INSATISFAÇÃO AMOROSA
A noite foi agitada. Praticamente não dormiu. Rolava de um lado para o outro e nada do sono aparecer.
De inicio resolveu fazer um exercício de retroagir mentalmente no tempo.
Tanto tempo, tantos anos, tantas emoções e desilusões.
Fazia mentalmente um balanço da vida. Vida vivida de formas e maneiras distintas.
Nos primeiros anos, tudo era novidade. A felicidade até existia. Não conseguia lembrar de tantos momentos desfrutados, das horas em que ansiosa esperava o retorno do homem da sua vida. Eram momentos de pura entrega e loucura. Em geral eram dois momentos, quase que praticamente combinados. O primeiro era na hora do almoço.
Sentavam-se à mesa e uma refeição rápida, frugal.
A sobremesa eram eles dois. Um saboreando o outro. Todos os dias se entregavam ao amor de uma forma quase que animal. Mal dava para levantarem e saiam praticamente aos beijos e carícias. As mais das vezes não chegavam ao quarto de casal. Na sala sobre um tapete de lã de carneiro, amavam-se como nunca. Incansáveis e atrevidos. Exploravam os mínimos recônditos dos corpos.
Os beijos demorados, molhados e doces faziam parte de todo o ato de amor. Chegavam a ficar com os lábios inchados e tanto beijos. Ah! O beijo de língua. E o beijo mais íntimo, seguido de mais ousadia a ponto de atingir o êxtase incontrolável. Era um gozo diferente e cada dia mais intenso. Nunca pensara que tal pudesse existir. Fora educada de forma tradicional, onde a mulher fora educada para casar, cozinhar, ter filhos e cuidar da casa. Aqui a situação era diferente. Rebelde desde os primeiros anos da juventude. Personalidade forte e inquieta. Buscava na biblioteca autores que falassem sobre a liberdade sexual da mulher, da liberdade intelectual e social.
Os anos foram dando passagem a novas experiências. Não só a vida amorosa, romântica e afetuosa, mas via surgir novas perspectivas em relação à vida a dois.
Não tiveram filhos. Razão? Pelo simples fato de viverem um para o outro. Egoístas? Dificuldades hormonais, anatômicas? Não. Simplesmente não desejavam filhos.
A vida foi caminhando e nesta estrada da vida, os dois de mãos dadas nunca encontravam encruzilhadas e pontes.
Os ímpetos sexuais foram modificando. Eram demorados. Calientes, com diziam. Naturalmente que a idade modificou alguma coisa no físico do casal, mas tinham uma atração intensa um pelo outro. Bastava ouvir o barulho do chuveiro que sempre havia companhia. Muitas vezes para quebrar a rotina, dormiam em quarto separados e davam vazões as fantasias.
Mas nem tudo se desenhava na impetuosidade do casal.
Mudanças de residências. Mudanças de cidades. Novos horizontes estavam sendo desenhados, oportunidade profissional para ambos. Ela secretária executiva, além da capacidade que lhe era nata, contava com a simpatia de um largo e cativante sorriso.
Ele por sua vez, era um misto de executivo e planejador de atividades ligadas aos setores produtivos de alimentos.
Financeiramente havia uma solidez considerável.
Mas o que estaria acontecendo?
Na retrospectiva da vida, durante aquela noite de insônia, buscava a resposta.
O parceiro dormia sereno ao seu lado.
Não podia se queixar da falta de amor, carinho, atenção e respeito.
Algumas manias foram adquiridas no correr dos anos. Uma delas era simplesmente linda. Todo o dia ao acordar recebia uma flor. Fosse qual fosse à flor, ali estava junto com o seu café da manhã. O interessante era que não se repetiam. Todos os dias, flores diferentes. Após o desjejum, se amavam de uma forma terna, louca, tranqüila, selvagem, silenciosa e aos gemidos contidos. Muitas vezes continuavam no banho.
Mas porque da indagação que já estava se configurando como insatisfação?
A idade? A deficiência hormonal. O ganho de alguns quilos? A secura vaginal?
Não. Absolutamente não.
Buscou nos confins da mente, a razão desta insatisfação que agora ganhava corpo.
E então como que um raio, uma luz mental surgiu respondendo.
Era muita felicidade.
Sempre fora amada, adorada, idolatrada como mulher. Como símbolo sexual para aquele que fora seu primeiro e único homem. Será que não estavam voltando os tempos da juventude, com a rebeldia, com a não concordância dos parâmetros sociais e morais à época?
Levantou-se. Com cuidado para não acordar o parceiro.
Tomou um banho. Desta vez só. Vestiu-se de forma confortável. Um par de tênis. Um agasalho leve. Na bolsa os documentos pessoais e do carro. Conferiu o saldo nos bancos, via InterNet. Os cartões de crédito em dia e com saldo.
No relógio do tempo os ponteiros marcavam, 39 anos de casamento.
No relógio mecânico do dia a dia, os ponteiros marcavam 4,33 horas da madrugada.
No escritório, escreveu um pequeno bilhete:
Parto, para sempre.
Parto, para não querer que você sofra.
Espero que entenda que não é um ato covarde. Mas sim um ato de extremo amor.
Um dia quem sabe na Eternidade, possamos nos encontrar e lhe prestar conta deste ato.
No carro, colocou a mala com roupas de uso contínuo. Nem os perfumes pegou.
Na avenida beira-mar, olhava as ondas no seu vai e vem contínuo e as comparou com a vida.
Rodou mais uns quinze minutos. Parou. Desceu. Um abraço longo e quente. Um beijo diferente e com certo grau de impetuosidade e tesão.
Não olhou para trás. O passado ficara sepultado para sempre? Sim.
Ao lado um jovem, moreno, sarado. Uma verdadeira escultura. Uma usina atômica de fazer sexo.
O tempo passou..
O que eu sei, é que da última vez que a vi, estava trabalhando como faxineira em um aeroporto. Maltratada pela vida, cabelos mal cuidados, pele enrugada precocemente, trajando uniforme cor laranja, limpando banheiros, retirando lixo dos coletores, varrendo corredores e comendo quentinhas.
Segui para o portão de embarque e simplesmente joguei no chão, aos seus pés o bilhete que guardei por anos e anos. Ela o apanhou, leu. E uma lágrima correu pelo rosto sofrido e triste. Quis esboçar uma reação. Mas o serviço de som do aeroporto anunciava: Senhores passageiros com destino à Paris e Lyon do vôo...última chamada para embarque
Triste pedaço de uma história de amor que começou com uma noite de insônia e terminou no piso frio e sujo de um aeroporto.