O MERCADOR DE PIRANHAS

O sol a pino não deixava dúvidas sobre o adiantado da hora. O calor intenso escaldava impiedoso a areia do deserto que circundava o povoado de El-Goléa em pleno Sahara no coração da Argélia. Temperatura acima de cinquenta graus Celsius. O frescor de água que vinha dos poços no oásis deixava os camelos irrequietos. A caravana havia caminhado por dois dias praticamente sem nenhum descanso. Al Maeda tinha pressa em entregar a preciosa carga ao emissário do Sheik Farud. Como mercador sabia da importância de ter palavra quanto aos prazos e a qualidade de sua mercadoria. Afinal, os preços eram bem cobrados. Portanto a entrega tinha que ser pontual e a mercadoria fresca e corresponder às expectativas do comprador.
Al Maeda enxugou a testa com as costas da mão e acelerou o passo para retirar a mercadoria da corcova do dromedário. Átma descobriu os olhos intensamente verdes, e desceu de sua montaria. Estava ansiosa para conhecer seu novo senhor. Devia ser belo e muito rico, pois pagará uma fortuna a seus pais.
O mercador a conduziu a uma tenda ladeada de centenárias tamareiras para que se banhasse e fizesse uma breve refeição. Recomendou que usasse o melhor perfume e que não economizasse. O Sheik era apaixonado por essência de jasmim, e quem sabe não lhe daria uma boa recompensa, além do preço previamente acertado, é lógico.
Tudo correra como de costume. Mercadoria entregue, pagamento recebido. Todos felizes. Ou... Ou... Nem todos. O Sheik queria uma virgem, e Átma já conhecera outros haréns. Foi um foge prá cá um corre prá lá e no final, por obra e graça de Alá, Al Maeda e Átma desembarcaram em Manaus. Passaportes e certidão de casamento adquiridos em Argel davam credibilidade ao casal recém chegado.
A aventura vai começar...
Por um grande milagre da literatura os humanos não têm barreira quanto à língua. Graças a tal milagre, Al Maeda perguntou ao primeiro ribeirinho que conheceu na nova terra:
- Por Alá... Onde posso vender Átma?
- Ora... Na Zona Franca é claro. Lá se vende de tudo.
E lá se foi o nosso bom mercador buscar novos fregueses para sua mercadoria.
A estréia da favorita do Sheik Farud, e, sua espetacular dança do ventre, causou furor no “Nigth Club Toca da Piranha”. O contrato firmado com Seu Tinhorão havia rendido uma boa soma que garantiu o sossego de Al Maeda e Átma por alguns meses. Os shows eram diários e os fregueses para depois da dança formavam filas intermináveis. Rara a noite que não houvesse confusão. Alguns clientes pagavam por lugar melhor na fila outros queriam mais uma vez, o que era expressamente proibido por Tinhorão.
- Quer mais? Volta amanhã e paga nova consumação, nova taxa de uso do quarto e mais bebidas. Isto aqui é um Nigth Club não casa da Mãe Joana. Bradava Tinhorão dando safanões nos mais atrevidos...
Al Maeda comia, bebia e dormia por conta da casa. Átma dançava, cozinhava, dava e faturava para todos da casa... Cansou... Recusou-se... Não dançaria mais... O resto... Quem sabe?
Não houve acordo, Tinhorão sentiu imensamente a perda da fogosa dançarina e principalmente da dinheirama que ela rendia. Al Maeda queria uma indenização pelo desgaste de sua mercadoria, mas após uma conversa reservada e acalorada com Tinhorão, achou estar de bom tamanho sair sem ter que pagar aluguel de sua estada por ali, ou pior ainda, deixar Átma viúva.
Copacabana, o fio dental de Átma deslumbrava os banhistas lambuzados de bronzeador e areia que rodeavam o casal exótico vendedores de chá.
- Chá de flor de aníz com mel de abelha rainha da Criméia, altamente afrodisíaco, pregava Al Maeda enquanto Átma esboçava uma provocante dança do ventre entre os possíveis clientes.
Vendia... Que nem água... Ou melhor, que nem chá.
Átma entregava os copos da bebida aos clientes enquanto, Al Maeda preparava mais da poção milagrosa e recebia o pagamento. Não é preciso dizer que a dançarina agradava mais que a bebida, embora não se soubesse ao certo qual fazia os clientes transpirarem mais. Aquele chá fervendo no calorão das areias cariocas ou Átma na barraca de plástico improvisada para receber seus clientes. A tenda foi montada ali mesmo, na praia, debaixo de um sol escaldante. Para quem veio dos desertos de El-Goléa a temperatura era bem agradável. Entretanto, os clientes, que eram muitos, suavam frio com a dança de Átma e transpiravam em bicas em baixo do plástico escaldado pelo sol a pino.
Foram dois anos de muita dança do ventre e de muitos ventres dançando e muito dinheiro arrecadado. Até o chá perdeu a vez para caipirinhas e cervejas geladíssimas acompanhadas de camarões empanados e iscas de peixe a dorê. A barraca no fundo do quiosque recebeu ventiladores e umidificadores de ar... Porém... Nem tudo dura para sempre... O Sargento Penadão, (de alma penada), ex-militar, expulso da corporação por corrupção, passou a fazer a “segurança” da área e exigia exclusividade com a dançarina toda sexta-feira mais uma comissão do faturamento da moça. Foram infindáveis brigas, incontáveis agressões e inúmeras visita a delegacia de policia... Muito cliente sumiu e o dinheiro escasseou... Hora de procurar outras paragens...
Rua 25 de Março, São Paulo, o paraíso do oriente, das oportunidades e do dinheiro. O negócio foi custoso, muita pechincha, muita conversa, uma papelada imensa e complicada, mas por fim, o negócio foi fechado. Lojinha de tecidos e tapetes comprada. Proprietário Al Maeda... Já não tão esbelta e com alguns cabelos brancos, assume a gerência da loja acumulando os cargos de garota propaganda e vendedora principal Átma, a dançarina dos oásis do Sahara. A ex-pretendida de sheiks e rufiões transformava-se agora em Senhora Al Maeda comerciante de respeito do oriente paulistano... Dança do ventre agora... Só para patrícios abastados e de famílias conhecidas.
Seis meses se passaram e Átma aprenderá muito sobre os negócios. Transformara-se em exímia negociante, sabia como ninguém cativar os clientes e dobrar o faturamento. Al Maeda vivia feito um marajá, passou a tragar charutos importados e a saborear os melhores licores de tâmara e arak. Há algum tempo vivia muito atarefado no depósito, nos fundos da loja, ocupava-se com afinco em ensinar a dança do ventre para a nova funcionária. Esmeralda, uma mulata de olhos negros, pele reluzente e corpo de odalisca, digna dos mais sofisticados haréns das mil e uma noites. A nova dançarina adaptara-se maravilhosamente bem ao ritmo dos tambores árabes.
Por vezes arriscava alguns passos exibindo-se para atrair clientes que visitavam o estabelecimento. Nestas ocasiões, Al Maeda perdia a tranqüilidade, principalmente quando Esmeralda tornava-se muito atrevida na lida com algum freguês... A moça tinha destino certo... Não podia ser com qualquer um...
Apesar dos ciúmes e das reclamações de Átma, Esmeralda foi treinada, enfeitada, perfumada e educada com muito esmero na cultura argelina. Aprendera a dançar, a apreciar os véus e as jóias... Seu corpo rescendia a jasmim e seu olhar tornara-se misterioso... Estava pronta... Digna de um Sheik...
Duas passagens para a Argélia foram compradas. Carregadores e camelos foram contratados para a travessia do deserto rumo a El-Goléa, coração do Sahara.
Incenso, mirra e perfume de jasmim foram comprados em abundância.
O telegrama foi confirmado pelo emissário do Sheik Farud.
Enfim a mercadoria seria entregue...
A palavra de um mercador representa sua honra... Jamais poderia deixar de ser cumprida... Palavras de Alá.
Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 05/10/2010
Reeditado em 20/08/2012
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