Amor Eterno e Complicado

Naquela noite eu dirigia a mais de cem por hora numa rodovia muito perigosa, chovia forte, só enxergava pontos luminosos e placas de sinalização em minha frente. Estava há duas ou três noites sem dormir. Meus olhos piscavam mais espaçadamente, até fecharem-se por completo. E essa foi minha última lembrança antes que eu morresse.

...

Três anos antes eu a conheci numa festa de carnaval e por alguns segundos foi como se não existisse mais nada além dela e as estrelas num plano de fundo. Ela dançava desajeitada, embora muito confiante, sem órbita, nem tempo, nem gravidade. As primeiras palavras que me falou foram espontâneas e ofegantes.

_Olá, eu sou a Dani.

De repente a agulha do relógio voltou a girar e, o chão serviu de apoio aos seus pequenos pés quando ela pulou, embalada pela dança, ao contrário do que eu supunha, voltou para o mesmo lugar de onde saira, a terra firme.

_Oi, tá me escutando? Perguntava.

E daquele dia em diante nos vimos muitas outras vezes e vivemos bons momentos juntos, mas nunca como homem e mulher. A mesma força que me atirava em sua direção, a retraia como dois ímãs com a mesma polaridade. Sua presença me fazia algum bem, mas sua omissão, muito mal.

...

Quando eu abri os olhos a primeira pessoa que vi foi uma bela e pequenina criança com os olhos tão puros que não pareciam humanos. Ela segurava uma rosa na mão.

_Toma! Disse-me, ela.

Aos poucos a imagem desfocada e o som embaralhado ficaram nítidos. Minha mãe chorava desesperada, meu pai tentava acalmá-la, mas pela primeira vez eu vi chorar, feito uma criança desprotegida.

O discurso de um amigo foi muito pertinente.

_Ele nos deixa nessa silenciosa manhã, sob esse sol forte, esse dia bonito. Mas eu sinto que ele está aqui, ouvindo cada palavra, vendo cada um de nós chorar por ele. E até convencido de que foi muito amado, não foi, é, e sempre será.

Eu dei alguns passos até meu caixão e observei meu próprio rosto, pálido e estático.

_Eu estou morto! (pensei).

_Isso o assusta? Interrogou-me o pequeno anjo.

Apontei para meu plasma que vibrava, vibrava como a água de uma píscina, quando uma folha cai sobre ela, e respondi.

_Isso é o que me assusta!

_Tinha muitos amigos, as pessoas te adoravam...

Pensei por alguns segundos em alguém e da sala frígida onde ocorreu o velório, partimos para um jardim colorido.

(Quando estamos mortos não existem regras). Além dessa constatação, fiz outra: O amor e a morte são iguais! São forças capazes de ignorar quaisquer outras.

_Sinto a falta de alguém aqui. Disse isso de cabeça baixa e como se quisesse se justificar o anjo me respondeu:

_Eu soube da sua morte por telefone. Meu celular tocou às quatro e quinze da manhã. Acho que desmaiei. Lembrei da pessoa que você era, a mais intrigante, também a mais inocente, que já conheci...

Chorando continuou:

_E depois pensei como seria minha vida sem você. Só ai percebi o quanto você me preenche e dá sentido pra minha existência. Acordei com o barulho de um trovão e achei que tudo fosse um pesadelo. Entretanto, olhei para o meu celular e realmente havia recebido àquela ligação às quatro e quinze da manhã. Nem me vesti, desci as escadas correndo e tropecei num degrau. Acho que nem encontraram meu corpo ainda.

Enquanto ela falava, segurando em minhas mãos, senti suas mãos ficando maiores. Aquele pequeno e inocente anjo, transformou-se em uma mulher muito difícil, minha Dani.

Ela me beijou a boca com uma ternura que eu não conhecia. E desbravamos a eternidade juntos. Passamos para o outro plano de mãos dadas e Deus apenas sorriu como quem diz; Porque perdem tanto tempo para aceitarem o que eu lhes dei sem cobrar nada? A felicidade em todos os sentidos.

Guilherme Sodré
Enviado por Guilherme Sodré em 30/09/2010
Reeditado em 30/09/2010
Código do texto: T2529949