Um bolo de amor
" UM BOLO DE AMOR "
Há muito tempo, numa pequena e pacata cidade do interior, haviam duas lindas quintas onde moravam duas famílias. A primeira propriedade rural, mais próxima da auto-estrada, era famosa por sua produção de flores e por um vasto pomar de suculentas frutas. Já a segunda, tinha como fonte de renda a pecuária, com criações de boi e carneiro, além de uma pequena granja. Na primeira casa moravam um casal de meia-idade e sua única filha, moça jovem, bela e prendada. Na outra, situação semelhante. Os proprietários eram um homem e uma mulher de uns quarenta anos cada, casados e pais de um virtuoso mancebo.
Em uma manhã de primavera das mais viçosas e aprazíveis, a donzela caminhava pelo campo colhendo lindas flores. Seu cesto se enchia de doces aromas, enquanto, entre um e outro lírio, suas mãos apanhavam uma fruta fresca que lhe saciava a fome. Do outro lado da cerca, com igual esmero e contentamento, o moço apascentava o gado de seu pai. Então, em meio a um potente raio solar, dois olhares se fundiram no ar...Um fitou o outro, e em segundos um carinho singular e especial brotou mutuamente; entre sorrisos e risos contidos, eles prosearam por alguns minutos, antes de partirem para outros afazeres, longe da divisa entre as chácaras.
Dia após dia, a dama e o cavalheiro conversavam à cerca, e conforme passava a primavera, o deleite recíproco com a presença alheia já tornara-se intenso e os encontros, antes casuais, eram marcados e iniciados de modo pontual. Os primeiros toques e carinhos, o primeiro abraço, o primeiro beijo, tudo aconteceu sob a atmosfera campestre, entre animais e flores, aromas e sabores da natureza. Semanas e meses se seguiam e o casal, exceto raras discordâncias de pensamento e opinião, mantinha-se em genuína paz.
Em certa tarde de inverno, o rapaz foi visitar sua namorada, conforme combinado durante o jantar à luz de velas da noite anterior. Adentrando a casa de sua amada, cumprimentou seus sogros de maneira calorosa, e de igual forma foi correspondido, pois ambas as famílias aprovavam o relacionamento. Foi até a cozinha e lá estava sua amada, retirando do forno à lenha um lindo bolo, que exalava adocicado perfume. Beijaram-se demoradamente e se encaminharam à sala de jantar, onde os quatro presentes lancharam em clima descontraído e amistoso. Ao fim da refeição, o casal aproveitou o horário próximo ao ocaso e pôs-se a passear pelos jardins em torno da casa. Entre uma e outra palavra terna, o moço teceu inúmeros elogios à guloseima feita por sua parceira, que alegrou-se com as lisonjas, e comentou que tratava-se do primeiro prato que aprendera a fazer e era também seu predileto. Estimulada pelas palavras que ouvira quanto à sua capacidade culinária, a jovem passou a fazer o bolo com maior frequência, especialmente em datas especiais, quando as duas famílias se reuniam.
Alternavam-se as estações e os enamorados iam estreitando a união. E o bolo era, sempre, figura presente quando das visitas do rapaz à moça. Chegava ele e lá estava ela terminando a confecção do doce e iniciando o ritual romântico que se finalizava com a caminhada entre as flores. Os costumeiros encontros estalaram na mente do mancebo uma ideia, que ele pôs em prática no lanche vespertino seguinte. Ao adentrar sua casa, ele foi logo até sua mãe e rogou que lhe ensinasse a preparar o famigerado bolo que sua namorada fazia. O intuito era surpreendê-la na tarde posterior, e para isso, após receber os ensinamentos, atravessou a madrugada até conseguir alcançar o ápice culinário necessário para executar o plano.
Após o almoço de domingo, o apaixonado retornou à cozinha e preparou a guloseima com ímpar e inédita destreza. Aprontou-se mais rápido do que de costume, transferiu o bolo da velha travessa de sua mãe para um lindo prato de porcelana e saiu apressado para encontrar sua amada. Lá chegando, deparou-se com a mesma cena inicial das visitas anteriores: sua namorada retirava o idêntico doce do forno à lenha. Então, segurou firme o caríssimo recipiente que trouxera e levou-o para trás de sua cintura; a moça, notando sua silenciosa chegada, correu em sua direção e tascou-lhe um envolvente ósculo. Exatamente em seguida, o rapaz revelou o que trazia nas mãos, deixando sua namorada surpresa e radiante, a ponto de cubrí-lo com mais beijos e prendê-lo em longos abraços.
É evidente que não era o bolo, rigosoramente igual ao que fazia, que a havia deixado alegre, mas sim o significado, pois se tratava de um enorme gesto de carinho e dedicação. Durante o lanche vespertino, a donzela ficava maravilhada com cada detalhe relatado por seu querido companheiro sobre a guloseima que fizera. A observação, o aprendizado com a mãe, a madrugada de experiências na cozinha, os detalhes finais; tudo era lindo, delicado, romântico. O restante do dia e da noite foi indescritível, tudo parecia se alinhar em perfeição de amor, carinho e generosidade. Quando se despediram, perto da meia-noite, a iminente saudade deu lugar a um sentimento poderoso de segurança, pois tudo se fazia completo.
Durante os outros dias da semana, como de costume, se encontravam esporádica e brevemente, já que estavam sempre atarefados em seus lares. No entanto, no domingo, a magia era reestabelecida e o casal passava horas juntos em harmonioso dia. Ocorreu que, entusiasmado pelo êxito do que fizera na semana anterior, o mancebo pôs-se novamente na cozinha, ao amanhecer dominical, e preparou o famigerado bolo. Como era de se imaginar, a reedição da surpresa causou efeito equivalente à primeira, deixando sua namorada jubilosa com tamanha atenciosidade; o dia se passou e, novamente, foi perfeito.
Um semana depois e a moça despertou eufórica no “dia santo”, dirigindo-se à cozinha de sua casa e, a fim de retribuir os feitos de seu amado, fez o tal doce. Mas, curiosamente, do outro lado da cerca, lá estava o rapaz fazendo exatamente a mesma coisa. Pouco antes de o sol ficar a pino, ele apontou à porta da casa de sua amada trazendo nas mãos, ocultas pelo próprio corpo, o adocicado alimento e nos lábios um farto sorriso. Ela, de modo idêntico, foi até ele também escondendo propositalmente o que cozinhara; numa fração de segundo paradoxal, a dama viu que seu parceiro trazia consigo, outra vez, o bolo que fizera, e seu semblante tornou-se vago, sem emoção. Já não era mais uma surpresa afável, mas uma sufocante e competitiva maneira de presentear.
A jovem indagou ao moço sobre o motivo pelo qual repetira tudo aquilo e, sem compreender sua decepção, ele lhe disse que o fizera pois imaginava que era aquilo que ela esperava dele. A donzela sacudiu a cabeça negativamente: ele estava errado. Pois não era o fato de cozinhar seu prato predileto que a encantava, mas sua atenção, seu carinho; não era o que ele fazia, mas como ele fazia. A iminente discussão não foi necessária, uma vez que, desapontado, o rapaz ajeitou o pano de prato que cobria seu bolo, virou as costas lentamente e saiu, enquanto a jovem permaneceu em pé, imóvel, mirando sua retirada. Pela primeira vez se desentenderam daquele modo – e por qual bobagem! O resto do domingo foi melancólico para ambos: ele ficou no pasto, acompanhado de seus animais e mirando o céu, enquanto ela trancafiou-se no quarto; estavam confusos, magoados.
A semana seguinte foi também tristonha; só se viram de relance, e não queriam se falar. Ele não compreendia a rejeição, e ela se sentia menosprezada, pois pensava que tudo que fizera a ele não tinha valor, já que o mesmo parecia não permitir mais que ela o surpreendesse. “Eu fiz o melhor, mas ela não quis”, murmurava ele. “Eu quis fazer o melhor, mas ele não deixou”, pensava ela. As flores que colhiam já não expeliam suave aroma, as frutas já não eram suculentas, o toque do vento ardia na pele, o sol era um carrasco e as noites, exímias torturadoras. O amor parecia gemer baixinho sobre um derradeiro fio de esperança; e ela, ainda pulsante, preencheu o coração do rapaz com uma ternura inédita e uma singular coragem. Então, de madrugada, ele redigiu uma breve, objetiva e carinhosa carta, pedindo que ela o recebesse no almoço de domingo, como sempre foi, e a deixou por debaixo da porta de entrada da casa de sua companheira. Pela manhã, quando saía para colher as primeiras laranjas do dia, a moça avistou a correspondência. Ao terminar de ler, ela já pranteava, unindo arrependimento, júbilo e a tal esperança.
A donzela correu até sua cozinha, deixando a cesta cair e as laranjas se esfacelarem no chão na sala-de-estar. Rapidamente, lavou as mãos, cingiu-se com o avental e começou a preparar a refeição dominical como um grande pintor delineia formas em sua tela, como um grande músico compõe uma rapsódia, ou como um grande escritor cria uma realidade paralela mais bela que aquela em que vivemos. Sua destreza era quase sobrenatural... O amor lhe fazia mover mãos, braços, pernas, de lá para cá, de cá para lá...
Do outro lado da cerca, em seus aposentos, o jovem se aprontava, esperando ansiosamente que sua amada o tivesse aceitado como visita para o almoço do dia. Quando o sol se posicionou no centro do céu, ele deixou sua casa em direção à de sua namorada, e a caminhada de menos de um minuto pareceu durar séculos. O tempo parava a cada segundo, permitindo que seu coração e sua mente duelassem a cada passo na relva – era o sentimento da esperança e o pensamento da rejeição. Mas toda a história que vivera com sua parceira o fez seguir, com um valente sorriso estampado na face.
À porta, o mancebo refugou; uma, duas, três vezes. Até que seu coração impulsionou seu destro braço a esticar-se e tocar a madeira com suficiente violência. Do lado de dentro, a moça sentiu as ondas sonoras das batidas de seu amado invadir seus ouvidos e, finalizando o último detalhe da refeição que preparou, lançou-se à entrada e abriu a porta. Como sempre foi, até o tempo parou, pronto para assistir o reencontro. Olhares se chocaram no ar, calafrios subiam pelas costas, os corações pulsavam em ritmo aleatório e potente.
A angústia parecia cessar quando o moço tomou iniciativa e moveu seus braços, que estavam postos atrás do corpo; mas para a donzela, algo familiar estava ocorrendo. “Será que ele está com o bolo nas mãos de novo?”, pensou ela, com o semblante alegre sendo transformado em decepção.
Ele, sorrindo em calmaria, trazia realmente algo em suas mãos: uma linda tulipa para selar a reconciliação; pois sabia que poderia encantá-la de diversas formas, inclusive permitindo sempre que ela o encantasse...