Noite de Inverno, em Julho.

Theo concordou em caminhar com ela no shopping, a esmo. Não era o tipo de coisa que gostasse de fazer, mas com ela ...tudo bem. Mulheres sempre emprestaram um certo brilho à sua opacidade. Bonitas, feias, magras ou gordas, não importa, se fossem mulheres, bastava. Seu tédio acumulado com o mundo masculino já se avizinhava do limite. Conversar com mulheres, ter algumas como amigas, tornava esse limite um pouco mais elástico, atenuando sua intolerância com questões machistas que o irritavam profundamente.

Dizem que sua família sempre foi matriarcal e que, perdendo a mãe em seu nascimento, venerava sua imagem até hoje. Essa seria, segundo ele, uma explicação mais que aceitável para levá-lo a assumir esse jeito de ser, mas não diria nada, absolutamente nada, grifo dele, a respeito da forma de ser em si. Como se o acaso que levou à formação do fato, morte da mãe, pudesse depor a favor da validade dele prosseguir existindo, gostar de mulheres. Seria o mesmo que dizer a alguém, que acidentalmente aprendeu a andar de bicicleta, que ele só continua a fazê-lo por ter aprendido acidentalmente. Alguns filósofos sairiam do túmulo para assombrar os autores de uma lógica como essa.

Amores? Bem, teve alguns. Algumas dessas amigas fizeram amor com ele. Não tinha como objetivo levá-las para a cama, mas, vez por outra, acontecia. De uns tempos para cá, ele vinha evitando esse tipo de intimidade, pois perdia o foco das outras que também gostava. Some-se a isso o fato de sexo, nas suas estatísticas e para sua decepção, abreviar ou concluir suas relações. Com poucas exceções, a grossa maioria das mulheres que lhe quiseram na cama, perdeu o interesse na relação como um todo. Matava a curiosidade, só isso. Outras, no entanto, mantinham apenas a cama na relação, pois diziam que nisso ele era muito bom. Algumas poucas, muito poucas, sadiamente viam a cama como parte de um processo natural, posterior à mesa de um bar ou lanchonete, poltrona de um cinema ou banco de uma praça. Theo gostava de camas assim, quando vinham depois de mesas, poltronas e bancos, conseqüentes a um refinamento justo de uma reciprocidade crescente. Esse era o caso de Alice, que o convidou ao shopping para andar a esmo.

Pararam na frente de uma loja no primeiro andar. Loja para ele, joalheria para ela. Uma bela e respeitável joalheria local. Alice não era disso, mas empurrando-o delicadamente pela cintura, o fez entrar:

- Vamos ver os preços das alianças? Só ver.

- A esmo no shopping, ein? Bem que eu estava achando esquisito esse passeio. – disse ele, arregalando o olho com o dedo indicador.

- Poxa! Eu não lhe convidaria a vir numa joalheria, caso quisesse mesmo que você viesse. A esmo foi uma idéia melhor. Não fica bravo comigo. – disse com um eficiente beicinho no comigo.

Já dentro da loja, iniciou suas pesquisas: preços, quilates, formatos, planos de pagamento, etc. A cada pergunta de Alice, a vendedora dirigia um olhar a ele, adicionando comentários plásticos e industrializados do tipo há, há....ela lhe fisgou...que bonitinho. Justo a quem, a ele, que detestava esse tipo de coisa. Essas expressões lhe soavam tão comerciais e enlatadas, que até hoje, após tantos anos de vida, ainda não havia conseguido arrumar algum antídoto eficaz contra o número de contrações, que seu estômago tinha, quando as ouvia. Começou a achar tudo aquilo ridículo e infantil e, visivelmente indisposto, fugiu até o café expresso mais próximo. Porém, não conseguiu evitar que Alice tirasse a medida de seu dedo.

- Ok, resmungou. Espero você no café.

Tomou um puro-curto e, como ela se demorava, pediu outro. Passou o tempo procurando, discretamente, se distrair com as pessoas à sua volta. Por algum motivo, priorizou casais. Uns apenas passavam, enquanto outros se detinham por algum tempo em uma ou outra vitrine. Eis que um deles, bem jovem, resolve ocupar a mesa próxima ao balcão em que ele estava. Ele devia ter uns 25 anos, pensou. Ela uns 18 e olhe lá, 19 no máximo, continuou pensando. Esta naquela idade em que o jeito, ainda de menina, tenta administrar os destinos de um já flagrante corpo de mulher 18? Tá bom, no máximo 20, concluiu em silêncio.

Uma pequena caixa foi posta a seu lado, no balcão de vidro da cafeteria.

- Trouxe pra você. – disse Alice.

Deu-lhe um beijo rápido e discreto no rosto, pois sabia que seu homem não era lá muito afeito a demonstrações de carinho em público. Mostrou-lhe sua mão, após o beijo, para certificá-lo de que ela já estava usando a sua.

- Meu Deus! – ele murmurou. O que você...

Com a mesma mão da aliança, cerrou-lhe a boca, começando seu pequeno discurso, num ritmo e tom de voz pausada, com compenetração típica de quem tem algo muito importante a dizer:

- Resolvi começar a usar a minha, – mostrou-lhe de novo a aliança - pois já sou sua faz tempo e, mesmo que isso lhe incomode, paciência, pois, como disse, já sou sua faz tempo. Se isso lhe assustar muito, pode me mandar embora ou o que for. Estou disposta a correr o risco. Mas, veja bem, é importante para mim que você saiba: eu já sou sua faz tempo. Todos os meus planos, antes de lhe conhecer, não mudaram em quase nada. Não os descartei, fique tranqüilo, apenas os adaptei à sua presença. Alguns eu abandonei por serem vagos; de outros eu me afastei, pois ia me distanciar de você e isso, na minha balança, iria pesar mais contra que a favor. Quase tudo que hoje eu faço está ligado a você. Até o curso que eu vou começar, no mês que vem, tem um pouco de você, pois sei que se orgulha de mim por eu não ser burra, nem acomodada, fazendo o estilo mulher autônoma. Mas eu quero ser autônoma com você, se é que isso é possível, pois já sou sua e faz tempo.

Ele entendeu muito bem tudo aquilo que ela disse. Sabia décor e salteado o gosto da situação. Essa coisa de repartir com alguém, aquele mais de nós em nós mesmos, que o próprio alguém inspirou. Essa coisa de não conseguir mais pensar só em si, trazendo o parceiro para tudo o que esse "si" viesse a significar. Tais situações não lhe eram estranhas. Ocorre que ele não as via mais no presente; eram como fósseis: possíveis, desde que habitassem um passado muito remoto. Lembrou-se de Elcie, claro, uma espécie de divisor de águas, no não muito caudaloso rio de fêmeas que passou por ele, até aquele pequeno discurso de Alice.

Elcie tinha 18 e Theo 10 a mais. Ela sempre exalou pureza, mas de propósitos, pois poderia ter o homem que quisesse, quando quisesse. Mas não tinha olhos para mais ninguém, além dele. Deixou-lhe isso sempre claro: ele era o escolhido. Sendo assim, qualquer outro tipo de pureza que ainda guardasse, só ele a profanaria, sem qualquer cerimônia, usando e abusando de um direito de posse que ele não pediu nem quis, mas lhe foi concedido, sem pré-condições, mas apenas um forte desejo não confessado de fazer dela alguém melhor. Com afinco e determinação, passou-lhe toda responsabilidade pelo seu amadurecimento. O que Theo lhe fizesse, por mais vulgar e banal que fosse, ser assim por ela considerado: um amadurecimento. Tornou-se uma gueixa ocidental. Seu prazer era satisfazê-lo em todos os campos possíveis e sexo era apenas um deles. Rejubilava-se ao ficar em evidência, quando o acompanhava em algum evento, do mesmo modo que se orgulhava em inspirar tentações em seus amigos. Porém, sempre foi boa em mostrar em público a sua fidelidade. Ela era de Theo e que ninguém ousasse provar o contrário.

Elcie sempre soube ter um corpo capaz de lhe abrir muitas portas, mas temia, e muito, entregar-se ao homem errado. Desde a adolescência, desenvolveu uma argúcia afiada com as entrelinhas do comportamento masculino. Aos 18, ainda era virgem, mas aos 13 deixou de ser ingênua. Seu rosto de menina e modos tropicais somava saias curtas com sexo intocado, combinação explosiva a homens descontrolados. Vieram assim as loucuras que muitos fizeram, fosse por sua atenção ou qualquer outro leve sinal de correspondência. Disputavam-na ferrenhamente e isso a vinha matando, pouco a pouco, pois nunca quis semear tais situações. Porém, elas aconteciam e em número cada vez maior. Passou a ver sua beleza como um peso que começava a ser muito difícil de carregar, mas seguia prometendo a si mesma nunca se entregar ao homem errado. Seu coração acionaria alguma espécie de alarme, assim que ele chegasse. E chegou.

Amou Theo desde o primeiro momento que o viu, numa sala de aula, como seu professor. Controlou-se no início, pois tudo soava muito clichê. Ela, uma aluna de cursinho, ele, um bom professor, bem distante do padrão galã, mas ainda assim professor. Resolveu impor uma quarentena a si mesma, observando-o à distância com sua lente lógica, já que a emocional simplesmente a jogava em cima dele.

Certa vez, após um bom treinamento em casa administrando seus sentidos, abordou seu professor de biologia com uma dúvida. Theo foi atencioso e gentil. Mostrou-se simpático e acessível, como lhe era de costume. Sanou-lhe a falsa dúvida e recolheu-se à sala dos professores. Ao seu lado, ela gostou de tudo que ouviu, viu e sentiu, embora o ver e sentir tivesse embotado o resto, já que seus tímpanos estavam tomados por suas batidas cardíacas. Mais ousada e ansiosa por sentir de novo o mesmo, procurou-o mais algumas vezes. Numa delas, Theo aproximou-se bem mais, repousando sua mão direita em seu ombro esquerdo, enquanto descrevia, na lousa, a solução de sua dúvida. Uma sensação já parcialmente conhecida e por demais idealizada, a fez desabar. Teve súbita queda de pressão e conseqüente desmaio. Acordou após algumas horas, numa saleta do curso, deitada numa cama trazida às pressas. Sua cabeça doía muito. Levou a mão à testa, percebendo o enorme galo que a ocupava.

- Não aperte, você bateu a cabeça no apoiador de giz. Foi só isso. Já compramos uns curativos na farmácia aí do lado. O rapaz veio aqui lhe medicar. Fizemos um pouco de soro. Tome um pouco. – disse a funcionária lhe estendendo um copo.

Ela perguntou sobre o seu professor de biologia: se ele não havia se assustado com tudo aquilo. A funcionária disse que não. Ele a carregou no colo até aquela saleta, estancou o sangue que escorria de sua testa e pediu que ela o esperasse, pois a levaria para casa, assim que terminasse a aula que estava dando agora. Elcie aceitou a ajuda e tentou disfarçar o imenso prazer que sentiu ao saber daquilo. Disfarçar, conter, disfarçar, conter... Essa era agora sua determinação. Não podia deixar que toda essa vontade de mulher maluca e apaixonada o fizesse fugir, fazendo-a sentir um gosto de usado no que sequer havia tocado, tal qual aquela música antiga da época do seu pai. Seu professor não fazia o tipo espontâneo, liberal e desinibido. Talvez não acreditasse em demonstrações exageradas de afeto, afinal, professores de cursinho devem passar por isso mais de uma vez: garotas jovens e ingênuas, que se entregam incondicionalmente a esses senhores cultos e experientes, que lhes ensinarão tudo, tanto dentro como fora da matéria.

Theo a levou para casa não só dessa vez, como em muitas outras. Namoraram um bom tempo, mas não o suficiente. Por certo ainda hoje estariam juntos, não fosse Elcie ter falecido, vítima de atropelamento. Pois foi num diário, guardado dele e de todos, que ela deixou claro um carro seguí-la há vários dias. Que o dono desse carro lhe suplicava a volta de um relacionamento, no qual ela teria tudo e seria mais feliz. Que o professor não seria capaz de lhe dar nem metade do que ela merecia e que, num ultimato desesperado, o professor deveria morrer, caso ela não reconsiderasse. Também a placa do carro constava no diário. Elcie a havia anotado dois dias antes de sua morte. Tinha intenção de chamar a polícia e ficar atenta aos resultados. "Não vou contar nada ao Theo. Nunca lhe levarei problemas. Isso tudo vai passar" – assim ela escreveu.

Elcie não sabia que os únicos problemas, dos quais Theo fugia, eram os pequeno-burgueses. "E a classe média que mame, se o céu a prazo se der" - como disse Belchior. Os do coração sempre tinham sua atenção, desde que não camuflassem o fútil. E o coração de Elcie, bem como ela toda, era sua prioridade. Alice não o tinha por inteiro, como Elcie teve, mas carregava uma parte dele e esse era um dado que ele resolveu considerar. As demais, talvez, ele entregasse mais tarde, se é que o faria. Mas o fato dele não estar mais sozinho e o dela já estar contente com a parte recebida, mudava tudo. "Mesmo sendo errados os amantes, seus amores serão bons". Fechou a questão com essa frase do Chico e, de volta àquele café, no shopping com Alice, sua mente fez seu braço puxá-la para si, como um tentáculo que busca alimento.

- Tá bom, tá bom... –disse, abrindo a caixa e pondo a aliança no dedo. Mas vamos conversar mais a respeito, até que eu me sinta à vontade com a idéia, ok?

- Ok, juro. –respondeu ela, beijando os dedos em cruz.

Logo depois, como um pássaro recém-nascido, foi se ajeitando em seu ninho, entre os vários agasalhos que Theo vestia, naquela noite de inverno, em julho.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 24/09/2010
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