Sublime Cura

SUBLIME CURA

CAPÍTULO FINAL - A CURA

O amor e a vida são como um livro: necessitam de um ponto final.

...Mas o ponto final não encerra o livro. Apenas dá ao escritor a sensação de missão cumprida. Daí o resto é com você, amigo leitor autor.

O Professor afirma que “o leitor é apressado e o livro caminha devagar”, e para que não atropele sua leitura, antecipo-lhe estas palavras que servirá (ou haverá de servir) de suma...

E vamos lá!

Marcelo acabava de sair do banho. Ainda trazia no corpo gotículas por secar quando toques leves e compassados soaram da porta. Então, aproximou-se para abri-la e aspirou um conhecido perfume feminino...

Sou eu, Sandra.

Houve silêncio de ambos os lados. A maçaneta girou e de fora surgiram os cabelos soltos de uma donzela que tinha nos olhos uma candura de inocência, mas no decote da blusa, no lingerie insinuante e nos lábios polpudos o feitiço de uma ninfa (...)

Apagaram-se as luzes. Nasceram suspiros. Primeiro suaves, depois picantes, enfim, loucuras (...)

A claridade da rua insistia em mostrar o contorno de seus corpos nus: a carne morna dos lábios, o passeio das mãos, o entrelaça de pernas... Lentos, cochichando, cavalgando, tremendo. Alguns gemidos... Um silêncio! O mais perfeito dos silêncios: de uma menina se transformando em mulher. Sublime cura, se é que me entende, caro leitor...

E de repente um sobressalto! Uma buzina estridente. Pneus arrastando-se no asfalto e o choque... Fatal?

Marcelo correu à janela e percebeu que se travava de Marcos. A moto estava destruída sobre a calçada e seu amigo cercado por curiosos, estendido no meio da rua: Oh, remédio cruel!

Sublime e cruel!

Se doutor Freudnando presenciasse ambas as cenas, certamente explicaria:

- “O espírito de Marcos é mais um espermatozóide em Sandra, na ânsia de encontrar um caminho para não partir...”

... Mas, Sandra engravidaria nesse instante para conceber vida àquele que desencarnara (?) à sua janela? Seria esta uma proposta divina?

Siga-me, amigo leitor...

Fizeram amor? Certamente que sim, como narrei com alguns pormenores. E, ao lado da cama, podemos observar caído certo preservativo. Se este foi utilizado? Tenha calma, amigo... Sigamos os passos...

Vamos à narrativa..

CONSEQUÊNCIA OU INCONSEQUÊNCIA?

- Marcelo. Preciso arrumar seu quarto.

Era sua mãe. Encará-la? Sim. Era preciso.

- Já vai. Prestou atenção se desafinara a voz. Correu molhar o rosto para disfarçar a tristeza, mas o cheiro...

Eu vou entrar.

Era enfrentá-la agora... ou nunca. Abriu a porta do armário: creme dental, pós-barba, desodorante, Bom-hálito, uma navalha... Isso!

Ágil, a lâmina correu em seu pescoço, abrindo-lhe a garganta. Não se assuste, leitor. Afinal, não derramara tanto sangue, mesmo porque as artérias foram preservadas pelo destino. Contudo, borbulhas muito vermelhas se formavam à medida que respirava...

... Dessa forma, sua mãe o encontrou no chão frio do banheiro.

A BUSCA DOS PORQUÊS

Durante o tempo que ficou hospitalizado houve cuidados básicos para que não tornasse a cometer tal loucura, e com a alta, as recomendações o acompanharam.

Deixou o hospital abatido. Não falava, não sorria, nem se aproximava de alguém. Como medidas preventivas, foram recomendadas algumas sessões psicológicas. Nessas, também nem uma palavra. Interrogada por Dr. Freudnando, a mãe foi sucinta:

- Jamais foi agressivo. Marcelo sempre se mostrou uma criança amável, simpática, atenciosa e calma. Nenhum indício de que cometeria tamanho deslize. Sempre saudável de corpo e alma.

- Na noite anterior ou mesmo na manhã dos fatos – continuou o psicanalista - você notou alguma atitude anormal, algum gesto ou palavras que não condissessem com sua personalidade?

- À noite, quando saiu ao encontro da namorada, estava bastante sorridente, inclusive deixou escapar que estava apaixonado. De manhã, como era habitual, demorou a abrir a porta do quarto. Pensei que estivesse dormindo, mas ao entrar eu encontrei... sangue e... um cheiro forte de sexo.

- De onde vinha este cheiro? Do quarto, da cama...?

- Eu diria que o cheiro estava impregnado na sua roupa, no seu corpo!

- E quanto à namorada; Você disse que ele estava apaixonado. Esse sentimento era recíproco?

- Sem dúvidas. Posso afirmar porque presenciei seu desespero ao receber a notícia do incidente.

- Gostaria de poder ouvir sua namorada. Provavelmente, ela seja a chave de tudo.

No dia seguinte, Sandra foi convocada para uma reunião com o Dr. Freudnando. Ficou feliz em poder ajudá-lo, mesmo sem saber como.

-Naquela noite, estivemos no “Boys” em torno de três horas. Estava tudo bem. Então, ele me levou para casa numa boa. Queria que eu ficasse mais um pouco na lanchonete, mas mamãe me impunha o horário. Deixou-me no portão e voltou encontrar seus amigos.

- Devo ser um pouco indiscreto. Não se preocupe, pois será meramente profissional: naquela noite vocês transaram?

- Não. Realmente nunca aconteceu, até porque ainda sou virgem. Marcelo era louco por sexo e se o assunto fosse virgindade, aí então enlouquecia de vez.

E depois do acidente, como está a relação entre vocês?

Continuamos nos amando, mas sinto que em alguns momentos ele foge de meu olhar.

Já voltaram a falar de sexo?

- Não. Era sempre ele quem iniciava a conversa, na verdade, nunca levada a sério. Depois que se feriu, não sei se pelo incômodo do ferimento ou por quase sempre existir alguém por perto, ou ainda por ter perdido seu bom humor, nunca mais voltamos ao assunto.

- Está bem. Ajudou-nos imensamente. A propósito, você sabe quais eram os amigos que esperavam por Marcelo na noite anterior aos fatos?

Claro. O Tuca, o Léo e o Marcos.

Tomados pela ordem que Sandra os colocou, interrogados, Tuca e Léu afirmaram que Marcelo estivera bem todo o tempo em que se divertiam no “Boys”. Beberam várias cervejas e, ao saírem, deixaram marcos e Marcelo no balcão comprando uma garrafa de vodka. Foram unânimes também quando disseram que todos iriam para casa e que Marcos daria uma carona para Marcelo.

Relativo a sexo, eles esclareceram que o amigo adorava garotas bem jovens como ele, principalmente virgens, embora não tivesse comentado sobre qualquer transa desde que iniciara o namoro com Sandra. Estuprar uma garota... Impossível. Marcelo era meigo, delicado, amável. Sempre que falava de sexo, era com muito carinho e amor.

Colocadas as mesmas questões a Marcos, disse ter sido deixado em casa. Daí, Marcelo seguiu sozinho. Não tomaram a vodka. Compraram-na pensando num aperitivo em sua casa no dia seguinte... o que não aconteceu devido ao acidente.

- E quanto a sexo?

Marcos corou-se, mas nos seus tantos anos de experiência, conseguiu se recompor. Disse apenas que, por ser muito mais velho que os três garotos e também por não serem tão íntimos, preferiam não discutir tal assunto com eles. Sabia, porém, que Marcelo era bastante paquerador e vivia cercado por garotas, ainda que ultimamente só o vira com a namorada.

Dr. Freudnando apreensivo rabiscava um papel enquanto ouvia. Estava convicto de que o caminho devia ser galgado com paciência – também a tenha, amigo leitor – não desprezando os pormenores quase insignificantes, contudo, necessários.

ALÉM DOS OLHOS – O FATO

Para que a cura exista, é necessário que a ferida seja aberta. Desta forma, partiram para a hipnose e na primeira sessão Dr. Freudnando pediu que Marcelo voltasse ao dia do incidente. Como que lúcido: sem bloqueios, sem reservas e sem temor, Marcelo narrou detalhadamente o que se passara naquela manhã:

-Abri os olhos e conclui que o teto já não girava, apesar de tamanha dor de cabeça. Apaguei a luz que havia esquecido acesa e escondi o rosto no travesseiro. Por alguns instantes recriei cenas da noite passada: levara Sandra à lanchonete, tomamos refrigerantes, dançamos e, de volta para casa, aquele ralinho descomprometido. Depois, o encontro com os amigos no mesmo local: tomamos cervejas, discutimos futebol e – um sobressalto. - As imagens brotaram embaralhadas, doentias, nojentas. - Tentei entender como um sonho. Que sonho? Um pesadelo!

Meu Deus! Arrepiei os cabelos da testa para a nunca. Se eu tivera um pesadelo, o que seria aquela ardência? Fui até o banheiro – será? – o sangue ferveu. Tentei defecar, mas não o fiz, pois a dor tornou-se insuportável.

O rosto de Marcos cresceu em minha memória. O cenário tornou-se presente. Pareci reviver cada ato, mas era como se eu não estivesse lá. – Não sou eu. Não era eu. – Tentei encarar o espelho e repetir esta frase, mas as marcas em meu corpo contradiziam todas as minhas afirmações.

Se você se perdera nessas frases, caro leitor, eu peço que tenha calma, afinal, nem Marcelo ainda foi capaz de entender o que ocorreu.

- Na ânsia de respostas, procurei pelo início da coisa, ou a coisa do início. Quando deixamos a lanchonete ainda estava tudo bem, mas... - é isto! Aquela vodka quente! A dor de cabeça...

As lembranças se tornaram obscuras nesse ponto. Via meu corpo agir, mas não comandava as ações. Lembrava de todos os movimentos, entretanto de nenhuma sensação. Tudo o que fora dito tinha a minha voz, mas em nada parecia com o meu vocabulário... E por um momento o rosto no retrovisor – era o meu rosto – o olhar expressivo de quem sentia desejo e prazer... de quem realizava um sonho tão distante. Eu buscava tudo isso!

Como?! Eu não estava lá. Isso não poderia ter acontecido. Não fossem os meus princípios sólidos, ao menos pelo meu grande desejo por garotas... O meu grande amor por Sandra... O orgulho de ser homem. Mas, e as marcas do homossexualismo em meu corpo?

Olhei a rua da janela. Iria enfrentá-la? O que seria de Sandra, meu grande amor? E de Marcos, meu amigo? O que seria de minha vida?

Diante de tantas indagações foi que ouvi baterem na porta do quarto e a voz de mamãe chamando por mim...

Marcelo chorava muito, então interromperam a sessão. Dr. Freudnando sabia que estava diante de um típico caso de homossexualismo indesejado. Ele o desejara, provocara-o no uso de álcool, todavia não o admite nem o aceita quando sóbrio. Mas ali estava “o problema”. Precisaria ainda encontrar a causa para buscar soluções. Então, levantando os olhos de encontro ao de Marcelo afirmou:

Foi um sucesso, amigo Marcelo. Parabéns.

E o que eu disse doutor?

- O importante não são as palavras e sim os sentimentos. Eles vêm de longe e nos fazem pequenos... Este é o sentido da vida!

Realmente, a primeira regressão havia sido um sucesso. Seria necessário, é claro, que outras viessem sucessivamente. Assim, Dr. Freudnando decidiu que na manhã do outro dia continuariam com o trabalho.

O QUE ESTÁ ALÉM DA VIDA

Na segunda sessão, Marcelo foi induzido a retornar a sua vida mais recente. Sem muito entender, o psicanalista passou a gravar e ouvir, sem comentários, a narração bucólica de uma jovem, entretanto, na voz do garoto. O cenário, de quarto fechado, transformou-se num belo sítio no interior do estado.

- O pomar era só silêncio. Longe podia ouvir o tam-tam da bola de futebol no campinho da escola, concorrendo com meu cabelo solto e o batom vermelho. A poupa úmida dos lábios se prendia e confirmava a minha ansiedade.

Calou-se a voz da bola. Gritaram os meus suspiros, pulsaram as minhas artérias... Meu Deus! Dentre as galhas da mangueira, vi alguém em disparada meio às ruas de café, depois no carreador até encobrir-se nos abacateiros próximos a mim. Parou, demorou alguns minutos como se precisasse se recompor e, em passos lentos, dirigiu-se ao lugar determinado.

- Aqui. Gritei do alto da mangueira. Os olhos me buscaram e um sorriso se abriu.

Vem. Acenei-lhe. Porém, mostrou-me o corpo coberto de suor.

Os braços me esperavam, então deslizei tronco afora e o encontrei no solo. Descemos entre as ameixeiras, mangueiras, cajueiros e laranjeiras. Beiramos o terreiro de café, a tulha e a represa. Enfim, lá estava o regato, na sua simplicidade e frescor.

Marcos enroscou a camiseta corintiana na amoreira de espinho da barranca, balançou a cabeça como que para ouriçar os fios grossos dos cabelos negros e atirou-se n’água. De lá, mandou o convite:

A água está uma delícia.

Hesitei, mas algumas gotas respingaram no meu rosto de encontro ao sol que ardia. Quando outras gotas chegaram, saltei junto dele.

Frente a frente, a emoção me pegou, gelou e aqueceu. Foi por um segundo. Esbocei um nado e fugi, mas dei-me com a parede de pedras, e ele logo chegou. Lá estava eu, entre o fogo e a espada, ou talvez, entre o pecado e a salvação.

... E afagou meus cabelos. Enfeitou-os com uma rosa do mato, sem a colher da rama. E me distraiu... e me beijou. Tinha fogo, e eu o senti em mim.

Valeu por tantos, mas foi um único beijo. Marcos deitou-se n’água, de costas, e nadou suavemente até a outra margem. Enquanto seguia, vi a oportunidade de me por a salvo. Subi na barranca e me sentei no assoalho de pedras, tentando adivinhar as horas pelo sol. Entretanto, ele também se pôs a seco e veio em minha direção. Meu coração disparou pedindo socorro. Os olhos tentaram ajudá-lo e encontraram uma camiseta molhada e transparente delineando com perfeição os seios mornos de virgem.

Levantei-me de súbito e abracei os joelhos, esperando encontrar nos cabelos a proteção ideal, porém, Marcos aproximou-se e inventou uma trança. Levou-os à nuca e vadiamente deslizaram-lhes os dedos como se procurasse reconhecer cada fio pelo tato. E nesta distração, por detrás, beijou-me o pescoço, abraçou minha cintura e subiu lentamente as mãos... até os seios? Não. Mas minha imaginação sentiu-os tocados. As mãos se contiveram, inibiram-se e, sentindo-se incômodas em minha barriga, fugiram para a trança por fazer.

Devagarzinho, acariciou meus braços, a penugem rala das costas e os sentidos. Meus sonhos se demoraram nos seus toques.

Pusemo-nos em pé e me abraçou. Ainda de costas, nossos corpos se colaram aderidos pelas roupas molhadas e sentimentos nus. E quando seus dedos bem pouco cuidadosos bolinaram em meus mamilos desprotegidos, percebi a sede de Marcos por mim. Pensei em voltar-me para ele e tomá-lo num beijo apaixonado e um “amasso” descomprometido. Mas, apenas libertei-me e corri para a água.

Não tardou. Marcos saltou num mergulho e boiou junto do meu corpo. Ao se erguer, suas mãos abobadas procuraram-me intimamente e me encontraram, seduziram, enfeitiçaram a razão que quase deixou de existir. Os lábios calaram os meus, num só contorno. O silêncio nasceu e, se foi interrompido, foi por um suspiro entre um beijo e outro.

Mas, se as chamas cresciam e as forças diminuíam, eu estava ali. Impus-lhe o peito, afastei-lhe a perna que procurava se confundir com as minhas e calei o amor, mesmo com os seis pulsando de excitação.

Corri. Cheguei ao meu quarto de pulmões apertados. Apanhei uma toalha e tomei um banho gelado. Não adiantou. Mudei para uma ducha quente e assumi meus desejos. Com a inexperiência dos catorze anos e inocência de criança, masturbei-me silenciosamente sob o chuveiro.

Com o final da sessão, Marcelo parecia calmo. Não sofrera ao reviver seu passado. Parecia, inclusive, ter aproveitado cada momento. Entretanto, Dr. Freudnando ficava cada vez mais apreensivo. De início, pensou em dar seqüência naquele mesmo instante, mas como poderia ser muito cansativo para ambos, resolveu deixar para a manhã do outro dia. Disse a seu paciente que trouxesse sua mãe para que o acompanhasse em seu tratamento, pois queria momentos importantes de suas vidas passadas. Será que o nosso psicanalista ficou decepcionado? Espero que também não o fique, caríssimo leitor, e aprecie cada segundo dessa narrativa como se fosse a última de uma vida.

O INACABADO

-O domingo amanheceu ensolarado – iniciou Marcelo num tom exclusivamente feminino como o anterior – Que beleza! Infelizmente Marcos iria para o futebol. Só à tardinha teríamos nossos momentos de emoção. Esperei ansiosa, maldizendo as horas que se recusavam a passar. Enfim, em nosso recanto à beira do regato, fui esperá-lo impacientemente. Tinha a pele úmida, os olhos acesos e o corpo trêmulo de desejo que se confirmava com insistência.

Vestia um lingerie branco – a sua cor preferida – e cobria-o com um short tão minúsculo quanto a esperança de ter a minha inocência preservada após aquele encontro. A blusa, como diria mamãe, tinha um pouco mais de decência: não era cavada, tampouco curta, entretanto, o contato do algodão com as águas deixava transparecer de forma misteriosa e sensual os mamilos pontiagudos e rosados, ao lado da renda insinuante do “meia taça”.

Quando Marcos apareceu na curva, banhei-me de maneira que a penugem acamou-se junto às gotas que deslizavam na pele cheirando à sede. Recostei-me numa pedra com uma perna estirada rente ao chão enquanto a outra, curvada, deixava aparecer discretamente parte da calcinha rendada, e sob ela, apenas a sombra negra de uma florestazinha de cabelos.

À medida que meu amado se aproximava, o coração latejava e os seios iam e vinham. E ele, como quem não quer nada, chegou, soprou levemente meus cabelos na testa, na nuca... nos sonhos. A alma não recusava, nem queria recusar. Voava com ele. Buscava-o pronta para me entregar.

Como quem ouve a voz do destino, Marcos olhou para o céu, suspirou e, após deslizar suavemente a mão por todo o meu corpo, bolinar nos mamilos, no umbigo... nas curvas daqueles peças... Levantou-se e tomou uma trilha entre as árvores. Eu sabia que iria voltar, então, despi-me e pendurei num arbusto toda roupa, de forma que as mais íntimas sobrepusessem às demais, e me escondi do outro lado do regato. Quando Marcos apareceu, tinha lindas rosas nas mãos. Levantou-as em minha direção vendo-me pronta para ele. Estávamos apenas separados pela água, no entanto, foram elas que lhe mostraram todo o reflexo ondulado de minha nudez.

- Vem. Acenou-me vagarosamente com um dos dedos. Atendi e estiquei a perna, molhando a ponta dos pés. Estremeci com a umidade que pareceu encher-me de encanto e prazer. Estendeu o braço de encontro ao meu e só faltaram alguns centímetros para que tocássemos dedos nos dedos e... toda a sensualidade, doçura e fogo que a natureza me punha sem economia, roubou-me naquele instante. Uma pedra escorregou-se sobre mim, meu corpo desequilibrou-se e pendeu-se contra a barranca pedregulhesca. Apoiei a mão: torci-a. Apoiei o cotovelo: ralou-se. Marcos tentou segurar-me: escapei-lhe. Uma rocha pontiaguda aproximou-se com certa violência de meus olhos que se apagaram. Disseram que meu corpo estendeu-se enquanto o sangue se esvaía: não vi.

A FORMAÇÃO DA ESSÊNCIA

Nas sessões, a todo o momento Marcelo falava de si, mas quem seria ele?

Esta pergunta colocada por sua mãe teve resposta talvez satisfatória, talvez muito vaga – julgue você, caríssimo leitor, e se possível oriente-me, analisando cada palavra pronunciada por Dr. Freudnando:

- Senhora Júlia, disse calmamente à mãe, após pedir que o garoto saísse com a namorada que não pode ficar para a sessão, nem para a conversa. – O consciente é uma memória que se constrói do primeiro sopro à morte da vida terrena. É um conhecimento aberto à vida em prelo e guarda informações sobre o mundo e principalmente sobre sua pessoa. – sou homem, sou casado, sou deficiente físico etc. Enfim, memória da experiência de uma vida que pode nos auxiliar e definir nossas ações nesta mesma vida.

Ao final desta vida terrena, o consciente é armazenado numa espécie de disquete e agregado aos demais conscientes das vidas anteriores, formando o inconsciente. O ser ganha nova vida e, conseqüentemente, um novo consciente passa a ser formado. Aí, existem no mesmo espaço da mente humana o consciente e o inconsciente. Entretanto, aquele é mais vivo, ativo, demarcador de seu espaço, enquanto este é memória passiva, feito recordações. Há, porém, muitos conflitos entre eles. Nesse caso, o inconsciente busca dominar o seu opositor nos instantes de fraqueza e assumir a consciência. Isto pode acontecer durante o sono, nos sonhos e pesadelo; na embriagues, durante as grandes ingestões de bebida alcoólica; no uso de drogas ou entorpecentes ou simplesmente nos momentos de distração.

Não há quem nunca teve visões de coisas acontecendo: acidentes, encontros nunca ocorridos, reconhecer ruas e locais onde nunca esteve ou ter a impressão de conhecer determinada pessoa com a qual simpatiza ou antipatiza à primeira vista: Tudo isso é influência do inconsciente agindo paralelamente à consciência.

- Que isso quer dizer? Perguntou Júlia assustada. O destino reserva ao meu filho uma herança gay?

Dr. Freudnando balançou a cabeça em silêncio. – E você, leitor, também o considera predeterminado a ser gay?

Mesmo sem entender o que acontecia, Júlia seguiu as recomendações do psicanalista e aproximou cada vez mais seu filho da namorada. Acompanhava-os passo a passo, sem tomar qualquer liberdade. As carícias deveriam existir entre eles, ela sabia disso. Sandra deveria ser paciente e cuidadosa, pois dependia dela toda a recuperação psicológica do amado. E, sem medir esforços, ela estava sempre presente.

Júlia combinou que, daquele dia em diante, freqüentaria a todas as sessões e levaria Sandra consigo, mesmo porque a cada momento ela se tornava peça mais importante em seu tratamento.

A VIDA SEM MATÉRIA

Foi surpreendente o que mãe e namorada ouviram...

- As imagens estão bastante tumultuadas – disse Marcelo ao iniciar mais uma regressão. - Eu não consigo enxergar muito bem além das nuvens. Sei apenas que uma dor imensa toma conta de todo meu corpo...

Corpo?! Onde está o meu corpo? Não pode ser? Eu tenho apenas catorze anos. Não pode estar chegando ao fim a minha vida...

... E as minhas roupas espalhadas no arbusto? E Marcos? O que será dele? E o que será de minha virgindade que por tão pouco não se fora? E o que será de mim sem provar um pouquinho do prazer que tanto me excita?

Nesse instante, sem matéria, a excitação me dói na alma como que pedindo para voltar. Para atrever-me ainda mais até sentir a consumação dos sonhos, a perda daquela inocência e as delícias que envolviam o meu corpo de adolescente...

... Corpo de adolescente? Corpo? O que está acontecendo comigo? Não há corpo, não há hímen, não há nada... Nada além de excitação e dor. E Marcos soluçando sobre os seios de menina moça, ensangüentados e sem vida.

Ao meu redor, somente nuvens de fumaça e silêncio completo.

Eu precisava voltar. Já havia feito isso anteriormente, e há sempre mil possibilidades. Seria necessário – inevitável – que encontrasse uma nova base para formar a minha matéria e impor a minha essência a tão pouco desencarnada. Feliz ou infelizmente, tudo já estava preparado, só esperando a minha chegada. Dirigi-me àquela que seria minha nova mãe, instalei-me em seu ventre e esperei por nove meses para ter-me novamente à luz. Entretanto, esqueci-me de que a consciência se forma com o nascimento da matéria, e me vi aprisionado, indubitavelmente, neste inconsciente de menino o qual convencionou chamar Marcelo.

TROCANDO O “O QUÊ” PELO “PORQUE”

Como era a primeira vez que Sandra participava das sessões, Dr. Freudnando fez questão de dar alguns esclarecimentos a ela:

- Jamais julgue com os olhos da cara, mas com os do coração. A vida não começa hoje, nem ontem, nem quando o médico lhe deu um ‘tapinha’ no bumbum. Já vivemos a milhões de anos e desde então formamos o nosso inconsciente: a nossa essência. Seria uma ignorância criarmos um conceito a partir de algumas noções ou fatos.

Existem milhões de olhos para julgá-lo, mas olhos não bastam: são comteanos. Precisa-se de alma... Que apaguemos essa mania de entender “o que aconteceu”, esquecendo os “porquês” que realmente importam. A matéria nem sempre é a base de tudo, e dados da observação são apenas versões, e versões são parcialidades. O que vale é a essência das coisas.

Em nenhum momento Sandra havia questionado os atos de Marcelo, até porque realmente não imaginava o que acontecia. As informações chegavam-lhe fragmentadas e, muitas vezes distorcidas. Melhor seria mesmo ignorá-las. Nesse instante, soube que Marcelo vivera outras vidas e que numa delas, como indicavam as regressões, havia sido uma garota bela, apaixonada e louca para fazer amor. Mas, será que isso iria influenciar em seu relacionamento amoroso? Não importa. Estavam apaixonados e dispostos a pagarem pra ver. Dada a afirmação, Dr. Freudnando repetiu palavra por palavra tudo o que aconteceu nas regressões e na vida do rapaz, e concluiu:

- Está tudo aí, senhorita Sandra – brincou. Aqui encerro o meu trabalho. Cabe a você interpretar e efetuar a cura de seu namorado. Abandono o caso praticamente solucionado, mas é necessário que eu haja assim. Afinal, Marcelo tem apenas dezesseis anos e você quinze. Se eu lhe pedisse alguma coisa, talvez estivesse fugindo de padrões éticos, mesmo sabendo de que estaria fazendo exatamente o que acredito ser correto.

Entendi perfeitamente – disse Sandra, sem pestanejar.

Vá e sejam felizes!

Sandra encontrou Júlia e Marcelo ainda na sala de espera. Tinha um sorriso tão meigo que os que podiam vê-la jamais diriam que saíam de um consultório. O namorado quis conhecer o motivo de tamanha satisfação, mas um beijo foi suficiente para responder-lhe.

- Foi sua última consulta...

Acha que estou curado? – perguntou.

Ainda não. Hoje não. – afirmou – Mas amanhã certamente estará.

E quanto a você, amigo leitor. Seria capaz de curá-lo? Que remédio indicaria nesse caso? Algo sublime ou cruel?

Deixemos as interrogações e partiremos para o capítulo final... que nos foi início, mas também há de nos servir de suma...

CAPÍTULO FINAL - ENTRELINHAS

Abriu-se a ilusão...

... Surgiram os cabelos soltos de uma donzela que tinha nos olhos uma candura de inocência, mas no decote da blusa, no lingerie insinuante e nos lábios polpudos o feitiço de uma ninfa.

Apagaram-se as luzes. Nasceram suspiros. Primeiro suaves, depois picantes, enfim, loucuras (...)

A claridade da rua insistia em mostrar o contorno de seus corpos nus: a carne morna dos lábios, o passeio das mãos, o entrelaça de pernas... Lentos, cochichando, cavalgando, tremendo. Alguns gemidos... Um silêncio! O mais perfeito dos silêncios: como se de uma menina se transformando em mulher. Seria uma cura sublime, e agora me entende, amigo leitor...

Mas de repente um sobressalto! Algo zuniu em sua mente, arrastando-a ao asfalto do tempo, e o choque “consciência e inconsciente” lhe pareceu fatal. Correram à janela da alma as tumultuadas imagens de Marcos e Marcelo...

O passado estaria destruído feito um remédio cruel? Dr. Freudnando afirmaria que a memória de Marcos seria um espermatozóide, uma desculpa para assim persistir na infâmia do erro...? Drogas, Homossexualismo e sexo na adolescência seriam propostas divinas?

Nesse instante, Sandra fechou os olhos e, com a sabedoria nata de uma grande mulher, olhou para seus desejos e sentimentos. Entendeu que ainda não estava pronta para entregar seu corpo, assim não cederia às pressões do mundo, mesmo estando apaixonada...

... E agora estamos certos de que não fizeram amor e apresento-lhes uma possível prova: o tal preservativo sem uso deixado ao lado da cama. E o dilema persiste: este ato seria útil? A cura realmente aconteceria?

Estou calmo, amigo leitor... Mas, me falta a senso... Só me resta seguir os teus passos... Vamos! – a caneta é tua! – É tua também a narrativa...

Clodoaldo Dias dos Reis.

Dias Reis
Enviado por Dias Reis em 23/09/2010
Código do texto: T2516205