A FORÇA DO BEM
Todos saíam da sala, apertando-se na porta que dava para um comprido corredor, apinhado de alunos de outras turmas. Era a hora do intervalo. Muitos procuravam a cantina para, além de um lanche, uma descontração com outros colegas e uma chegada à biblioteca para alguma consulta jurídica.
Na sala, agora, praticamente vazia, ficamos nós, eu e o marido, além do professor que à mesa consultava o diário de classe. Para nós, o descanso ali seria mais proveitoso, pois antes tínhamos tido uma jornada de trabalho extenuante, conciliando com as tarefas domésticas, filhos pequenos e trabalhos escolares. Uma ocasião para acertos de algumas pendências.
De repente o professor dirigiu-nos a palavra, perguntando-nos sobre a nossa profissão.
_ Sou odontólogo e minha mulher é servidora pública estadual. Para acompanhá-la estamos fazendo o curso de Direito. As matérias são bem adversas, mas estou gostando muito.
Foi aí que ele nos falou sobre um dentista que, repentinamente, passara a ouvir vozes e ter visões no próprio consultório, embora não professasse nenhuma religião atinente. Isso era notório e todos sabiam naquela época. O dentista incorporava o espírito de um médico e passou a fazer tratamentos, com êxito. Isso o forçara a atender publicamente muitos pacientes que se enfileiravam para as consultas. Seria uma missão?
O assunto era tratado até pelos órgãos de comunicação de massa. Um fenômeno inexplicável aos olhos do leigo. Nós também nada sabíamos sobre isso, uma vez que eu era egressa de um colégio de freiras, onde morei durante nove anos, e o Alfredo provinha de uma família tradicionalmente católica.
Aproveitando da oportunidade, o mestre contou-nos uma história que até hoje a guardo na mente e no coração.
Aqui, usarei nomes fictícios, com o objetivo de resguardar identidades e facilitar a intelecção.
Disse-nos, ele:
_ Sempre fui uma pessoa sagaz, inteligente e perquiri os meus objetivos com afinco. Considero-me um homem realizado, embora alguns acidentes de percurso que, hoje, sei que serviram ao meu aprimoramento, à evolução do meu espírito.
Galguei os píncaros de minha carreira, cumulando-a com o magistério, do qual gosto muito. Pelo cargo conquistado, sentia-me apoderado no cume da pirâmide, quase acima do bem e do mal. Para completar, um lar bem estruturado e a importância do destaque social.
Entretanto uma dor cravara-se no meu peito, dilacerando-me a alma: um filho, com paralisia infantil, com grande comprometimento. Aos filhos amamos mais do que a nós mesmos. Tudo fizemos para tentar amenizar a situação, mas não foi possível, nem mesmo no Exterior. Isso era o calcanhar de Aquiles para toda a família que sofria unida. E o menino crescia, debulhado em sorrisos e sem reclamações, acostumado às amarras de seu viver físico, sem nenhuma perspectiva que pudesse lhe devolver os passos, o caminhar pela vida, como as demais crianças de sua idade.
Ao deixá-lo na escola, era-me doloroso sentir os olhares piedosos ou assustados dos coleguinhas e de adultos também. Ele, praticamente não andava, arrastava-se feito uma arranha ou um monstrengo. Eu sempre voltava arrasado, impotente e cheio de porquês. Como gostaria de trocar de lugar com o meu filho! Entretanto, o meu poderio, a minha inteligência, o pedestal de minha carreira, eram incapazes para devolver ao meu filho a condição de andante, embora ele nunca a tivesse experimentado. Não conhecesse a liberdade de ir e vir por meio da agilidade dos passos. Jamais conheceria o prazer de jogar bola, andar de bicicleta, praticar esportes...
Um dia, ao retornar a casa, após exaustivas audiências, minha mulher falou-me sobre esse dentista que, inexplicavelmente, estava fazendo curas, através do espírito de um médico desencarnado, chamado Dr. Manuel.
Avesso ao tema, tentei persuadi-la a não acreditar nesses boatos, não obstante o protagonista fosse uma pessoa qualificada, do ponto de vista científico. Após alguns dias de muita insistência e tendo em vista o alvo do pedido ser o nosso filho, Lucas, aceitei que ela marcasse uma consulta com o tal médico desencarnado que, agora, já atendia num local maior, dado o grande contingente de pessoas que o procurava.
Meio sem jeito e um tanto envergonhado, compareci no dia e hora marcados, porém, sem qualquer identificação. Já pensou o que diriam os meus pares?
Adentrei num ambiente simples, limpo, com modesta aparelhagem médica: o consultório do Dr. Manuel. Sem delongas e nenhum aparato, contei a história do meu filho e a nossa desvairada busca para que ele ganhasse um pouco de independência para viver.
O médico, que na verdade era o dentista, num linguajar erudito e conhecedor, falara-me de muitas outras coisas, menos da situação do Lucas, a qual era o motivo de minha ida ali. De tudo o que falou, ficou bem registrado a força do bem, o amor ao próximo e a caridade, como estandartes de nosso compromisso nesta vida. Aguardando o desfecho final, quando ele, certamente, falaria sobre o Lucas, fui convidado a sair, pois minha hora havia se esgotado.
À direção do carro, de volta para casa, senti-me como se fosse uma pessoa com retardo mental. Um idiota mesmo. Logo eu que me reputava tão cético, tão preparado, tão arguto! Queria esquecer daquele episódio. Pensei em não dizer a Mônica que havia estado com o tal médico, mas não podia fazer isso. Afinal ela era minha mulher, a outra metade de mim e esperava a resposta ansiosa. Era uma mãe aflita em defesa da cria. Sem esconder a minha decepção, relatei-lhe a infrutífera consulta ao tal médium dentista, selando, finalmente, que deveríamos nos esquecer definitivamente daquilo. Era, no mínimo, ridículo.
Algumas semanas depois o meu carro acusou um sério problema, embora fosse relativamente novo. Por isso teve que ficar na revisão por mais de uma semana. O jeito era usar o táxi, ao que a Mônica sugeriu que eu fosse apanhá-lo no ponto, há poucos metros de nossa casa, por que assim tomaria um pouco de sol. Anuí e segui caminhando pela rua de nossa casa, que estava solitária e o sol brilhava, iluminando as árvores e os carros parados. A brisa era amena, fagueira, e o céu de um azul encantador. A primavera desabrochava nos jardins e nos flamboyants nas calçadas. Eu não costumava andar a pé por ali. Praticamente não conhecia a vizinhança, excetuando-se poucos cumprimentos formais.
De repente os meus olhos identificaram um menino, de uns 11 anos talvez, sentado numa cadeira de rodas, no alpendre de uma das muitas residências, o qual sorria para mim, emitindo sons guturais, acompanhados de descontrolados e retesados gestos. Percebi que o garoto possuía esclerose cerebral. Como não havia ninguém para nos observar, parei na rua, defronte do solitário alpendre e tendo em vista o excesso de alegria do menino, não podia mesmo olvidar, ocasião em que lhe tentei dar um pouco de carinho, também por meio de gestos. Sorri, gesticulei e vi que ele se alegrava com o meu afeto. Os seus olhos brilhavam, excitados. Na mente, veio-me a imagem sorridente do Lucas.
No dia seguinte, a cena se repetira do mesmo jeito e nas mesmas condições. Comecei a pensar no garoto e devotar-lhe afeição, até que chegou a sexta-feira, último dia em que apanharia o táxi. E lá estava o menino, a cada dia mais alegre. Mesmo sem ele entender a minha linguagem, nem eu a dele, já éramos amigos. Eu me surpreendia sempre sentindo saudades e desejando revê-lo.
Para surpresa, um senhor saiu do interior da residência e cumprimentou-me de maneira cortês. Nas mãos tinha um embrulho que, pelo formato, parecia tratar-se de um livro. Falou da alegria do filho e da espera todos os dias por minha visita.
_ Doutor, quando chega esse horário ninguém detém o Arthur no interior da casa. Gesticula, emite sons, fica impaciente, até ser trazido para o alpendre, na esperança de ver o senhor. Notamos que esse encontro é muito importante para ele. Tem-lhe feito muito bem. Por isso eu, na condição de pai, agradeço-lhe muito.
Era um senhor simpático, feliz, de sorriso farto e linguajar brando e afetivo. Não obstante as minhas escusas, terminei aceitando o presente, agradeci e sem outros comentários, segui até o ponto de taxi. No Tribunal, guardei o embrulho na gaveta, ainda lacrado. Tratava-se de um dia exaustivo, com audiências complicadas.
Meses depois, finalizado o trabalho daquele dia, e restando ainda boa parte da tarde, tive uma sensação de vazio e, aleatoriamente, lembrei-me do livro. Era uma boa oportunidade para vê-lo, pelo menos o título, o tema... Qual não fora a surpresa ao constatar que se tratava de tudo que o Dr. Manuel (o dentista) havia-me falado, quando lá estivera a procura de lenitivo para o meu filho. O título era A FORÇA DO BEM, escrito por Diamantino. Comecei a folheá-lo e terminei por lê-lo, o que fiz, posteriormente, muitas outras vezes.
Iniciava-se aí a construção de uma nova concepção do BEM e o maravilhoso valor de servir, independente de qualquer recompensa. Simplesmente o BEM pelo BEM. Isso, a cada dia, ia tomando formas e lapidando as minhas arestas. Fui fazendo tentativas para abater a arrogância, a supremacia de que pensava ser dono, e melhorar a convivência com os meus alunos, secretários e serviçais, tratando-os com respeito e carinho. Melhorar a convivência comigo mesmo. Era uma faxina interior e silenciosa, entretanto, logo notada por minha mulher. Era o início de uma transformação interior em busca de um NOVO HOMEM.
Certo dia, por acaso, encontrei um amigo, o qual me dissera que estava participando de um trabalho de reconstrução de casas de pessoas da periferia, que haviam perdido os seus lares por causa de enchentes, que à época castigavam a nossa cidade. Perguntara-me se eu queria juntar-me a eles para ajudar nos fins de semana. Fiquei um tanto assustado em me prestar a serviços de tal natureza, mas no meu coração, o ensimesmado juiz já não era o mesmo.
A solidariedade do colega e o desejo de servir me contagiavam. Realmente era a FORÇA DO BEM. Era chegada a hora de eu também me alistar como recruta. Uma sensação de paz tomou-me a alma. E eu me ofereci com prazer, como se tivesse tentando adquirir outro diploma de doutorado. Comecei a sentir algo diferente que, depois, vim a saber chamar-se FELICIDADE.
Assim, parti firme e resoluto para o exercício de outro ministério, agora com o lacre do amor espontâneo que me conduziu a reformular os meus valores, dando-lhes essência, cor e vida. Revelei-me um excelente ajudante de pedreiro. Não só isso. Os colegas costumavam dizer que eu era “PAU PARA TODA A OBRA”.
Era uma grande satisfação servir naquela frente de trabalho, vendo os barracos serem reerguidos e as famílias abrigadas do frio, do vento, da chuva, do tempo... Quantos inocentes!!! Quanta pobreza! Seres humanos! Minha vida tomou um novo sentido e eu me tornei um novo homem. Tudo pela FORÇA DO BEM.
O tempo passava veloz e tudo seguia com suas traves, entraves e muitas alegrias. Um dia Mônica acordou mais cedo do que o de costume e, ainda na cama, contara-me que havia tido um sonho inesquecível, passando a narrá-lo:
_ Sonhei que estávamos num hospital. Parece que esperávamos uma consulta para o Lucas. Estávamos sentados em poltronas defronte de uma sala de cirurgia, identificada acima por letras grandes. De repente a porta abriu-se e de lá saíram dois médicos. Não eram nossos conhecidos. Ouvi bem quando um deles, ainda tirando a máscara cirúrgica que lhe tapava a boca, comentou com o colega: “a solução do problema daquele menino está aqui, apontando para a Sala de Cirurgia”. Ainda guardo a cena e o olhar do médico direcionado ao Lucas. Não é incrível, Marcos?
Quem sabe deveríamos levar o Lucas para uma consulta com o Dr. Jeovane? Já faz algum tempo da última estada nossa lá. Na semana passada eu o encontrei no elevador, o qual mandou recomendações para você e perguntou pelo nosso filho.
Marcamos a consulta, para nova revisão do Lucas, com o médico ortopedista, Dr. Jeovane, que há anos o assistia. O médico, renomado por seu excelente trabalho, reafirmara-me que a paralisia infantil (poliomielite) era irreversível, particularmente no caso do Lucas, mas ia passá-lo aos cuidados de um médico recém-formado que fizera estágio num hospital especializado em Brasília e que agora estava trabalhando naquela clínica.
Após a abordagem clínica e a feitura de muitos raios-X, o médico – Dr. Tadeu – dissera que se poderia tentar melhorar a postura do garoto, mas que isso demandaria uma série de cirurgias, pelo menos umas seis cirurgias, feitas paulatinamente ao longo do tempo. Era uma luz no fim do túnel e eu fiquei contente.
No dia e hora marcados, lá estava eu com o Lucas. O amor invadia-me a alma e saía pelos poros. Acho que fumei todos os cigarros do mundo. Um enfermeiro veio depilar o pezinho do Lucas, onde seria realizada a intervenção cirúrgica. Atento ao trabalho, pedi ao enfermeiro que fizesse a depilação completa, ao que ele quis se negar, uma vez que a operação seria realizada apenas no pé. Usei de autoridade e fi-lo cumprir o meu pedido.
À porta do Centro Cirúrgico, eu esperava impaciente, mas convicto de que alguma melhora se registraria em prol da liberdade do meu filho. Muitas horas se passaram, até que vi a porta se abrir e de lá saírem os dois médicos, com agradáveis expressões faciais.
_ A cirurgia foi um sucesso!! E como já estava tudo preparado, depilado, propício, e as condições favoreciam, fizemos as seis intervenções. Agora é esperar o pós-operatório e a convalescência. Vamos torcer!! Alguma melhora virá!
E para concluir a história, o mestre nos disse em tom vitorioso:
_ Hoje, meu filho ANDA ERETO como qualquer um ser humano! ELE E EU TAMBÉM!
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O bem é contagioso!
Essa história também aparou algumas pontas, algumas agulhas que empobreciam a escritora deste texto. Até hoje tento me lembrar e enaltecer A FORÇA DO BEM.
Oxalá você, leitor, possa também se juntar a nós! Tags:
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