AMOR AO SOPÉ DA JANGADA

O exequível é que Eunice estivesse no cio. Como uma cadelinha, quando quer dar a troco de recompensa nenhuma. Os indicativos, logo de entrada, mercê de uma rabada de olho, não deixavam mossa e nem uma gota de dúvida.

Pedro metera-se num trio de irmãos, gente boa, um pessoal fino, rapaziada estudiosa e evangélica da vizinhança, para ir o improvisado quarteto pegar um belo banho de sol de praia. O domingo, já pelas oito e trinta, regurgitava uma luminosidade argêntea e radiante.

De ônibus, os quatro amigos iam tocando, à frente. Um aperto desgraçado de corpos quentes, a se esfregarem uns aos outros. E a lata de ônibus lotada de domingueiros que se iam aventurar a curtir um sol bem arregalado de beirada de mar.

Eunice também estava indo em boa companhia. Ia assessorada de uma irmã – com certeza irmã lá dela –, a ver-se pelo formato das duas caras. E mais, de quebra, na minúscula comitiva da fêmea sensual, uma criança miúda.

Não era mulher tão bela, estupidamente linda, de fazer fechar comércio nem que fosse praça apenas de secos e molhados. Mas portava, e como, no seu todo, mormente nas ancas e no olhar, um “sex appeal” que induzia o peixe mais arredio a morder-lhe a isca, e sem nem um tico de agradecimento. Apenas umas raras espinhas nas faces, sinal de ardente viço feminil, e poucas sardas que lhe botavam algum charme.

A irmã da jovem mulher – que não era de todo feia – ainda era uma meninota, quase em botão de flor. Daí que não deixava dúvida: o menino macho seria mesmo de Eunice, qualquer cego bobo chegaria a esta conclusão.

Um ônibus as duas pequenas comitivas pegaram. Mais outro ônibus, no centro da cidade, e o trio de Eunice no mesmo destino / itinerário do grupelho de Pedro. Uma fatalidade, que nem era coincidência, o caminho dos dois ser tão igualmente o mesmo?

Só de viés, sem nem convicção, já se haviam mirado na primeira lata de ônibus. Agora, sim, pra valer pontuação de campeonato, aboletados no bojo do segundo lotação, o par olhou-se bem nos quatros olhos, olhos meio muito arregalados.

Eunice, toda demais pimpona, com aquele guri – este com obra de uns dois anos de vida – sentado no colo. A irmã, que não deixava dúvida de ser isto, uma adolescente até desempenada de corpo, era escrita às fuças da mãe do garotinho, como já foi patenteado.

Contudo, como já fosse o segundo trajeto, e estando em pé bem ao pé do ouvido da exuberante fêmea, Pedro arriscou ir com ela às falas, algo do tipo “Oi, você vai pegar um bronze?” Aliás, pergunta descabida, que as asas à mostra dos maiôs das irmãs não indicavam que elas fossem a uma festa de rezas na Irmandade de Maria.

E eis que, daí, sem papo muito largo, o romance único iria ocorrer só no final da tarde, quando nem mais o casal se havia avistado na praia do Cais do Porto, nem no casario próximo, também não no outro flanco do mar, lá no areal do “Farol Velho”.

Num lance de felicidade e oportunidade, que ninguém esperava, sob um sol cadente das três, o par de novo se encontrou, na maior boa, isto quando a turma dos evangélicos estava a gramar para casa. Aí, nem prestou a nova situação, foi apenas o estopim do fogo cruzado.

Pedro e Eunice, que lá se vinha só e sem rumo, sem mais delongas, foram armar cama de frente para o mar aberto, ao sopé de uma jangada que se encontrava meio de borco, aí, lá mesmo, sendo facultado perfeito esconderijo para a dupla dos recém-amantes. Os dois grupos de banhistas, agora, dizimados em duas pessoas tresloucadas, mas de uma violenta libido nas entranhas.

E os amigos de Pedro, a ver navios, foram liberados. O fedelho e a irmã de Eunice, quem o saberia, talvez arranchados em alguma casinhola daquela comunidade simples, em sua maioria um bairro litorâneo constituído de putas e pescadores artesãos. Gente que ainda ia aos verdes mares em lombo de jangada.

A tarde mergulhou na penumbra das seis. O casal de improviso nunca imaginara copular tanto e com tamanha intensidade amorosa. A lubricidade fora evidenciada na longevidade vesperal, no modo desordenado de rolarem no areal e nos ais da moça que parecia mordida da vaca louca.

Tanto rolaram e se espremeram e gemeram, a sós, diante do Atlântico, que mais se aproximaram de dois bichos em pleno acerto de contas, ao ritmo de ardoroso cio. Encontro único, amor único, única chance de violenta manifestação de quase juvenil lubricidade.

Assim, pois, em longes tempos de muito diminuta violência urbana, quando ainda se podia espojar um casal à beira-mar, ficara comprovada a tese inicial, lá de cima, de que Eunice, sem sombra alguma de dúvida, estivera possessa, possuída de certo furor uterino, algo desenfreado e muito forte. Ou seja, aquele tal cio, aventado lá no cimo destas linhas.

Fort., 17/09/2010.

Conto postado em:

http://www.recantodasletras.com.br/autores/gomesdasilveira

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Lançamento: “Dicionário de expressões populares

da língua portuguesa”, 980 pp.

Autor: João Gomes da Silveira

Editora: WMF Martins Fontes, SP, 2010

Acesse: www.wmfmartinsfontes.com.br

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Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 17/09/2010
Reeditado em 18/09/2010
Código do texto: T2503568
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