele ficava em cima do muro, jamais assumiria a nossa relação, eu não queria dividir, eu só queria somar. Nós éramos muito jovens, eu tinha dezoito anos e ele vinte e dois, daríamos um tempo enquanto a poeira baixasse. Quando falei para ele sobre o que estava pensando ele chorou e disse que me amava e que estava precisando apenas de uma oportunidade para trabalhar, ficar independente, aí sim, iríamos cuidar de nossas vidas. Matando as formigas e os mosquitos que tinham demais na margem do rio, mete a mão no bolso e tira um estojo preto bonito e disse:
- Comprei para você. – peguei o estojo, abri, lá estava um lindo relógio, tirei-o e ele colocou no meu braço. – Ficou lindo – eu disse, balançando o braço como se testasse se caía ou não, ele riu e me abraçou. Mas uma vez trocamos aquele beijo tão gostoso que só ele sabia dar, ah! Lembrei que não conhecia outro.
Saí do colégio, não vi o João. Minha mãe pediu para ir depois da aula na casa de uma irmã dela, era no centro da cidade. Estou indo em direção ao centro quando escuto uns gritos; - Pára, pára aí, sua... eu sei que o João te deu um relógio mas não é teu!
Olhei para trás, era uma das irmãs do João que também tinha saído do colégio e estava atrás de mim quase correndo para me tomar o relógio, eu também apressei o passo e olhando para trás, ela estava me alcançando, comecei a correr, até chegar na minha tia. Entrei e já com o portão fechado, vi que ela passou sem me alcançar. Minha tia vendo que eu estava puxando pelo ar, ofegante, perguntou o que houve e eu apenas narrei rapidamente o ocorrido. Minha tia disse que eu devia telefonar para ele e devolver o relógio, para assim evitar confusão. Peguei o telefone e liguei pedindo que nos encontrássemos na casa de tia Vanda. Logo ele chegou e eu entreguei o relógio. Ele não queria aceitar. Ficou olhando para o chão sem dar uma palavra, demonstrando muita raiva. Eu insisti dizendo:
- Receba, é para nosso bem e tem mais, eu quero muito você, mas vou ter que tomar uma atitude, chega, eu acho melhor parar por aqui enquanto ainda podemos sufocar essa paixão, amor, sei lá, este sentimento tão lindo. Ele, pede para não fazermos isto conosco. Eu dando uma de durona disse:
- É preciso, não temos mais nada – afirmei.
Depois eu soube que ele chegou em casa, reuniu seu pessoal e pegando o relógio jogou no chão, quebrando-o todo. A pessoa que estava lá e viu tudo; disse que todos correram para pegar os
pedacinhos que sobraram do relógio.
Eu estava decidida, vou esquecer o João...(não sei como, mais vou).
Já, há, alguns meses, eu trabalhava na estatística (posto de coleta do IBGE), sozinha, meu chefe mim orientava pelo telefone, ele não podia viajar, era muito ocupado e como estávamos em mil novecentos e setenta e os recenseamentos são feitos de dez em dez anos, então começariam em junho a contagem das pessoas do nosso país. Assim, meu chefe nomeou um chefe imediato e eu seria a ajudante dele. Fizemos o estágio juntos, ele era muito simpático, solteiro, mais velho do que eu uns oito anos, eu tinha 18 e ele uns 26 anos, bem mais maduro, inteligente, educado e charmoso; riso lindo, não fazia muito o meu tipo, era de estatura baixa, mais falava bem, e tinha um andar calmo e seguro.
Trabalhamos juntos uns quatro meses, o que nos aproximou mais, eu queria seguir ao pé da letra o ditado popular “só se esquece um grande amor com outro” e o Armando Braga era o ideal, rapaz trabalhador, sua família; eram pessoas abertas, alegres e eu me dava muito bem com a senhora sua mãe, uma senhora sincera, comunicativa, educada, nos relacionávamos como gente.
Por volta do mês de outubro ao chegar no posto de coleta o Armando pediu para eu ficar mais um pouco depois do expediente que precisava falar comigo. Fiquei aguardando o que o chefe queria. Quando todo o movimento terminou, ele pergunta se eu queria ir a festa com ele, eu respondi que iria sim. Fomos à festa e ele me pede em namoro. Namoramos durante quatro anos (1970 a 1974). Ele era carinhoso, atencioso, delicado, amoroso, enfim, o que toda mulher pede a Deus, um homem dos sonhos. Foi fácil transferir o que eu sentia pelo João para o Armando.(pelo menos foi o que pensei). O João também arranjou uma namorada, era uma enfermeira.
Em 1974, eu comecei a sentir o Armando distante, não era mais tão amoroso como antes, entendo que ele cansou-se, claro, eu não adiantava nem um crédito sexual, era apenas beijos, beijos e beijos. O homem quer mais. Descobri que ele tinha outra, sofri muito, muito mesmo, o nosso namoro foi lindo. A forma de como eu descobri tudo que estava acontecendo foi muito dura. Ele falava de mim nas mesas dos bares, nas rodas com os amigos dizia que o meu cabelo era carapinha (ruim), falava que tinha vergonha de se apresentar em sociedade comigo. Riam, riam quando ele dizia que queria uma mulher loira, um dos amigos dizia:
- E como ela vai ser loira?!
Enfim, e muitas outras coisas do mesmo nível. Foi difícil acreditar em tanta baixaria, mais eram todas verdades. Ainda lembro agora o que eu senti naquele dia; é como se houvessem me obrigado a comer lombriga crua e viva. Meu Deus se pudesse juntar o João à família do Armando era perfeição demais, ninguém merece, tudo tem um preço. Pensando bem, juntando o Armando na família do João, eu acho que por pior que aqueles lá sejam, ainda iam perder muito, eles com certeza ainda são melhores, pois dizem na frente suas maldades, são transparentes e o Armando? Que é falso! Demonstra educação, fineza, atenção, carinho, tudo fingimento e covardia, pois nunca notei durante quatro anos nenhuma falha naquela criatura ou eu estava apaixonada? Pois a paixão é cega. O amor? É transparente. Foi isto que fez eu sempre ver tudo sobre o João? E não ver nada sobre o Armando?
O João passou esses quatro anos desfilando nas ruas com a namorada dele, era de gosto da família, era enfermeira chefe do Hospital, vinha de outra cidade, loira, feia, “não era ciúme”,é porque a mulher era desarrumada mesmo. Eu posso ter os cabelos ruins, mais sou esbelta, elegante, charmosa, cintura fina, pernas grossas, rosto lindo; etc. Não importa o que digam, o que importa é o que eu acho de mim, eu mim amo, e sou mais eu em tudo. Será um pouco de despeito? Não, é amor sim.
Após quatro anos sem nos falar fui procurar o João. Ele ressentido, diz que não quer saber de conversa. Eu insisto perguntando se ele havia me esquecido, porque eu não o esquecia. Estávamos numa calçada, ele ia na frente e eu atrás, disfarçando que nem nos conhecíamos. Ele disse:
- Vá procurar seu namorado.
- Eu não tenho mais ninguém, ele acabou tudo - respondi. O João parou, virou-se para trás e ficamos olhando um para o outro, como se nos encontrássemos no deserto e não houvesse ninguém ao nosso redor, que pena que não era assim, estávamos em frente a um banco, sendo dia de pagamento dos idosos e o movimento era muito grande.
- Fala alguma coisa, vai ficar como uma estátua? - Perguntei.
- Quer se encontrar comigo? - Disse ele.
- E a tua namorada? - Indaguei.
- Meu Deus se ela souber que eu estou aqui conversando contigo, ela morre - disse confuso.
- É bom! Porque tu não vai ter o trabalho de terminar o namoro - insultei sorrindo.
- Mais eu não posso fazer isto com ela - argumentou sem me olhar.
- Tudo bem, fique com ela e mim deixe em paz. - Saí tão furiosa que Deus é quem estava mim levando.
Durante toda a caminhada que fiz ate chegar em casa, meu coração dizia que ele continuava mim amando, eu sentia uma segurança tão grande em relação ao sentimento dele por mim. Já pelo Armando era muito diferente, eu não sentia segurança, não sei se por ter um beijo frio, um abraço solto; era carinhoso, era delicado, amoroso, mais passava uma superficialidade no olhar que muitas vezes mim deixava muito infeliz, pois era um relacionamento sem cumplicidade, quando ficávamos em silêncio eu sentia angustia e notava que ele sentia nojo de mim, não era aquela química que rolava comigo e o João que quanto mais calados ficávamos mais pintava clima de tesão, sabe aquela sensação de estarmos dentro um do outro sem nunca ter tido relação sexual, vim descobrir o que sentia, quando fiz sexo com ele, ai eu entendi que aquela sensação prazerosa e tão gostosa já era as preliminares de um ato de amor mesmo, sem ele está dentro de mim, eu já chegava ao orgasmo. (era o KREL, já no número cinco). É, eu era virgem, sobre este assunto eu sentia que só valeria à pena deixar de ser se fosse por amor. Quebrar o tabu da virgindade, este preconceito que tanto castra as mulheres e leva-as para a infelicidade de tantos lares.
Sofia Volta a Realidade:
O motorista pára o carro, me despertando daqueles pensamentos, tão bons! Recordar o que passou, vivenciar naquele presente que jamais pensei naquele momento que seria motivo de no meu futuro, este agora tão cheio de dor, iria me proporcionar consolo, forças por assim dizer, para encarar esta realidade que antes mim encheste de sonhos e hoje esmaga!
- Senhora! Senhora! Hei, é aqui a rua – O motorista já impaciente insiste.
- Certo, certo - descendo do carro abro a porta e bem enfrente vejo o portão da garagem e o carro da minha cunhada, entro e fico bem ao pé da janela que dar para o quarto dela. Olho pelos postigos de uma janela e vejo ela deitada na cama: assistindo televisão, toda vestida de roupa social e calçada de sandálias altas, como se fosse sair ou esperasse alguém, já que ela não sabia que eu ia. É o que eu pensava. Começo a bater e chamar:
- Florinda? Florinda? Sou eu a mulher do João...
Ela levantou-se e veio abrir a porta, demonstrando admiração perguntou:
- O que houve? – eu sem saber também, respondi.
- Não sei, o Estevão ligou dizendo que eu fosse para a Assistência Municipal e desligou sem dizer nada e nem qual seria delas. Eu lembrei de vir aqui saber se você pode ir comigo saber onde ele está.
- Tudo bem, vamos – Falou dando um leve e profundo suspiro.
Enquanto a cunhada de Sofia fechava as portas, Sofia vai pagar o
táxi. Volta e espera. As duas entram no carro e Florinda pergunta:
- Sofia o João morreu? – Sofia responde que não, seu cunhado só disse que ele estava no hospital e pergunta:
- Você já esta sabendo é que ele morreu?
- Não, não, eu estou sabendo o que você esta – afirma Florinda.
Ela está tremendo, sente um frio estranho. É como se visse o carro de seu marido virado. É uma mistura de sentimentos. Olhando para Florinda pensa: será que ela esta fingindo? Porque ela já estava toda pronta? Alguma coisa já esta sabendo, o que esta acontecendo, o que fizeram com seu marido.
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Sofia volta a pensar no passado, não queria saber da realidade, sua cunhada iria dirigir um bom percurso, dava tempo ela recordar bastante.
Eu já estava em casa há um bom tempo, quando mamãe me chama. Estávamos morando na cidade, papai havia comprado uma casinha, mas continuava com o sitio. Ficou mas confortável, caminhávamos bem menos para o colégio. Fui atender o chamado de minha mãe e era o João que queria falar comigo. (eu estava com vinte e um e ele com vinte cinco anos).
- Diga João! – Falei rindo sem nenhuma responsabilidade.
- Eu preciso falar com você – com as duas mãos no bolso parecia mais moreno, os olhos mais verdes, estava lindo, mais alto, mais forte, mais esbelto, o cabelo era igual ao meu, mais eu achava lindo, aquele pescoço sexy e o andar era torto, o ombro esquerdo, um charme!
- Já está falando! – Argumentei desinteressada.
- Eu falei com a Cristina (sua namorada), pedi para darmos um tempo, quero dar mais uma chance a nós dois. O que você acha? Quer?
- Quero, eu estava morrendo de saudade de você.
Começamos tudo de novo. Dessa vez foi mais forte, ele estava mais esperto, mais atrevido, foram dois meses de muito amasso, sem sexo. Eu queria, ele queria, nós queríamos mas nos controlávamos, temíamos alguma coisa dar errado e não podermos assumir as conseqüências. Era tortura demais.
Até que um dia estávamos no grêmio e a senhora sua mãe descobriu, foi horrível, ela chegou com a ex dele (a enfermeira) a tira colo, pode? Pode! Ela pode tudo, levou, levou meu amor, como sempre, ele foi como um cordeirinho sem atitude nenhuma. Aquilo já era nojento...
A senhora sua mãe comprou uma passagem para ele ir embora, muito longe, muito mais longe do que daquelas outras vezes. Isto aconteceu em mil novecentos e setenta e quatro, ele foi para Brasília. A primeira foi pro Rio de Janeiro e a segunda para São Paulo. É mole? A senhora sua mãe tinha pânico de mim e eu dela.
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Sempre na lembrança publicado 12/08/2010 por fatima fonseca em http://www.webartigos.com
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