Asas da Insânia

ASAS DA INSÂNIA

Rolândia, Janeiro de 1993.

Mamãe.

Antes de tudo, quero a tua benção e aquele beijo.

Olha mamãe. Não estou chateado por não ter ido ao meu julgamento. Prova disso é o fato de escrever-lhe narrando os acontecimentos, esperançoso de que me entenda, julgue-me e, porventura, fique do meu lado.

Sabe. As coisas são muito confusas, mas é clara a imagem que trago do momento em que a porta se abriu e meu rosto deu-se com os jurados, hostis, em seus assentos. Atrás a multidão. Libertei uma das mãos presas ao policial que me conduzia e arrumei as ataduras que me cobriam a ferida à altura do mamilo esquerdo. Galgando passos desconcertados, subi ao banco dos réus. Num intervalo de silêncios, ergueu-se a imagem fria do meritíssimo ao posto supremo do tribunal. Abriu-se a sessão com acusação e defesa... Enfim, a palavra me foi liberada para o desabafo final. Hesitei. Inspirei profundamente as lembranças e comecei:

Era manhã de sexta-feira. Na quarta havia lido pela vigésima vez “Dom Casmurro”. Na quinta, Fernando Sabino apresentou-me “O bom ladrão”. Li-o dezenas de vezes. E as indagações culminavam na minha quase certeza: Bentinho e Dimas viveram verdadeiramente os seus dilemas? Não estaria tudo tão claro? Assim, Capitu e Isabel, maravilhosas, não deveriam ser punidas como Desdêmona, e ponto final?

Minha vida não tinha segredos nem dilemas, mas sempre que lia Machado de Assis, vinha-me a vontade de compor, mas na condição de aprendiz de poeta, insignificante, não conseguia deixar na limpidez do papel os versos que me comichavam na alma. Abandonei então os versos e o dilema de Capitu, pondo-me na rua em busca de inspiração. Dei-me com a praça frente o colégio e prostrei-me no gramado. Findava o período matutino e diversas crianças saíam junto da professorinha que as colocou ao centro do arvoredo para brincarem de pique. Parei os olhos naquele rosto faceiro, meigo, daninho, feito estampa da meninice nos seus dezenove anos – catorze ou treze lha dei, ou mero engano da natureza. Trazia sorriso angelical e gracioso, além dos longos cabelos esparolados ao vento. Enquanto brincava entre os pequenos, ela sorria e desmanchava as tranças, renovando sempre a candura riscada na face tenra.

Ao seu lado a praça fez-se uma tela e seus lábios copiosos musicaram com agrado uma poesia. Risquei, à brisa, meu quadro vazio. Criei seus lábios na imensidão de meus sonhos... Deveras. A perfeição iluminada dos traços daquele rostinho travesso soprou-me o encanto de brisa da manhã. Quão doce orvalho, seus olhos desprendiam-se do luar: autênticos colibris.

Na hora de ir, roçou meu corpo debulhando sedução. De alma tocando a minha, ditou seu nome mais em suspiros que palavras:

Mara!

Correram-se os dias. Quanto esperei por vê-la? Quanta vez me colocou diante do portão, esperando quando saísse do colégio, até que um dia resolveu pôr-se em meu caminho.

- Oi!

Não. Ela não disse nada. Eu o colhi dos lábios carnudos como o ensaio de um beijo. Logo, deslizou-se nas minhas ilusões e seguiu...

Que deixará cair? Implorei. Nada. Voltou-se lentamente e acenou-me para que a acompanhasse.

- Esqueceu que me deve?

Pensei em perguntar o quê, mas continuou...

- Seu nome...

Apanhei seus cadernos e seguimos por duas esquinas. Das muitas palavras que trocamos só restou uma ordem sua: - Esteja sábado no baile!

Aquele rosto me acompanhou por longas noites.

Onde estaria o segredo daquela loura de olhos ávidos? Como conseguia esconder-se naquela pequena cidade de pouco mais de seis mil habitantes: Nova Fátima.

Criei milhões de perguntas ao procurá-la por uma semana inteira e nenhum sucesso. Porém, haveria o baile... e eu estaria lá.

O sábado chegou. O desejo de revê-la era ainda maior. Dirigi-me ao clube após uma rápida passada na lanchonete Urubu’s. Deveria ser onze horas ou ‘cousica’ mais quando me vi frente à bilheteria. Procurei-a pelo minúsculo salão quase vazio, mas não havia chegado. Fui até o bar – uma cuba aliviaria a tensão... Mataria o tempo. E permaneci recostado no balcão por minutos diversos... Corri o salão e nada! O tempo deslizava-se na noite, meu olhar nas pessoas... Todos desertos. Findou-se o baile e nada da dona do sapatinho aparecer.

Na segunda-feira, fiz plantão frente ao colégio esperando que viesse até mim e dissesse algo em sua defesa... Mas passou à distância, deixando um leve sorriso avermelhar-me a face morna.

Daí em diante, ficou esquecida a rua do colégio, a pracinha, a loura, e tudo... Envolvia-me apenas com os meus poemas e com a ilusão que muito pouco me iludia. No entanto, num domingo que de manhã compunha e à tardinha jogara futebol, aproveitei para tomar a costumeira cerveja, acompanhada pelo dedilhar de algumas músicas sertanejas. Encontrava-me na terceira latinha quando me vi tocado por mãos macias...

- Adivinha!?

- A voz arrepiou-me, mas não adivinhei. Menos ainda suspeitei de sua presença. Nem arrisquei palpite.

Arrisca, vai. Se não perde a graça.

Vendo que eu permanecia calado, tocou meu rosto com os lábios...

Veja seu bobo. Posso sentar-me.

Surpreso, apenas sorri.

Restavam poucas pessoas no recinto quando nos demos com o horário e pediu-me para que a acompanhasse. Então ofereci a ela um livre passeio na noite...

Concedi-me a liberdade de procurá-la na saída do colégio quase todos os dias e em pouco tempo nos tornamos tão íntimos quanto velhos namorados. Mara adorava me visitar em minha pequena casa onde morava sozinho, e foi lá que me ensinou os segredos de um amor sem limites, à altura desses olhos de poeta voltados para o infinito.

Num desses dias que não dá para esquecer, apareceu trazendo uma garrafa de vinho e ares maliciosos – Não vai à faculdade hoje, não é? – não esperou resposta. Cruzou as pernas no tapete da sala... Coloquei-me a sua frente e segurei suas mãos. Dobrando-se sobre os tornozelos, juntou seu corpo ao meu, tomando-me num beijo intenso de loucura. Fitou meu rosto com ternura e, num ímpeto, atirou-se sobre mim, pondo-nos ao chão. Deixou os olhos beberem os meus, mas quando esperei por mais um beijo, ela se ergueu e saiu.

- Não se atreva a sair donde o coloquei. – Ordenou.

Foi até a cozinha e, junto do barulho da porta do armário, ouviu-se o estrondo de uma trovoada e as nuvens derramaram-se feito o vinho nas taças, na cobertura de telhas.

Recostamo-nos na parede deixando a cortina roçar nossos rostos e, no murmurejar vadio da goteira, embalamos nosso amor.

Escurecia. A luz da cozinha acesa embebia a sala onde nos escondíamos entre carícias e goles da bebida adocicada. Quando demo-nos por nós, encontrávamos desnudos de corpo e alma, estendidos num ninho de magia.

- Marcos - suspirou recostando a cabeça no meu ombro – veja como está chovendo.

Vi o quanto de prazer ficara expresso na vidraça com o calor de nossos corpos. Arriei a cortina e dei-me com a noite lá fora. E como diz o poeta: “Para aumentar a magia, naquele instante chovia...”

Continuamos nos encontrando com freqüência. Ora chuva, ora sol. Sempre entregues ao nosso sentimento, esquecíamos dos desencontros da vida, criando nosso ninho entre quatro paredes. E, certo dia, Mara optou por nossa união. Surpreendeu-me. Disse-lhe que pensaria. Irritou-se. Tentei consertar, mas entregou-se a soluços e os sufocou em meu ombro.

Passaram dois dias, o maior intervalo sem nos vermos, quando me procurou. Eu tinha tudo preparado e disse a ela que podia ficar se ainda o quisesse. Fui contagiado pela magia que vi brotar em sua face angelical.

Na primeira manhã que acordamos nos braços do outro se desenhava um arco-íris na janela. Seguindo suas cores, dirigi a uma joalheria e trouxe a ela o mais belo dos anéis. Pensei em ganhar um abraço ou um beijo, algo comum, porém, duas lágrimas atrevidas rolaram e molharam seus lábios: Eis que estava selado o nosso amor.

Mara era moça de sonhos. Cabelos de ouro e olhos da cor do infinito... Seus suspiros punham-me a arder, ora gelava-me quão hortelã. Suas curvas abrasadas acalentavam o portão, às tardinhas, a me esperar. Longe ornava a rua donde eu vinha: tingia com seu olhar profundo os meus sonhos.

Transbordados os nossos corações, a felicidade espalhava-se pela casa e nosso amor florescia. Mas havia um “quê” de dilema: após minha chegada do trabalho, houve dias em que a encontrei descabelada, a roupa amarrotada e... Ao invés de palavras, ela se fechava em profundos soluços e abraços apertados. Chorávamos no mesmo compasso.

Numa manhã, precedida por noite dessas, foi que compus o mais triste e meu único poema:

Meus os olhos atados ao céu...

E as lágrimas, feito pincéis...

Eram dois traços riscando os lábios

Que, em silêncio, ditavam

O tique-taque das horas.

O sol tingindo a janela

Na dança da cortina, só nela

Via-se um movimento.

Pela abertura da porta fora-se a ilusão,

Morta decerto, feita carona do vento.

Nenhuma louça na pia.

Apenas gotas vadias

Entoavam a velha canção...

Na mesa, vi o chá, vi o mel...

E, ao lado daquele anel,

Um bilhete no papel de pão.

Onde Mara estaria numa manhã de tamanha beleza e tristeza? O que a levou dali?

Passei incontáveis noites fitando o teto e apalpando o lençol ao lado, desejando encontrar seu corpo, mas só um travesseiro vadio acariciava-me com certo desdém.

Uma semana depois, ligou-me em lágrimas. Queria voltar. Fosse esperá-la na rodoviária no dia seguinte. Concordei. Eu esperei por ela, mas não apareceu, nem mandou notícias.

Decidi esquecê-la. Ao menos colocar outro alguém no lugar que era seu por excelência, ainda que não o quisesse. Tentei outras namoradas. Diverti os desalentos: Magoei as pessoas que me rodeavam!

Oito meses riscados no calendário. Eu brincava na praça com as crianças quando me deu a velha imagem daquele rosto de menina. Ignorei-a, mas aproximou-se. Segurou minha mão, apertou-me contra seu peito, temendo que eu fugisse.

- Vá embora – consegui arrancar lá do fundo.

- Não adie o que temos para falar, afinal, não medirei esforços para ser feliz.

Insistiu, molhou-me a camiseta... Se eu queria sair, segurava-me pelo braço. Tentava me libertar usando de palavras maldosas, no entanto apenas dizia concordar com minhas mágoas.

Prometi falar-lhe outro dia. Quando veio procurar-me lutei contra meu instinto. Solucei, tranquei a garganta... Chorei... Aceitei! Mesmo sem jamais conhecer o porquê de sua partida.

Voltei a ter suas curvas no portão às tardinhas e as ruas ornavam-se aos meus olhos, como antes. E se em alguns momentos a mágoa apertava, escondia-me para sofrer sozinho a não ofendê-la. E assim, poucos meses depois a felicidade fez-se completa: Mara estava grávida.

Meus horários de folga eram dedicados a acariciar seu ventre: as curvas atribuídas ao novo ser. Colava o ouvido e prendia-me no pulsar de seu coração. Inventava nomes, brincadeiras...

Mas veio a dor, o tormento... Se eu chorar me perdoe, pois vou narrar-lhe o instante que vi meus sonhos morrerem.

Não deixei ranger o portão. Tinha uma garrafa de vinho e uma porção de brinquedo nos braços... Entrei. A vidraça, lembro-me, cerrada. Pisei levemente a calçada para causar-lhe surpresa, afinal, chegava em casa mais cedo.

De repente, ouvi soluços abafados que não se interromperam aos meus passos, quando me dei com a porta do quarto entreaberta. Havia roupas jogadas do lado e dois corpos enrolando-se no chão... Emoção? Desejo? Pecado!

Primeiro chorei. Se eu disse algo? O quê? Já não me vale a memória. Ela apavorada levantou-se e correu aos meus braços. Impulsivo, bati-lhe com a garrafa, fazendo-a estremecer e esparramar-se junto dos brinquedos e dos cacos do objeto que, como eu, só era pedaços.

O moço tentou fugir. Então o apanhei. Furei-o com o resto de garrafa até estendê-lo junto do vinho e sangue que se misturavam no chão.

Depois o silêncio! O desespero! Abaixei-me e acariciei o ventre que pulsava numa excitação sem paz. – Filho! - Gritei... Ou será apenas mais uma prova da traição.

Tomei novamente o objeto e perfurei o ventre até aquietá-lo, certificando-me de que não haveria um movimento sequer de vida... Nesse instante, entra um policial... Então me furei também, tentando extinguir minha existência, mas fui impedido... E ainda deitado ao lado dos corpos, ouvi o comentário através do rádio da polícia:

- “Sim. Há possibilidades de ser o elemento que perseguíamos. Se o for, já não apresenta periculosidade – está morto”.

Examinei ao redor e percebi peças de roupas espalhadas e estraçalhadas: - Sim! Havia violência... Ou Não! Mara realmente buscava um amor selvagem...

E na minha insignificância frente a Bentinho, persiste o meu dilema de Mara: A dor é ainda mais doída, pois no momento em que poderia tê-la defendido, eu a matei.

O depoimento findou-se. O tribunal parecia dormir em profundo silêncio. Entretanto, levantou-se o meritíssimo seguido pelos jurados. Reuniram por tempo insignificante e declarou-se a sentença:

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Assim aconteceu, minha mãe. Dizem-me que a ferida está próxima da cura, embora superficialmente já esteja cicatrizada. Aqui me cuidam com carinho e jamais comentam o acontecido, trazendo uma falsa impressão de que tudo tenha sido um mero pesadelo.

Sem mais, tudo é paz.

Um forte abraço.

Marcos.

Clodoaldo Dias dos Reis

Dias Reis
Enviado por Dias Reis em 23/09/2010
Código do texto: T2515318