Do Pecado a Remissão

DO PECADO À REMISSÃO

I

Vozes saudosas chamavam-me pelo nome, então desci a Avenida 14 de dezembro. Aproximava-se das dezenove horas. Verão. Anoitecia.

CB 450, velocidade razoável. Cerca de quarenta quilômetros horários. Perto das garotas o motor falava mais alto, chegando aos oitenta.

Num desses momentos, à altura da Praça Rui Barbosa, voltei o olhar até uma garota que passeava em shorts jeans e coton, minusculamente sensuais. Suspirei fundo, e quando dei de olhos com o asfalto não vi mais nada além de um caminhão que me ultrapassava e um Gol em sentido contrário. Dei-me para a calçada e encontrei um fusca no acostamento... a moto tocou-lhe o pára-choque traseiro, atirando-me para o alto. Na volta, bati com a cabeça no calçamento de pedras.

Acordei numa estrada vazia, de olhos vazios envoltos numa cortina de fumaça ora cerrada, ora transparente. Quando o olhar conseguia ir, só encontrava estrada e fumaça, ambas brancas como a minha lembrança.

De repente um soluço. Sufoquei-o de início, mas o libertei em seguida. Era certo que não poderia ser ouvido. Veio o desabafo e gritei com amargura, lembrando meus quinze anos que não se findaram. A morte fria e cruel levava-me nos melhores de meus dias.

-Oh pai! Implorei por ouvidos. Se tu premeditas os caminhos, porque não me guias até o horizonte dos olhos? E se não és capaz de fazê-lo, por que não o deixas a meu encargo?

No silêncio que se fez, aproximaram-se dois homens – talvez frutos de minhas palavras. O primeiro era jovem e imberbe, cabelos longos, louros e levemente ondulados. O segundo trazia ar de mais idade: barba e cabelos longos e muito brancos. Ambos mostravam sabedoria e pés de caminhantes. E quando passaram por mim, acenaram-me para que os seguisse.

- Não! Foi grave o tom de minha resposta. Eu preciso de vida... Somente vida.

- Todo aquele que conserva sua vida para si, irá perdê-la, disse o mais velho.

- Eu quero viver. Supliquei. Quero reaver as belezas roubadas por essa cortina de nada.

- Filho, continuou o velho. Entre pela porta estreita, porque estreita é a porta e apertado é o caminho que conduz à vida...

Dei-lhe as costas, porém, do louro chegou até mim como uma lição de moral:

- Não se esqueça de que não é senão parte de sua obra.

II

Num único instante em que as nuvens se abriram, mirei a terra, firmando as imagens daqueles que eu escolheria para darem-me a vida. Ele seria o Marcos, meu grande amigo... E ela, aquela que causara meu acidente... Com seus olhos castanhos, cabelos longos e negros ornando um corpo delicadamente esculpido em bronze.

Era noite de sexta-feira. Marcos dirigia-se para a cidade vizinha, mas ocupei-me em trazê-lo até à pequena. Quando se aproximou, Fabiana e Sandra encontravam-se sentadas no degrau da escada da lojinha do Boy, Suzana encostada no Uno do Carlo... e Mara de cócoras com os joelhos no meio-fio... Tão linda quando no dia do acidente... Tentavam apanhar com o dedo a maçã da terceira cuba que dividiam. O Beto e o To cochichavam o mesmo assunto de sempre – moleques.

Mara levantou-se para buscar mais bebida. Derramaram-na. E quando passou atrás do Uno sua visão ofuscou-se nos faróis de outro automóvel que aproximava. Não o teria visto se não fosse pelo louro que se pôs em pé a seu lado. Dispensou a bebida ao ato da apresentação.

Convidados para entrarem, Marcos a acompanhou. Ouvia-se “maluco beleza”, mas o som transformou-se e Jorginho interpretou um sucesso internacional de inteiro romantismo. Marcos segurou-lhe a mão, depois a abraçou, escondendo o braço no negro de seus cabelos. Colou-lhe o rosto, deixando o hálito abrir-lhe os poros e umedecer-lhe os lábios. Os corpos se tocaram. Já não havia divisão. A mão atrevida segurava o cinto, e o dedo, que antes buscava o espaço descoberto entre a calça e a blusa, passou a contornar-lhe suavemente as curvas de sua orelha. Afastaram-se os rostos e colocaram um olhar dentro do outro. As castanhas dos olhos de Mara beberam-lhe o verde dos seus, mas quando Marcos esboçou um beijo, ela escondeu-se, recostando a face em seu ombro.

Marcos não desistiu. Sussurrou-lhe aos ouvidos como quem fala com Deus. Aninhou seu corpo e levou-a ao ritmo que parecia esquecido. Entoou todos os tons, traduziu os versos e repetiu:

-She’s like the Wind in my tree... in my search… consertou.

Mara fechara os olhos. Queria adormecer em seus braços, nos passos que os guiavam. Queria que sua voz se eternizasse naquele tom, porém, segurando-lhe a mão, dirigiu-a à mesa. Apanharam um copo de bebida e saíram. À porta, examinando a lua, fez-se poeta...

Prateia meus olhos, envenena minha alma.

Na tua calma despirei meus lábios.

Não serei sábio - Amante apenas.

Levou a bebida aos lábios quando sentiu que os de Mara, já despidos, estavam sedentos por seus beijos.

- Aceita?

Mara recusou. Então, segurando levemente seus cabelos e prendendo sua nuca, uniu o copo à boca da pequena que, tentando fugir, procurou asilo em seu ombro.

- Se a recusa, eu a tomarei.

O braço de Marcos cercou-a de maneira que a fez prisioneira. A mão maliciosa cofiava-lhe a franja, enquanto a outra levantava a cabeça. Cruzaram olhares que aqueceram suas faces. Podiam senti-las coradas.

De repente os rostos se aproximaram. Os lábios carnudos e entreabertos rumaram-se aos de Mara com imensa doçura. Ela os sentiu ainda que distantes. Libertou um sôfrego suspiro e cerrou os olhos, acendendo o coração. A mão trêmula impôs-lhe o peito com leveza, as faces se tocaram lado a lado e, junto do seu pescoço, os lábios do moço sorveram o líquido do copo.

Mara irou-se, mas permaneceu imóvel.

- Quer conhecer o sabor?

Pensou em dizer-lhe que já tomara diversas cubas. Que certa vez até se embebedara... Preferiu o silêncio.

- Quem cala dá o consentimento. Não é?

Deslizaram-se os rostos e nasceu um leve beijo.

- Agora que o conhece, quer tomá-lo?

Não esperou resposta. Tomou entre os dentes o lábio superior da garota. Entreabriu-os, dominou-os e recuou.

- Quer? Voz quase muda. Deixou o hálito soprar-lhe a magia contida na ilusão. Braço no ombro... Mão na cintura que a blusa deixava descoberta. O olhar, primeiro nos olhos, depois nos seios que pulsavam em ritmo de rock. Com o corpo, colou-a na traseira do Gol, onde depositou a bebida no aerofólio, abandonando-a para beberem lábios e almas.

III

No domingo, na mesma lanchonete, comemorariam o aniversário de Mara. A festa fora oferecida pelos amigos, ainda que a mãe prometesse organizar a do próximo ano: a especial.

Lembraram de todos os detalhes, entretanto, na hora prevista, Paulinho que se encarregara dos cds estava absurdamente atrasado. Marcos comentou que tinha diversos, para todo gosto, e se propôs a buscá-los. Mara precisava acompanhá-lo...

A casa de Marcos não ficava distante mais que cinco quadras. A caminho, dado para o momento, Mara comentou que era sonhadora e que adorava temas internacionais, contudo, o cantor que mais a impressionava era Biafra, com a música Sonho de Ícaro.

Frente ao portão, Marcos sugeriu que esperasse por ele no carro. Entrou e demorou cerca de quinze minutos... Mara estava ansiosa, quase a chamar por ele, quando gritou da porta:

- Não consigo encontrar Sonho de Ícaro. Não sabe se é tema de novela? Posso substituí-la por Ouvindo as Estrelas?

Mara aproximou-se de resposta à solta. Marcos segurou-lhe a mão e tomou seus lábios com imensa doçura. Dirigiu-a à sala de som onde a recostou no batente da porta e apontou-lhe o teto com o dedo. Quando os olhos de Mara se ergueram a luz se apagou. Na parede, refletiram duas sombras e um beijo: Este fruto da emoção, aquelas de um candelabro suspenso ao centro da sala, onde a chama crepitante contorcia-se em louro.

Dirigiram ao aparelho de som e remexeram os cds, mas não obtiveram sucesso. Na mesa de centro estendia-se uma toalha em rendas brancas e formato de coração com seus nomes desenhados em batom vermelho. Mara contornou-os com os olhos no instante em que aspirou a suave fragrância de Imortelle e nasceram as primeiras notas de Sonho de Ícaro.

Marcos ofereceu-lhe Duvalier e o braço para a dança. Não existiram palavras. A música enternecida de ilusão era a mais perfeita linguagem. Os lábios de Marcos buscavam-na magicamente em suspiros quase imperceptíveis. Tinham olhos devorando olhos. Realmente as palavras tornavam-se desnecessárias e Marcos não insistiu para que elas existissem. Volveram-se os suspiros no momento em que entreabriram os lábios, cerraram-se os olhos e os braços másculos envolveram o corpo minúsculo, na verdura de seus catorze anos. Pulsavam os seios sob as mãos que iam e vinham nas espáduas protegidas pelos cabelos de noite.

O hálito dominava o Imortelle quando mudou a canção, nascendo I can’t live, if to live without you.

Os lábios polpudos deslizaram face afora e buscaram no peito desnudo os latejos dum coração. Depois, a profundeza dum umbigo ligeiramente bronzeado. Exploraram os mamilos empinados, pontiagudos e despidos à carne úmida daquela boca faminta que sugava os gemidos envoltos por feitiços.

Espalhou a taça de vinho pelo corpo, misturando ao odor que os delírios faziam transpirar. A mini-blusa foi ao carpete, seguido do shorts da mesma cor. Restou a miniatura de um lingerie, umedecido pelo desejo que aflorava em resposta a cada toque...

As mãos passeavam pelo corpo, arrepiando e envolvendo a pequenez delirante. Seguindo-as iam os lábios mornos, atenuando a ardência dos sentimentos e iluminando os olhos de capim.

Marcos mergulhou em suas curvas, bolinando-lhe nos mamilos como se dedilhasse as cordas dum violão, mas as notas eram loucuras... Um dos dedos correu entre o corpo e as rendas do lingerie, buscando a região clitoriana onde o rei se petrificara. Pressionou-o enquanto a mão espalmava-se sobre o monte de Vênus. Amalucada, Mara agarrava-se ao amado. Os dentes avermelhavam a pele clara, as unhas deixavam marcas visíveis nos ombros onipotentes e o hímen pedia para deixar de existir.

Do estofado maior ao menor, ao carpete e ao delírio enfolhado de prazer. Mara recostou a cabeça no corpo do amado e pairou o olhar no candelabro onde as chamas se curvavam à perfeição do ato de fazer amor.

Houve um gigante silêncio, depois Marcos a conduziu às espumas borbulhantes de uma banheira. Banhou-a, vestiu-a e a devolveu à festinha donde a tirara. Entretanto, Mara levava-me em seu ventre, de carona nos sonhos... nos tortuosos encantos de uma vida terrena.

IV

Correram-se os dias. Mara era liberdade e vida, além de um enorme desejo de revolução. Todas as tardes, Marcos a apanhava no colégio e nos finais de semana saíam, dançavam, divertíamos brincando de homem, mulher e serpente.

O primeiro mês se findou. Mara preocupou-se com o atraso no ciclo menstrual e contou a Marcos que apenas se calou. Esperaram por mais alguns dias e, perdurando a suspeita, realizaram um teste de gravidez. Aí, certificaram-se de minha existência.

Numa tarde de sexta-feira de agosto, Mara saiu do laboratório para a residência do namorado, tocou a campainha insistentemente e, convidada a entrar, pediu que saíssem.

- É isso. Sufocou os soluços.

- Como pôde acontecer... Buscava uma explicação ao óbvio. Pensei em dizer-lhe que fui eu quem os preparou: quem derrubou a cuba para que Mara se levantasse e percebesse sua chegada na lanchonete; quem atrasou Paulinho para que fossem buscar os cds; quem apagou as luzes e acendeu as velas do candelabro, espalhou Imortelle na sala, riscou seus nomes na toalha e colocou Sonho de Ícaro no compartimento. Um dia lhe diria... Porém, deixaram a cidade por uma estrada de terra, rumando-se para um arvoredo na copada de um monte qualquer. Marcos retirou uma seringa descartável e injetou no braço de Mara um líquido azulado. Nesse instante, senti-me sufocado e ela retorceu em dores por um tempo que parecia não acabar.

Escurecia. Nasciam as primeiras estrelas e morriam os últimos sonhos quando Marcos resolveu, sem tempo, levá-la a um hospital. As dores brotavam mais fortes e molhou certo lingerie. O fluxo de sangue verteu-se...

A grama empoeirada em meio aos arbustos de uma capoeira fez-se leito eterno de um feto de dois meses... E naquela noite algumas pessoas afirmaram que uma manada de porcos atirou-se num precipício, pondo-me a passear na noite, entre montanhas de ruínas e florestas de homens, almas edificadas e corpos diluídos, onde me encontro...

CLODOALDO DIAS DOS REIS

Dias Reis
Enviado por Dias Reis em 23/09/2010
Código do texto: T2516211