A praça (degraus do paraíso)

Como fazia todos os dias, aquele homem castigado pelo tempo, vestiu roupa de linho branco, chinelo baixo de couro, chapeu de aba longa para evitar a pouca luz do sol. Caminhava devagar e com muito cuidado. A casa onde morava, um sobradão do século XIX, ficava a uma quadra dalí. Todos já o conheciam. A bengala na mão era a parceira indispensável para um senhor que já havia passado dos oitenta e dois anos. O rosto sereno, mão meio trêmula e as passadas calculadas. Quando chegou na praça ainda podia-se ver o sol imponente afogando-se na baía com nome de santo, a maré estava alta e batia com força sobre os paredões erguidos no início da colonização há quase quatrocentos anos. Caminhou procurando sombra debaixo das poucas árvores sobreviventes e escolheu um banco estrategicamente localizado que lhe oferecia uma visão ampla do por do sol que estava chegando. Apesar do pouco espaço percorrido o peito arfava, o velho coração batia apressado, ajeitou-se no banco respirou profundamente e mergulhou em lembranças.

Há exatos sessenta anos sentara-se alí no mesmo banco de agora, vivia a beleza da juventude, acabara de passar no vestibular para o curso de Medicina. a cabeça raspada, e boina verde, tradição há muito esquecida, lembrou-se das noites de estudo, da dificuldade que foi a formatura para o exercício da profissão que desejara desde os tempos da adolescência.

As imagens chegavam como em video-tape. Estava com os braços abertos olhando a paisagem quando a moça de vestido vermelho e fita no cabelo passou à sua frente, usava um sapato branco e uma bolsa pequena de mesma cor. A imagem da jovem provocou uma onda de choque em todo corpo dele, ela não parecia ser dali, nunca a tinha visto apesar de ser visitante constante da praça com nome de poeta romântico. Ela continuou caminhando ignorando completamente a presença dele.

- Quando ela voltar vou falar com ela - Pensou, e preparou-se para a volta, ela seguiu na direção do marco da praça, lá no final, parou um pouco, apanhou flores, levou ao nariz, cheirou e abriu um sorriso. Nunca tinha visto algo parecido, ela parecia flutuar no ar.

- Que mulher é esta ? - interrogava-se intimamente, enquanto ela começa a caminhada de volta, a proporção que ela aproximava-se o coração do jovem disparava, uma adrenalina inimaginável circulava pelo corpo provocando alterações incríveis no local. Ela anda olhando para o chão, porém quando já estava a uns vinte metros dele ergueu os olhos. Pela primeira vez fitaram-se e algo imcompreensível aconteceu, diminuiu o passo e seguiu. Quando já estava bem perto ele resolveu quebrar o silêncio.

- Você pode me dizer as horas ? - Nem percebera que ela não usava relógio.

- Me desculpe, não tenho relógio, tem um aí no seu braço - O rapaz corou desajeitado.

- Você é sempre desligado assim, ou foi o vestibular que mexeu com sua cabeça.

- Nem uma coisa nem outra, você é que deixou sem jeito. Muito prazer, Olavo - Disse fitando-a e percebendo em detalhes os olhos cor de mel.

- Prazer, Amélia.

- Você é nova por aqui?

- Sim, estou em São há três horas apenas.

- Como?

- É, três horas, sou de Recife meus avós são daqui, tinha muita curiosidade de conhecer esta praça que eu só olhava através de fotos. E você, o que faz aqui?

- Moro aqui perto e vim comemorar a passagem no vestibular.

- Comemorar sozinho em uma praça?

- Esta praça é na verdade quase minha confidente, sempre venho aqui pra falar sozinho, escrever uma bobagens em versos e até estudar, gosto muito daqui.

- Ah, você escreve poesias?

- Bem, não são peças literárias, são mais para desabafar sentimentos. Não sou de fazer muitos amigos e os poucos amigos que tenho me acham um ser esquisito.

- Engraçado.

- O que é engraçado?

- Seu jeito; passa em vestibular e vem para a praça, escreve poesia e vai ser médico. Será que a faculdade vai deixar tempo para escrever?

- Sinceramente não sei.

A conversa rolou solta como se já fossem velhos e bons amigos. Ela contou coisas de Recife e ele falou de suas paixões pelo por do sol, ela falou do amor pela pedagogia, ela contou dos banhos de rio em Rosário, terra onde nascera, ela falou de sua coleção de bonecas de porcelana, ele contou da cirurgia a que fora submetido para retirar o apêndice, ela contou das quedas de biciletas na ladeiras de Olinda. Quando se espantaram o céu já estava cravejado de estrelas brilhantes, uma brisa com cheiro caracteística vinha do Rio anil gerando uma sensação térmica de uns vinte três graus.

- Acho que devo voltar para casa, já é tarde e meus avós já devem estar preocupados.

- Onde você está hospedada ?

- Na rua Osvaldo Cruz, perto da Praça, deixe ver se lembro, João..

- João Lisboa.

- Isso.

- Posso te acompanhar até o bonde ?

- Pode.

Os dois caminharam um pouco até o ponto de espera até que o bonde chegasse.

- Você gosta mesmo do magistério?

- Claro, meu sonho e ter minha sala de aula, meus alunos, passar conhecimento.

- É uma atividade muito nobre. A propósito quantos anos você tem?

- Tenho que dizer mesmo?

- Se você não quizer, vou entender.

- Tá bom, dezoito, incompletos. E você?

- Vinte e dois.

A proveitam a espera do bonde pra trocar mais idéias, falar dos pontos turísticos, locais de diversão.

- Quanto tempo você ficar aqui?

- Acho que uns quinze dias.

O barulho repentino nos trilhos indica que o bonde se aproxima.

- Preciso ir.

- Que pena.

- O quê ? - Pergunta preparando-se para subir no bonde que chegara.

- Você vem aqui amanhã ?

- Ainda não sei, talvez. Foi um prazer conhecê-lo.

- O prazer foi todo meu.

O bonde seguiu e eles continuaram se olhando, sem entender ao certo os sentimentos despertados em ambos.

Dalí ele voltou para casa com uma estranha sensação de euforia, não entendia direito o que acontecera.

***

O dia seguinte à mesma hora Olavo estava lá, no mesmo banco. Haviam muitas crianças brincando, casais trocavam carinhos ao por do sol. A brisa mansa, o sino da igreja chamando os fiéis para a missa, o moço da pipoca do algodão doce, tudo estava ali, menos ela. Esperou por mais uma hora, como nada mudava, resolveu voltar para casa. Tomou um banho gelado e por um tempo ficou vendo a água caindo do chuveiro, assim sem saber por quê.

Naquela noite não conseguia dormir, tomou papel e caneta e começou a desaguar em versos a a decepção do não encontro. Enquanto tentava escrever, pensava – Vai ver que teve que viajar às pressas, ou quem sabe os avós tenham falado para ela não ter contatos com estranhos, pois mal chegara a São Luís, ou ela mesma poderia ter repensado diálogos...- Não sabia direito o que pensar. Adormeceu, pois sobre papéis e caneta, nenhum verso escrito. Quando acordou o sol já invadia o quarto, lá fora o pregoeiro oferecia o leite novinho, o jornaleiro atirava o diário para dentro dos jardins, um sujeito gritava chamando atenção para as frutas da terra fresquinhas e saborosas. Ele levantou-se tomou um banho demorado e resolveu fazer alguma coisa que preenchesse o tempo. Decidiu por visitar amigos no bairro do anil, bem distante do centro. Foi recebido com festas e votos de um grande futuro no curso que fora aprovado. Em meio a boas conversas e pedaços de frango frito e, arroz branco e salada verde, o tempo passou, e passou tão rápido que mal percebeu que a tarde chegara. Precisava voltar, ainda não desistira de rever a moça de sorriso bonito.

Quando chegou na praça o sol já debruçava-se por trás da ponte de nome de santo querido, andou a passos largos e sentiu o coração disparar ao perceber a silhueta da moça sentada naquele banco de há dois dias atrás olhando na direção do mar. O vestido era róseo, a fita no cabelo caprichosamente penteado. À proporção que aproximava-se sentir o coração bater mais disparado, se estivesse de frente para ela perceberia que ela também tinha os olhos ansiosos, que esfregava as mãos.

Quando já estava bem perto, Amália virou-se e os olhos se encontraram e ambos foram tomados por uma emoção incontida, é como se tivessem sido atingidos por um raio paralisador. Havia lá uma ternura imensa nos olhos dos dois, algo que não conseguir medir ou explicar.

Ele aproximou-se com calma e ficou de frente para ela.

Nossa, pensei que nunca mais iria vê-la – Disse ele com um enorme quê de verdade.

Nunca. Desejei muito estar aqui agora. Ontem tivemos reunião de parentes, bem sabes que tenho muitos parentes aqui e todos queriam me ver falar. Eu estava lá mas meu pensamento estava aqui na praça, acredite.

Não sei ao certo que acontece comigo, mas senti medo de não mais vê-lo. É como se se eu já te conhecesse. No dia em que cheguei, alguma coisa me trouxe para cá, eu estava cansada, a viagem foi longa, no entanto eu queria estar aqui.

Nem sei que hora eu dormi ontem. Só sei que senti um vazio enorme quando cheguei aqui e não te vi.

Ele toma-lhe as mãos nas suas carinhosamente, é como se estivessem se reencontrando depois de uma grande viagem, um olhar carinhoso, um beijo ainda rápido, um abraço longo há muito desejado. E a noite veio, e o sol mergulhou no mar, e os dois ali numa simbiose quase perfeita.

O tempo passa, Amália se muda para São Luis, e eles namoram, depois ficam noivos e esperam a formatura dos dois para casarem. E vem os filhos, depois os netos e a vida segue numa harmonia de dar inveja, até que numa noite chuvosa de 1985 Amália passa para o outro lado deixando Olavo com uma saudade tamanha, daquelas que não podem ser substituídas pelo carinho dos filhos, ou a alegria dos netos que se multiplicam pela casa.

Passados tantos anos daquele primeiro momento, tudo aparentemente está igual, um carrinho de pipocas ainda faz a alegria da garotada, o sinal igreja continua tocando chamando as pessoas para missa, o sol continua debruçando-se no mar por traz da mesma ponte, só ela não está ali.

O homem sentado no mesmo banco de tantas lembranças olha o firmamento.

Meu Deus, mas o que é isso – à sua frente a imagem da jovem Amélia, bela em seu vestido róseo, o mesmo cabelo, o sorriso largo e amoroso – Uma lágrima cai do rosto do homem.

Pessoas que passavam pela praça viram quando o rosto do homem fixou o vazio, como se visse alguém, viram também quando ele abriu os braços para receber alguém. O coração do homem disparou em ritmo desordenado e depois sossegou. Todos viram quando o corpo tombou lentamente para o lado.

Em seu delírio ela aproximou-se, enxuga-lhe a lágrima, beija-lhe a fronte e os olhos.

- Venha meu amor, vamos para casa – Ela tomou-lhe a mão, ajudando-a a levantar-se e juntos desceram “os degraus do paraíso”.